Para este início de semana, o Carlos Natálio (CN), o João Lameira (JL) e o Ricardo Vieira Lisboa (RVL) destacam uma série de filmes do programa do Doclisboa 2013. Um filme na Competição Internacional sobre as agruras da imigração ilegal e da prostituição (mas que extravasa em muito esses temas), outro da Competição Portuguesa em torno da vida de forcado e do olhar ‘estético’ sobre as touradas, assim como filmes de outras secções não competitivas, o retrato de Donald Rumsfeld pela lente de Errol Morris, o filme dispositivo de idas e voltas ao templo de Manakamana – no filme homónimo vencedor do Leopardo de Ouro na secção Filmakers of the Present na última edição do Festival de Locarno – e ainda a sessão especial dedicada ao Teatro da Cornucópia com o documentário Fim de Citação (2012) da autoria de Joaquim Pinto e Nuno Leonel.
Manakamana (2013) de Stephanie Spray e Pacho Velez
Há uns anos vi uma curta-metragem de um estudante holandês, não me recordo o seu nome, que em grande plano filmava o rosto de pessoas na rua, enquanto esperavam pelo autocarro. Qual era o rosto da espera? Em que pensavam, o que sentiam, era esse o circuito percorrido desde o interior dessa gente à nossa percepção, por intermédio do rosto, essa “placa nervosa porta-órgãos”, como lhe chamava Gilles Deleuze. Por aqui não há grandes planos, há planos de cintura e as pessoas vão sentadas num teleférico que atravessa os montes da floresta nepalesa até ao templo de Manakamana. A dupla de realizadores, premiada em Locarno na secção Filmmakers of the Present, decide partir as duas horas e picos de filme em “curtas” que em plano fixo mostram as viagens, de ida ou volta, dos seus passageiros. Estamos no domínio do cinema do dispositivo em que a rigidez da premissa técnica se sobrepõe a uma dimensão casuística, humana, da mise-en-scène. Aquela pretende inaugurar “olhares novos”, lembro-me recentemente das câmaras fixadas nos capacetes dos pescadores de Leviathan (2012) da dupla Lucien Castaing Taylor e Véréna Paravel, que coincidência ou não produzem este Manakamana. Mas essa dimensão dispositiva quer também impor uma fixidez técnica para que melhor se possa contemplar a variação emocional: é o caso de Ten (Dez, 2002) e Shirin (2008) de Kiarostami ou dos planos fixos de He Fengming (2007) de Wang Bing. E é o caso do filme de Stephanie Spray e Pacho Velez que monta um prodigioso espaço de observação do outro em que o cenário muda tão vertiginosamente pelo avanço do teleférico que parece estarmos perante um fenómeno chroma key natural. Por detrás das pessoas, muitas delas apenas olham, sem falar, o espaço avança implacável: vemos a vegetação lá em baixo, os cabos do teleférico, as linhas dos montes, o enquadramento que sobe e desce no céu ante o movimento do teleférico, em suma, a revolução permanente de um espaço no qual habitamos de forma aparentemente imóvel. Metáfora? Não, caça a elas. E é porque está tão bem delimitado o espaço interior do teleférico, onde a técnica cinematográfica está como “mosca bazaniana on the wall” a tentar ser espelho, que o filme avança em profundidade pela “alma”, pelos gestos das pessoas adentro: não é fácil esquecer a forma como uma das senhoras, idosa, não sabe pegar num gelado e se suja toda ao comê-lo (comer como crianças, outra vez), a música dos saranguis, o olhar tão triste de uma das senhoras que quando fala nos revela um sorriso, desarmando as nossas expectativas, e mesmo a galinha que vai viva e vem morta… Filme raro este, assim numa espécie de trânsito, livre e extraordinário. (CN)
Manakamana (Investigações) será exibido dia 27 de Outubro às 19:00 e dia 29 de Outubro pelas 18:30, na sala 3 do Cinema City Alvalade.
The Unknown Known (2013) de Errol Morris
Mais um nome grande nesta edição do Doclisboa, Errol Morris, que desta vez abandona definitivamente os fait divers picarescos das misses e dos missionários mórmons [Tabloid (2010)] e continua no trilho mais sério, político, de desvelo em first person (é a conjugação da generosidade) de figuras e momentos-chave da história recente norte-americana. Chegou então a vez do show Donald Rumsfeld, um dos principais obreiros da invasão do Iraque, à época Ministro da Defesa de George Bush filho. E de show se trata pois Morris põe Rumsfeld a ler (ou a declamar, por vezes) os milhares de snowflakes (assim são chamados na gíria os memorandos que escreveu em papel branco ao longo dos anos que esteve ligado à política), ante a câmara e em voz off. Nesta posição em que Rumsfeld se vai revelando, há muitas facetas a considerar: além de Rumsfeld trovador perante a câmara de Morris, há também Rumsfeld poeta preocupado no jogo das palavras, assíduo nas idas ao dicionário para encontrar a melhor expressão para esses belos pedaços de entertainment que já eram as suas conferências de imprensa (já houve mesmo quem tivesse essa ideia de as musicar e gravá-las em cd). E nessa veia artística Rumsfeld vai lançando as suas “weapons of mass distraction”: o significado de unknown known (que ele pensa que sabe mas…), a diferença entre absence of evidence e evidence of absense (trocadilho que tanto jeito deu na invasão do Iraque). Mas além de Rumsfeld malabarista há ainda Rumsfeld ícone da estratégia política (com o plano da bola de cristal, os flocos, rosebud…), Rumsfeld emocionado e Rumsfeld incrédulo (de onde vieram todas estas palavras?, referindo-se aos seus próprios memorandos). Embora Rumsfeld não saiba porque aceitou falar com Morris (ou pense que não sabe…), nós sabemos. E neste show que até tem direito a música de Danny Elfman, é difícil precisar quem sai por cima: se a eloquência do retratado e o charme arquivista do seu pensamento, se a marca na História que ele nunca quis deixar mas, sejamos honestos, já será tarde para pensar nessas “falsas modéstias”. Infelizmente. (CN)
The Unknown Known (Retratos) será exibido no dia 28 de Outubro, às 16:30, no Grande Auditório da Culturgest e no dia 2 de Novembro, pelas 21:30, na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge.
Kelly (2013) de Stéphanie Régnier
O problema dos filmes (neste caso, documentários) com temas importantes e actuais é muitas vezes terem cinema a menos, assumindo a preocupação de expor uma injustiça ou um caso representativo de um conflito ou o que seja acima de qualquer ideia cinematográfica. Kelly (2013), em que Stéphanie Régnier filma uma jovem peruana a viver na confusão cosmopolita de Tânger obrigada a prostituir-se para continuar a alimentar o sonho de entrar na Europa (mais particularmente, em Paris, França) e reencontrar a mãe lá emigrada. O filme poderia facilmente cair num panfleto acerca das agruras da prostituição e dos desgostos da imigração ilegal. Felizmente, Régnier é cineasta e impõe, desde logo, uma regra ao seu filme [o que é cinema senão um jogo de (de)limitações, o que fica dentro e fora do plano?]: nunca sair daquele quarto com vista para tantos terraços, nos quais há todo um mundo a acontecer, e uma pontinha do Mediterrâneo. Esta metáfora visual (o fechamento dos inúmeros prédios à volta da “protagonista” e o mar e os barcos que o atravessam, símbolos do objectivo que quase se consegue tocar), tão simples, é muito poderosa e dá forma às palavras de Kelly (maioritariamente em francês, como se se forçasse a representar um papel que ainda não é ou nunca será dela), doces quando fala da mãe e dos irmãos, duras e azedas quando se refere ao pai e aos restantes homens. É claro que Régnier não se furta aos temas “quentes”, é ela (fora de campo) quem pergunta a Kelly – uma óptima “personagem”, ingenuamente dura, desembaraçadamente cândida; faz todo o sentido o filme ter o seu nome, visto ser mais sobre si e não tanto sobre o que representa – como se envolveu na prostituição, mas percebe que Kelly não se resume a estes, sendo que, finalmente, consegue retirar de uma história de vida muito particular algo universal: a imigração ilegal, as deportações e constantes tentativas de alcançar o El Dorado, como um Trabalho de Sísifo dos tempos modernos. (JL)
Cara a Cara (2013) de Margarida Leitão
De Margarida Leitão os espectadores poderão lembrar-se de Muitos Dias Tem o Mês (2009) e Design Atrás das Grades (2011). Desses filmes permanece em Cara a Cara a divisão geográfica (em Design a acção dividia-se entre Portugal e a Venezuela e agora divide-se entre Portugal e o México) e a multiplicidade de personagens – como se na multiplicação se construísse um retrato coral (da crise económica ou do mundo da tauromaquia). O título Cara a Cara faz evidente referência à pega de caras que os forcados sempre fazem quando digladiam o touro sem mais nada que o próprio corpo, mas quando enfrentam a besta a sua cara está defronte de um focinho animal e não de uma outra cara; o confronto a que o título se refere é o que opõe a tradição secular dos forcados em Portugal com os primeiros passos dos grupos de forcados amadores no México, que tentam reproduzir o que por cá se faz. A realizadora filma de um lado e do outros as mesmas cenas, as preparação, os discursos motivadores, o acontecimento em si, as maleitas e por aí fora num vaivém meio aleatório que prejudica o filme significativamente ao não se apresentar com um rumo definido ou um formato atingível – por exemplo, tanto opta por filmar tudo com um distanciamento analítico (e descentrando os protagonistas no enquadramento) para logo depois enveredar em enormes planos das faces dos homens. Mas há algo que se destaca, a forma como se filmam os ambientes masculinos – nunca vemos uma mulher ao longo da duração do filme – enchendo-os de uma fraternidade tocante e denotando uma certa infecção do género, isto é, os homens que em casa certamente nada auxiliam nas lides, juntamente com os companheiros passam a ferro os fatos e remendam os buracos (e simbólico disso é o vestir das meias subidas que a realizadora muito bem sublinha) e no extremo cuidado com a apresentação – o gesto de enrolar as faixas em torno da cintura como se de espartilhos se tratassem toma aqui proporções de mantra. É engraçado que todo esse preparo, toda a dedicação, todos os brocados e dourados, tudo isso se encha de sangue na primeira pega – aí o filme de Margarida Leitão funciona muito bem, mas no fundo isso acontece apenas porque se representa fielmente o que há de ‘estético’ no espectáculo das touradas – que não é mais que o choque entre dourados e sangue. (RVL)
Fim de Citação (2012) de Joaquim Pinto e Nuno Leonel
O segundo filme que Joaquim Pinto traz ao Doclisboa este ano [além de E Agora? Lembra-me (2013) que estará a competir pela melhor longa-metragem internacional] é um gesto de solidariedade entre artes. Juntamente com Nuno Leonel, decidiu filmar com três câmaras emprestadas, uma representação em continuidade do espetáculo “Fim de Citação” que o Teatro da Cornucópia decidiu montar em 2010, quando os cortes orçamentais da instituição ameaçaram a sua continuidade. Desta feita, Fim de Citação, ao alternar na montagem três pontos de vista, alargar o plano com o recurso aos espelhos do cenário, destacar detalhes, aproximar, sobrepor, tenta expandir o jogo da cena no jogo da coreografia das câmaras, literalizando o dito célebre de Shakespeare de que o mundo inteiro é um palco. Além disso, se “Fim de Citação” é um espectáculo que alerta para a ameaça do fim do teatro (como se pudéssemos abdicar de explicar e perceber a dimensão cómico-trágica da nossa vida), então o filme de Leonel e Joaquim Pinto é também a cristalização desse grito. Um documento que nos fica deste jogo cénico que utiliza excertos de peças que a Cornucópia tem levado à cena nos últimos quarenta anos e que nos crava na consciência, pela aproximação aos rostos dos actores, pela fixação dos gestos, pelas palavras extraídas da efemeridade da experiência teatral, o peso e o talento do actor marioneta/palhaço, o buraco negro, o arame do palco, a dimensão implacável do espectador, os traços caricaturais da encenação. Se é possível ver fins, desânimos, envelhecimentos, neste espectáculo, o contributo inestimável para a cultura portuguesa do Teatro da Cornucópia e a “Carmagnole” no início mostram como é tempo de acção. E claro, Luís Miguel Cintra é um monumento. Pelo filtro de uma lente ou pelo olho de um espectador o espanto é mesmo. Mas isso já sabíamos… Fim de homenagem. (CN)
Fim de Citação (Programas Especiais) será exibido no Doclisboa no dia 28 de Outubro às 22:00 na sala Manoel de Oliveira do Cinema S. Jorge. Os realizadores estarão presentes.
The Ugly One (2012) de Eric Baudelaire
Após ter vencido o ano passado um prémio especial do júri com The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years without Images (2011), Eric Baudelaire regressa ao Doclisboa para mostrar mais um trabalho sobre a natureza da memória traumática em tempos de guerra, no caso, a guerra do Líbano. Com clara influência no Resnais de Hiroshima, mon Amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959) e mesmo no esquecimento de Marienbad, mas também em Chris Marker, o autor de The Ugly One encontra na polifonia de registos uma correspondência ao cristal da memória e das imagens nela impressas. Convoca o argumentista e realizador da Nouvelle Vague japonesa, Masao Adachi, a quem dedicou o filme anterior, para lhe enviar um argumento que ia realizando à medida que ia recebendo cada pedaço da história. Além disso, pela voz off do japonês vão-se constituindo imagens mentais de um Japão que se contrapõe às de Beirute, cidade onde já secaram as lágrimas e em que as ruínas, as praias desertas, os espaços negros e desolados com poças de chuva e nesgas de luz, são o locus em que Michel e Lili, o casal de personagens da ficção, encontram o tale político, a correspondência física dos seus fragmentos de memória. Nessa heterogeneidade coerente, nesse paradoxo de um real habitado fantasmaticamente pela ficção, Lili recorda a perda da filha, Michel, entre o remorso e a militância, os atentados de que fez parte, Masao lembra a Beirute do exílio e, finalmente, Baudelaire filma contra tudo isto, erigindo uma tapeçaria romântica, política, de fragmentos apontados à percepção de um passado, mas sempre com a intenção de reescrever esteticamente um presente. (CN)