Passe o primeiro fim-de-semana no Doclisboa no encalço de um dos últimos amoladores no norte de Portugal ou na companhia de Carlos Henriques Escobar, filósofo, dramaturgo, poeta e professor brasileiro, visto aqui pela sua filha. Acompanhe a competição internacional com o filme de Kevin Jerome Everson sobre o impacto das cheias no rio Tombigbee no Mississippi e a viagem de Luca Magi pela Itália do filme que Fellini nunca chegou a filmar: Viaggio con Anita. Finalmente, presença obrigatória no último filme de Frederick Wiseman sobre a universidade de Berkeley e na visita à radio pública francesa com Nicholas Philibert. E se, depois de tudo isso, todo este passeio não passasse de uma ficção? É a isso que responde a trilogia de Nicolas Provost que colocamos como último destaque deste fim-de-semana cinéfilo.
Os Caminhos de Jorge (2013) de Miguel Moraes Cabral
Filmar uma profissão em vias de extinção é um trabalho arriscado por ser essa a matéria de tantos trabalhos televisivos e documentários que tentam puxar ao sentimento do espectador, evocando recordações nostálgicas ou insistindo na constante lamentação do que já não volta mais. No entanto, Os Caminhos de Jorge consegue, logo desde o primeiro plano (coisa absolutamente fantasmática, com os latidos distantes dos cães e um homem que corre no escuro, sempre de costas, até chegar à luz e tocar a sua corneta, quase como um enviado das trevas que vem colher as almas dos que já viveram bastante), fugir a esse registo, fincando os pés numa atmosfera que vive paredes meias com a morte. Para isso, o realizador Miguel Moraes Cabral recorre a uma série de pequenas (e menos pequenas) insinuações: ainda antes do genérico, vemos o senhor Jorge (o amolador, o último da sua espécie?) numa consulta médica – consulta que se espelha na mota que também tem de ir à oficina -; mais tarde vemo-lo viajar pelas estradas assombradas (e ensombradas) pelas cúpulas das árvores e pelos nevoeiros matinais ao som de um requiem; ou ainda a sessão espiritual de exorcismo realizada pelo senhor Jorge – e claro, as visitas ao cemitério e as sombras dos que por lá andam de noite. Moraes Cabral enche o filme de morte, porque aquilo que retrata é um fim, um decaimento (mesmo que a contragosto) não só do homem como de todo o seu mundo (é o desemprego geral, é o fecho das lojas – o barbeiro que visitamos fecha a porta pouco depois -, a emigração, o regatear do preço do arranjo dos chapéus de chuva) que assume o seu supremo valor simbólico na ponte inacabada que, como o desenvolvimento do país, nunca conseguiu chegar ao lado de lá. Talvez aqui se notem demasiado as intenções políticas do realizador (principalmente na introdução de trechos sonoros dos noticiários), mas isso é secundário quando se considera o grande golpe de asa do filme: apesar de se chamar Os Caminhos de Jorge e de acompanhar o amolador Jorge nas suas bolandas, o que surpreende é o facto de a câmara se deixar perder pelos outros personagens que Jorge encontra, seja o pastor, seja o homem do chapéu, num desejo de contar a história de cada um, de os seguir, de ouvir as suas conversas (e as suas canções), revelando aí um respeito e um interesse por aquelas gentes que é no mínimo incomum. (RVL)
The Island of St. Matthews (2013) de Kevin Jerome Everson
Se no texto anterior encontrava uma veia militante comum a dois filmes da Competição Internacional – Pays Barbare (2013) de Yervant Gianikian e Anna Riccci Lucchi e Nichnasti Pa’am Lagan (Once I entered a Garden, 2012) de Avi Mograbi -, embora salvaguardasse que o último era salvo pelo tema da amizade que o aproximava dos grandes clássicos americanos (Ford, Hawks), nas duas obras que destaco desta vez, Anita (referido abaixo) e este The Island of St. Matthews do americano Kevin Jerome Everson, descubro um “experimentalismo” maneirista e abstractizante que recorre a imagens antigas, ou aparentemente antigas, para dar mostras de uma maior “autenticidade” (ou para tentar participar num qualquer protesto anti-digital global), também muito presente, já agora, no filme de Gianikian e Lucchi que abriu o festival. Parece desenhar-se, assim, não tanto uma temática mas uma estética comum às obras em competição. E o que ganha (ou o que tira) The Island of St. Matthews dela? Metade da sua duração, composta por planos “bonitos” de barragens a abrir e a fechar, de pessoas a fazer waterski e a serem baptizadas. Mesmo que haja um óbvio fio condutor – a água, que destruiu uma povoação há quarenta anos, que serve para lavar o cabelo naquela escola profissional em que rapazes e raparigas de bata aprendem ofícios, para baptizar à moda antiga, para fazer desportos náuticos; é como se a água inundasse não só aquela terra como se fosse inundando, pinguinho a pinguinho (como aqueles que ouvem no final) o próprio filme -, Kevin Jerome Everson parece perdido na indefinição entre o documentário de “personagens” (todas as pessoas que entrevista, conhecidos e familiares que falam directamente para ele, que está atrás da câmara) e o documentário “poético”, entre ser o Spike Lee de When the Leeves Broke: A Requiem in Four Acts ou algo mais “artístico”. Essa irresolução também ajuda a diminuir The Island. (JL)
Os Dias com Ele (2013) de Maria Clara Escobar
Para um ignorante como eu, o nome de Carlos Henrique Escobar era apenas mais um entre tantos que sabes já ter ouvido algures mas ao qual nenhuma memória se pegou. A verdade é que o filme da sua filha, Maria Clara Escobar, não se vale pela imagem que o espectador tem do pai, muito pelo contrário, tenta oferecer uma imagem do pai para o espectador ignorante como eu. No primeiro plano do filme, Carlos Henrique está sentado à sombra no seu pátio, a câmara ajusta-se, o microfone ainda está a ser colocado e o homem pergunta se já pode começar. A realizadora – que está quase sempre em fora de campo – indica-lhe que pode ir falando que ela (e a câmara) estão a ouvi-lo; grande parte do filme faz-se destes momentos em que a câmara já rola mas o seu intérprete ainda não rola com ela, como que aproveitando os momentos em que o pai não interpreta o papel de Carlos Henrique Escobar, mas apenas o de pai, esse que ouvimos da boca da realizadora antes do início do genérico. É nesses instantes em que se espera pelo enquadramento, em que se aguarda a colocação do microfone ou em que se discute os problemas da lida da casa (o aniversário, o mosquiteiro da janela, o passeio à trela dos gatos) que Maria Clara mostra o pai que conhece (ainda que mal, entendemos depressa). Nos outros momentos, nos de entrevista, a filha tenta conhecer o outro pai, o militante ‘comunista’ iluminado, o guerrilheiro, o preso político, o dramaturgo, como se através dos depoimentos do pai pudesse encontrar uma situação histórica onde o encaixar nas turbulentas actividades da resistência à ditadura militar no Brasil. O que encanta no filme é como tudo é feito às claras (não fosse a realizadora Clara) e, por isso, todos estes intentos são eles mesmos matéria do filme: o pai entende depressa que o filme é menos um documento histórico sobre a sua figura e mais uma peça estética sobre a relação pai-filha e sobre as memórias pessoais e de um povo que fez por esquecer; isso desagrada-lhe muito (ele preferia o enaltecimento do documentário-retrato) e por isso, ao longo do filme, são vários os momentos em que aconselha a filha na realização (devias começar com imagens da tumba do teu avô com uma banda a tocar muito alto e depois cortavas subitamente e ouvia-se a minha voz ou devias tirar o som ao meu depoimento e colocar em off passagens dos meus discursos) e, como percebe que os seus desejos de pouco valem, começa a ficar progressivamente acomodado à ideia de que dali não sairá coisa boa (e di-lo sem pejo). Filmar um pai (ou uma mãe) corre sempre este risco de tentar passar ao espectador a imagem que o realizador tem do seu progenitor e não são raras as vezes em que os filmes se tornam manipulativos (para nós e) para os do lado de lá (que, usando as facilidades da intimidade, se enlaçam em teias muito intrincadas de dependência). Maria Clara nunca cai nisso; não parece que queira mostrar um certo pai porque também ela não conhece bem o pai que tem, mas por outro lado sabe bem que não quer que o filme se transforme num expositor do ego do senhor Escobar. É nesse balanceamento que o filme se faz e é disso exemplo o momento em que a realizadora, por falta de uma claquete, usa as mãos para iniciar o take, sendo que as mãos que estalam uma contra a outra envolvem o pai ao fundo – o filme é sobre ele, mas ele está nas suas mãos. (RVL)
Plot Point (2007), Stardust (2010) e Tokyo Giants (2012) de Nicolas Provost
Numa altura em que o belga Nicolas Provost completa a sua trilogia sobre a relação entre real e ficção, a que deu o nome de Plot Point, o Doclisboa volta a mostrar as primeiras duas partes, depois da sua exibição em 2011, juntando-lhe agora o terceiro tomo filmado nas ruas de Tokyo. Fica assim terminado o seu “passeio” Nova Iorque-Las Vegas-Tokyo, em que a ideia é sempre a mesma: a captação de imagens das ruas, das pessoas, do dia-a-dia, com uma câmara oculta de alta definição. Sobre esses fragmentos Provost adiciona uma boa dose de ficção, não a ficção inerente à selecção de qualquer pedaço da realidade, mas sim o código da linguagem ficcional. O resultado tinha sido exposto como problema em Mocracy /Neverland in me, essa fusão como incapacidade de distinguir o real da sua representação, a imagem do carnal, o virtual do real. Ao ver os filmes de Provost, conseguimos isolar os factores que “contaminam” o real de uma leitura com imaginário ficcional: a utilização da música lynchiana para a transformação do real em espaço de tensão, o falar ao telefone, os rostos preocupados da multidão, as pessoas que caminham em ruas desertas, os carros estacionados na berma de uma estrada sem vermos o seu interior, a própria câmara que capta pormenores em tele-objectiva. Todos estes elementos despoletam no espectador a procura de situações reconhecíveis, lugares comuns, sobretudo do universo do thriller, da espionagem, do terror até. A aplicação dos códigos de ficção ao real permite a Provost filmar a margem de algo (nunca mostrado, nunca dito) que o espectador nunca sabe o que é, o motor do drama, que faz a máquina da procura, de preenchimento de expectativas, rolar em seco. Se na Times Square em Plot Point o exercício é ainda muito homogéneo, sobretudo com o trabalho muito centrado na música, o salto para Las Vegas com Stardust (o melhor dos três) permite complicar mais essa fronteira, pois Provost filma estrelas de cinema reais (que acontece estarem nessa altura por Las Vegas) e adiciona linhas de diálogos reconhecíveis de alguns filmes de acção. Em Tokyo, o imaginário é outro – os yakuza, um serial killer, violações… Com eles, Provost tenta construir pela montagem uma narrativa coesa a partir do fragmento, da margem. Nisso faz-nos um pouco lembrar A Última Vez que Vi Macau (2012) de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, sobretudo no acto de construir um drama e mostrar apenas o seu indício. Seja como for, a trilogia de Provost vale como exercício, como demonstração do poder cultural e simbólico da linguagem cinematográfica no imaginário ocidental. No entanto, esgota-se rapidamente nessa mesma ambição, fazendo do formato curto o ideal para o ensaio da ideia. (A sessão ficará completa com I’m M, de Christian von Borries, que ainda não tivemos oportunidade de ver). (CN)
A trilogia de Provost (Secção Riscos) será exibida dia 26 de Outubro pelas 21:45 e dia 1 de Novembro pelas 19:30. Ambas as sessões serão na sala 1 do Cinema City Alvalade.
At Berkeley (2013) de Frederick Wiseman
Impressiona a genica de um dos maiores documentaristas vivos, talvez o maior. Com oitenta e três anos e praticamente um filme por ano, Frederick Wiseman regressou agora aos Estados Unidos, depois da sua “estadia” francesa com La Dance (A Dança – Le Ballet de l’Opéra de Paris, 2009) e Crazy Horse (2011). E também regressou aos grandes formatos – são quatro horas que registam a sua passagem pela Universidade de Berkeley, na Califórnia. Mais um tomo do mapeamento institucional americano, desta feita num espaço emblemático da discussão do papel do ensino (em particular, do público) no país. Falo dessa discussão pois ela é o tema central. No background temos a crise económica que afecta a política estatal de financiamento da universidade, das reuniões dos seus directores. Mas também a preocupação de alguns alunos que vêem pela primeira vez o seu estatuto privilegiado de classe média afectado pela subida do preço das propinas, a descida do número de bolsas, a dificuldade de acesso aos empréstimos que lhes permitem pagar a faculdade. Curioso momento esse em que Wiseman nos mostra uma estudante negra dizendo que, se só agora os brancos de classe média se preocupam com questões de crise (quando ela sempre os viveu), porque deverá ela preocupar-se com eles neste momento em que até está bem? Porque deverá ela ser solidária com os brancos? At Berkeley é como assistir a uma aula de quatro horas sobre neutralidade e ocupação dos espaços de observação. No final da aula, ou durante a mesma, pela montagem, Wiseman vai pondo as suas tímidas perguntas. Por exemplo, o realizador sabe que enquanto filma uma instituição em “regressão física” pelos cortes no seu orçamento (os primeiros a ser afectados são os funcionários, parte do esqueleto de Berkeley, que Wiseman vai arrancar “às traseiras” da instituição: o cortador de relva, o homem que varre o cotão das escadas, os homens das obras, os polícias), filma ao mesmo tempo uma tentativa de diagnóstico e solução. Afinal este é um espaço de elite, a segunda maior instituição de ensino do mundo (só atrás de Harvard). Há, pois, alunos que discutem qual deverá ser o novo modelo de financiamento do Estado, como se devem sustentar as estruturas de ensino, mas também qual o papel dos Estados Unidos na ajuda aos pobres, internamente e no mundo. Depois há o trabalho, a curiosidade, nas aulas e projectos de investigação sobre tudo e mais alguma coisa (o que fazem deste espaço algo inesgotável): insectos, Thoreau, muletas electrónicas, dark matter, o conceito de tempo… Sobre esse, não damos por ele passar e, se oito horas fossem, oito horas ficaríamos em Berkeley. (CN)
Anita (2012) de Luca Magi
Nas primeiras imagens de Anita, o prólogo ainda antes do genérico, Federico Fellini fala a um jornalista de televisão de um projecto que acalenta, a história de um homem de meia-idade (obviamente chamado Guido) que fará uma viagem em direcção ao pai moribundo, juntamente com a amante Anita (apesar de ser casado). O filme (ao que se diz, autobiográfico), que se intitularia Viaggio con Anita, nunca chegou a ser feito, restando apenas o argumento escrito por Fellini, posteriormente publicado em livro. E que Luca Magi repesca para este seu Anita, em que recria a viagem de Guido e Anita por uma Itália em que as imagens de arquivo se confundem com imagens actuais produzidas para parecerem antigas, parando num ou noutro lugarejo para conversar com velhotes locais que aproveitam para contar as suas histórias. Como acontece amiúde neste tipo de filmes, a ideia (atrás descrita, bastante prometedora) é bem melhor do que o resultado, que peca por uma pose “experimentalista” que origina o mais das vezes “imagens bonitas” meramente ilustrativas do que as vozes (do narrador, que lê o guião, dos anciãos das aldeias) vão dizendo. É certo que os argumentos de Fellini eram bastante esquemáticos, uma espécie de rascunho de um esboço do que seriam os seus filmes e, por isso, passíveis de várias leituras e visões. O problema é que aparentemente Magi escolheu as menos interessantes. (JL)
La Maison de la Radio (2013) de Nicolas Philibert
Num momento em que o discurso sobre o serviço público aparece contaminado pela retórica economicista da sua insustentabilidade, é curioso olhar para a forma como Nicolas Philibert constrói este seu filme sobre a Radio France, rádio pública gaulesa. Como já disse várias vezes, para si o valor da curiosidade é o que guia o seu encontro com a realidade e, nessa “improvisação”, cada filme procura pacientemente o seu tema. Desta forma, o particular expande-se [da sala de aula rural em Être et avoir (Ser e Ter, 2002) ao sistema de ensino, por exemplo] ao universal, a política do múltiplo acontece e Philibert fica contente pelos seus “encontros” não redundarem em lições de sociologia. Digamo-lo de outra forma, Philibert é especialista a filmar o invisível e a dar-lhe, pela sua dedicação e curiosidade naturais (para La Maison passou seis meses a filmar), contornos de visibilidade. Em relação à rádio, o problema é que parte da sua sedução consiste precisamente em manter algo na invisibilidade: a sua mecânica de funcionamento. Philibert sabia isso e por isso preferiu usar como estrutura metafórica a inspiração da circularidade do edifício, que Henry Bernard concebeu em 1965 para alojar as estações públicas de rádio e televisão, e insistiu na circularidade do dia e heterogeneidade de temas, programas, convidados, que passam pela estação a cada 24 horas. Vemos como é arriscado colocar como centro do filme uma ideia civilizacional de diversidade (desde os concertos, os news flashes, os locutores que usam a voz para peças de teatro, o acompanhamento no exterior da tour de France, a entrevista a caçadores de tempestades, etc., etc.). Ao contrário de Wiseman que passa tempo nos espaços para, na tradição do documentário antropológico, fortalecer laços, dissolver-se no grupo, Philibert filma La Maison como um zapping entre a música, a conversa, a notícia, o som, o silêncio, o monólogo, a ficção, o riso, a sílaba, a espera. São momentos heterogéneos, passagens bruscas sem identidade, que, trabalhando no registo da mera variedade, não conseguem resgatar o filme de um certo anonimato, de uma menoridade em relação ao resto da obra de Philibert. Com muita gente e sem personagens, fica-se com a ideia de que a diversidade que existe na casa da rádio não vê o seu mistério poluído com imagens de explicação, mas isso à custa de eliminar o mistério da sedução do espectador de cinema. (CN)
La Maison de la Radio faz parte de um programa especial dedicado à palavra e será exibido dia 27 de Outubro às 22:15 na sala 1 do Cinema City Alvalade e dia 30 de Outubro às 18:30 no Grande Auditório da Culturgest. O realizador estará presente nesta última sessão.