Na recta final do Doclisboa, o Carlos Natálio (CN), o João Lameira (JL), o Luís Mendonça (LM) e o Ricardo Vieira Lisboa (RVL) escrevem sobre os destaques dos últimos três dias do festival. Chamamos à atenção para dois filmes na competição internacional, um sobre a luta das castas mais baixas na Índia e outro sobre um sobrevivente das brigadas vermelhas, e para outros dois na competição portuguesa, um sobre as pescadeiras de Vila Chã e o outro sobre o dia 21 de Dezembro de 2012. Mas, ao que parece, os grandes filmes dos próximos dias são os últimos títulos de James Benning e de Marcel Ophüls, assim como o filme de estreia de Daniel Hui, Eclipses (2013).
Jai Bhim Comrade (2012) de Anand Patwardhan
Depois do massacre de 11 dalit (intocáveis) em 1997 pela polícia indiana, Anand Patwardhan encetou o que viria a tornar-se um épico sobre a contínua luta da casta maldita para atingir a igualdade de direitos na Índia. O documentário tem dois grandes “protagonistas” ausentes: Bhimrao Ambedkar, o dalit que estudou advocacia em Inglaterra e viria a redigir, a pedido de Ghandi, a Constituição da Índia depois da independência, consagrando a igualdade de direitos para todas as castas e religiões; Vilas Ghogre, o poeta dalit que namorou o comunismo e cantou as desgraças da sua gente (a narração dos massacres dos dalit, dos protestos, dos avanços e recuos da sua demanda por justiça é feita através das canções de diversos poetas − uma verdadeira história oral cantada). A primeira causa do massacre de 97 foi a profanação de uma estátua de Ambedkar (Jai Bhim significa vitória a Bhim, ou seja, vitória a Ambedkar), que originou protestos calados ao som de balas. O massacre de 97 foi o derradeiro motivo para o suicídio de Vilas Ghogre, cansado de uma luta que julgava perdida. No documentário Jai Bhim Comrade, Anand Patwardhan homenageia o amigo poeta, explorando as enormes divisões da sociedade indiana, mostrando as castas “superiores” horrorizadas pela horda de gente “suja” que invade Mumbai nos aniversários da morte (e os obriga a fugir por causa do cheiro, dizem eles), ou dispostas a matar por virem a perder estatuto depois da democracia, os políticos perigosos (que se aproveitam dos ódios de casta), os políticos oportunistas (que esquecem quem juram defender quando isso lhes traz algum ganho financeiro), os partidos políticos que só vão aos bairros de lata em alturas de eleições, os mártires, as vítimas acusadas de homicídio, os polícias que escapam sem punição. Todo o sistema que, apesar das leis contra os crimes de ódio, a discriminação positiva, permite que a situação persista. Em vez de luta de classes, a Índia vive uma luta de castas, um assunto vagamente conhecido pelos ocidentais (cujo próprio racismo não faz tais distinções). Seria redutor escrever que Jai Bhim Comrade se resume à denúncia desta questão, mas, mesmo que assim fosse, valeria a pena vê-lo. (JL)
A Mãe e o Mar (2013) de Gonçalo Tocha
Programarem A Mãe o Mar de Gonçalo Tocha nos últimos dias do festival permite, àqueles que o vêm acompanhando, encontrar reflexos dos outros filmes passados na competição portuguesa. Por um lado, retrata-se aqui uma profissão de fim de linha, a pesca, e mais ainda quando essa mesma actividade é feita no feminino (Tocha visita Vila Chã guiado por Glória, a última das pescadeiras), o que também acontecia com Os Caminhos de Jorge (2013) de Miguel Moraes Cabral, que acompanhava o último dos amoladores nas suas andanças. Outro aspecto curioso é que, tal como em A Campanha do Creoula (2013), fala-se aqui do mar e dos que nele trabalham − mas tudo como coisa de outro tempo (se no filme de André Valentim Almeida os relatos provinham de escrituras, aqui têm origem nas conversas dos idosos junto à praia que se entretêm a recordar tempos outros em que o mar era a única fonte de rendimento e todos eles eram novos e frescos). De novo o mar toma figura de proa num filme de Gonçalo Tocha, coisa que já anda filmando desde sempre: Balaou (2007) [vencedor da competição nacional no Indie Lisboa] era não mais que o mar; e É na Terra, não é na Lua (2011) [vencedor da competição internacional no Doclisboa], apesar de estar em terra firme (nem sempre), vivia dessa presença constante da brisa marítima e do imparável som da rebentação. Daí que este convite do projecto Estaleiro para filmar no concelho de Vila do Conde não seja inesperado nem contraditório com aquilo que vão sendo os seus filmes. Mas ao contrário dos dois títulos anteriores, em que sentíamos sempre uma câmara muito saltitante e um certo tom de amadorismo, nesta última investida, Tocha já demonstra um domínio da câmara que é muito salutar, logo a começar pela sequência pré-genérico em que a câmara se passeia em travelings deslumbrantes pelos corredores da Biblioteca de Vila do Conde − ou um movimento de câmara sobre um livro que tem qualquer coisa de conto de fadas. Claro que a presença do realizador frente à câmara se mantém, mas se isso era o que mais me incomodava em É na Terra (o rapaz do som sempre presente ou a câmara que filmava a sua própria sombra), aqui, apesar de se repetir ponto por ponto (como não há muito sol, uma câmara filma a outra), tudo é mais sóbrio e menos impositivo. Talvez esta alteração de coisas se deva ao primeiro plano junto à praia; a câmara está colocada numas rochas e filma as costa e a areia ao longe, começa a rodar numa panorâmica que se vai propagando a todo o redor e que acaba por completar um roda de 360º; nesse percurso, a câmara apanha o perchista e o próprio Tocha, que está sentado junto à câmara à espera que o take termine. Neste plano tão simples, faz-se um resumo do próprio filme: pretende-se dar ao espectador uma visão global do que é Vila Chã e as suas pescadeiras, mas essa visão não pode excluir os que a produzem. (RVL)
Sangue (2013) de Pippo Delbono
Em Sangue, o actor, dramaturgo e encenador Pippo Delbono começou por filmar, ora com o telemóvel ora com uma pequena câmara, a sua relação com um ex-líder das Brigadas Vermelhas, Giovanni Senzani, responsável por actos de violência bárbara, de quem se tornou amigo. Do rosto feroz de Senzani, que se vê em imagens da Rai dos anos 70, resta o ar de avôzinho patusco (o próprio afirma que o facto de agora ser picado por melgas prova que a ruindade lhe saiu do sangue), nada que contrarie o medo da muito religiosa mãe de Delbono por comunistas. Por um infeliz acaso, Margherita Delbono será a terceira “personagem” deste documentário, uma vez que, durante a doença que a fragiliza cada vez mais, o filho tentará prendê-la à vida através das imagens. Mesmo depois da sua morte, ainda na cama do hospital e depois na morgue, Pippo Delbono filma-a prolongadamente. Assim, mais do que sobre o sangue derramado por Senzani ou a sua redenção, Sangue é sobretudo sobre a perda − durante as filmagens, a companheira de Senzani, que, embora não concordasse com as suas actividades terroristas, aguardou por ele todos os anos em que esteve na prisão, morre de cancro. E é justamente depois da perda (dos dois) que Senzani se abre para contar a execução (o assassinato) de um traidor político cujo grito de morte ainda o acorda à noite. Não se lhe nota tanto o arrependimento pelo acto em si, mas a sapiência que veio com a idade de que todas as vidas contam. (JL)
Stemple Pass (2012) de James Benning
James Benning faz de Stemple Pass uma espécie de síntese perfeita do seu cinema, depurando (ainda mais) a sua proposta estética e política. Quatro planos, as quatro estações do ano, quatro planos sobre a mesma paisagem e na paisagem sobre a mesma cabana, cada um com trinta minutos. Em narração over, ouvimos os diários e as confissões de Ted Kaczynski, mais conhecido como the unabomber. Nos anos 70, este homem doutorado em Matemática pela Universidade do Michigan auto-excluiu-se da sociedade, afastou-se dos ruídos da civilização tecnológica, numa espécie de reedição ultra-radical de Walden. Daqui resultou um manifesto e uma acção terrorista (necessariamente terrorista, dirá o filósofo) através de encomendas armadilhadas enviadas (por correio) a professores, cientistas e políticos. Nos quatro planos, a serenidade e respiração da paisagem natural são interrompidas pelos relatos crus, por vezes brutais e primitivos, por vezes perigosamente elaborados, desta voz sem corpo cuja presença se faz simbolizar pela cabana que James Benning construiu à imagem da habitação original. Depois de ouvirmos uma peroração sobre a ditadura tecnológica em que o homem moderno vive, cada som à distância de um helicóptero como que “golpeia” a imagem com um sentido de ironia e de gravidade que até agora estavam apenas implícitos em filmes como 13 Lakes (2004) ou RR (2007). O “comentário à técnica” mistura-se aqui com um desesperante sentido de morte e um choque constantemente insinuado na paisagem audio/visual entre o primitivo e o moderno. Stemple Pass é o grande horror movie de Benning depois de Landscape Suicide (1987), uma versão sublimada desta sua (outra) obra-prima. Uma contemplação sobre a natureza (do homem), a Natureza (que ele defende) e a sociedade (que ele ataca, em “legítima defesa”). Imperdível. (LM)
Portrait of Jason (1967) de Shirley Clarke
My name is Jason Holliday. My name is Jason Holliday. My name is Aaron Payne. Começa assim este intensíssimo documentário de Shirley Clarke sobre as múltiplas máscaras de um homem que vive a vida como uma ficção só sua. E não deve haver grande hesitação em tratar Jason como uma fabricação, um one-man show como o mundo do cinema raras vezes conheceu. Com meia dúzia de palavras, sempre “atiradas” no timing cómico certo, Jason apresenta-nos Jason, conta as suas aventuras feitas de álcool, drogas, sexo homossexual, injustiça racial, abusos vários, humilhações (auto-)infligidas… Pela boca e pelos gestos de Jason, cada descida à decadência é um espectáculo glamoroso, um show de cabaret que não conhece a palavra “culpa” − I’m an experimental queen!, exclama a certa altura, desfazendo-se em gargalhadas. Rimo-nos com ele, das suas imitações de Mae West, das suas anedotas “de rua”, até mesmo das desgraças que presenciou ou viveu. Rimo-nos porque as suas gargalhadas contagiam, mas suspeitamos que, por trás da máscara, ele luta com um sofrimento infinito. Sentimo-nos próximos da sua pele e, para tal, muito contribui o dispositivo da entrevista usado em toda a sua nudez conceptual. Clarke percebe que o teatro de máscaras de Jason vale por si só, que não precisa de qualquer sublinhado que não nasça do contacto espontâneo do seu corpo com a presença (muito activa e, no final, provocadora) de quem filma. Um dispositivo descarnado para um filme que, à imagem de todo o cinema de Clarke, é “só corpo”. O filme fere nos últimos minutos, porque Jason é constrangido por quem, do lado de cá, filma. Quando the act is over, Portrait of Jason, que antes nos fizera rir com desconforto desta história de vida, faz cair o realismo de cabaret e dá-nos a ver o que as máscaras escondiam: sim, Jason, sem chapéus, plumas, sem acts, não era mais do que o frágil e acossado Aaron Payne. Simplesmente, “ele, um negro”. Simplesmente, ele, um homem. (LM)
Eclipses (2013) de Daniel Hui
Daniel Hui tem 25 anos e está a fazer a sua primeira longa-metragem. Nela decide filmar, entre outras coisas, o seu avô. Este está preocupado pois a maioria das pessoas depois de estudar começa a trabalhar e o seu neto decidiu fazer filmes. “Fazer filmes não te vai dar dinheiro”, diz o avô. Daniel sorri, mas isso não o vemos, é o avô que no-lo diz novamente. Através de um olhar peculiar, filtrado por uns 16 mm de cores esbatidas, o jovem cineasta de Singapura filma mais um eclipse, e o “eclipse” ele próprio, de olhar cansado, sorri. Num registo austero e comovente, Eclipses fala sempre da circularidade serena do tempo, do eclipse das coisas que retornarão: uma mulher que diz adeus ao marido falecido recompondo a sua vida, a idade jovem que desaparece para dar lugar à idade adulta, a rotina quotidiana do documental com irrupção de canções que falam de um amor por um país distante ou por um amor mítico por quem tudo se deu. A câmara de Hui está sempre entre espaços: perto de mais a esconder todo o espaço ou retraída na penumbra a reclamar uma serenidade da observação e do bom ouvinte. São os rostos cortados, os cigarros reais ou imaginários, as histórias de sonhos e fogos que se observam de fato bonito posto, o que importa realmente. Eclipses tem essa virtude, pouco comum, que procede do que é presente e próximo, fechado em enquadramentos cerrados, para falar do que vai deixar de estar, da imortalidade do ser humano e dessa alternância do que sempre vive em nós: o espectador e o actor. Eclipses, um dos mais belos filmes vistos até agora, é pleno de maturidade e, sem ancestralidade mágica, chama Apichatpong para dizer este adeus como saudação inicial. Dizer adeus pressupõe sempre que alguém vai deixar de estar ou, quem sabe, que ainda não está. (CN)
Un Voyageur (Ain’t misbehavin, 2013) de Marcel Ophüls
Marcel Ophüls conta a dada altura de Un Voyageur (Ain’t misbehavin, 2013) como foi uma das últimas pessoas a visitar o seu amigo François Truffaut e de como ele, doente, cheio de cortisona, lhe fez prometer à porta de casa que iria escrever as suas próprias memórias. A promessa foi cumprida e enquanto as memórias do “filho do papá” − Max Ophüls, bem entendido − não podem ser lidas, os cinéfilos empedernidos têm aqui a oportunidade de viajar pela memória de Marcel (e em pleonasmo pela história do cinema), aproveitando os seus dotes de raconteur, numa postura romanesca muito própria, os braços e as palavras bem abertos, convidando a mitificar o seu próprio passado, pleno de nostalgia e estrelas. Essa abertura, entre a auto-celebração e a generosidade para com gente como Jeanne Moreau, Otto Preminger, Frederick Wiseman ou o próprio Truffaut [que o ajudou com o seu primeiro filme a solo, Peau de banane (1963), com Moreau e Belmondo, mas também com a distribuição em sala, em França, da sua obra-prima, interdita durante anos, o documentário Le Chagrin et la Pitié (Tristeza e Compaixão, 1969)], talvez seja hoje a consolidação de todo um esforço de carreira. Como diz Marcel frequentemente, “o meu problema é que eu sou o filho de um génio”. A viagem neste labirinto de memórias e frases particulares (Marcel usa muito a expressão: “lembras-te do que disseste quando…?” e muita gente já não se lembra bem…) viaja entre países e registos mais ou menos confessionais. A fuga com os pais para França, o exílio nos Estados Unidos (com direito a anedotas sobre Preston Sturges e Howard Hughes quando trabalharam com Max Ophüls no thriller pouco conhecido Vendetta, de 1950), o regresso à Europa e começo de carreira, a desconfiança da traição da sua mulher Regine com o realizador de Les quatre cent coups (Os quatrocentos Golpes, 1959), o quase affair com Marlene Dietrich. Episódios quase inesgotáveis de uma carreira na sombra do estrelato − Marcel era tímido −, mas que marcou com uma voz grave, nas traseiras do mediatismo, o seu espaço na história, sobretudo com os seus largos documentários sobre a segunda guerra mundial. Entre a seriedade dessas obras e a leveza do homem em first person, Un Voyageur é uma viagem com suficientes “pontos de atracção” para poder ser apreciada. (CN)
Dast-Neveshtehaa Nemisoosand (Manuscripts don’t burn, 2013) de Mohammad Rasoulof
Tal como tinha acontecido com Jafar Panahi em 2010 em Cannes, Mohammad Rasoulof é a ausência mais notada desta edição do Doclisboa. Convidado para Presidente do Júri da Competição Internacional, mas impedido de comparecer devido à proibição de saída do Irão, a organização do festival decidiu manter a sua cadeira vazia como sinal de apoio para com o cineasta e de denúncia do desrespeito pelos seus direitos civis e humanos. O acto simbólico estende-se à decisão de encerrar o festival com o seu último filme Dast-Neveshtehaa Nemisoosand (Manuscripts don’t burn, 2013), rodado de forma “invisível” no país, com créditos finais em branco com medo de represálias sobre a equipa técnica. Se o acto, dizíamos, é simbólico, o filme de Rasoulouf, vencedor do prémio FIPRESCI da associação internacional de críticos de cinema em Cannes este ano, não podia ser mais directo na denúncia da perseguição e eliminação dos traços narrativos culturais que possam pôr em causa a “hegemonia” política do regime de Mahmoud Ahmadinejad. Em obras como Fahrenheit 451 (1953) de Ray Bradbury, em que os livros são para queimar, ou em 1984 (1949) de George Orwell, em que os adjectivos devem ser suprimidos como sinais de pensamento crítico e individual, o ambiente que os unifica é a distopia da ficção científica. Em Manuscripts há a paranóia da perseguição aos escritores num ambiente político bem presente, mas aqui os manuscritos não ardem, isto é, eles permanecem, ainda que sob a forma de memória, além da morte dos seus autores. Rasoulouf filma essa perseguição, mostrando também o outro lado (o protagonista é mesmo um dos seus assassinos que precisa de dinheiro para hospitalizar o seu filho, doente), e, com essa degradação circular, fica-se com uma ideia de cansaço generalizado de vítimas e carrascos. Interrogatórios, torturas, traição, remorsos, vontade de sair, de respirar da grelha apertada sobre o pensamento são os sentimentos e as acções comuns deste thriller ficção de tom documental que mostra como é a vida do realizador nos últimos anos, mas também o sistema cultural no seu país. Por agora, de lá só vão mesmo saindo, a custo, os filmes. Premiados, aplaudidos de pé ante cadeiras vazias, eles são sinais de sensibilização para um mundo que vai vendo a censura e que não sabe bem como lhe fazer frente. É especialmente escura a sala quando se vê Manuscripts don’t burn, em particular quando nos apercebemos de que os filmes são tudo o que temos… e eles parecem não bastar. (CN)
Twenty-One-Twelve The Day the World didn’t end (2013) de Marco Martins
Para os menos atentos, Marco Martins é o realizador de Alice (2005) e de Como Desenhar um Círculo Perfeito (2009). Este é o seu primeiro documentário a solo [Traces of a Diary (2010) era uma co-realização com André Príncipe, que também este ano se lançou a solo com o documentário Campo de Flamingos sem Flamingos (2013), estreado na competição portuguesa do Indie Lisboa], mas permanece nele de forma muito vincada aquilo que é característico do seu trabalho ficcional: o rigor da câmara, a fotografia muito cuidada, a construção lenta de atmosferas densas e carregadas. Se isso permanece, também acontece que o formalismo descritivo das suas ficções se propaga para o documentário, isto é, o realizador constrói um formato fixo de episódios que segue até ao limite − são doze personagens espalhadas pelo mundo fora todas filmadas no dia 21 de Dezembro de 2012, o suposto último dia da terra, segundo o calendário Maia. São mais de duas horas de filme e cada personagem tem direito a dez minutos bem medidos, a câmara passeia-se pela Índia, pelo Japão (o mesmo Japão de Traces), pelo Reino Unido, por Itália e também por Portugal (aliás, onde mais se demora − das 12 figuras, quatro estão em Portugal e uma está emigrada), todos eles países do hemisfério norte e portanto todos invernosos (situação comum às ficções e aqui sublinhada pelas legendas que informam sobre os locais filmados e a sua temperatura − ainda que a Índia seja pouco tocada por essas flutuações). Mesmo descontando esse gosto estetizante de ver o mundo (não fugindo de um certo exótico oriental ou de uma certa ruralidade de caricatura no norte do (nosso) país), a grande interrogação que o filme me coloca é uma de omnipresença: supostamente todas as cenas que vemos são filmadas no mesmo dia do ano (e no mesmo ano) em partes muito distantes do mundo, sendo que a fotografia esteve a cargo do próprio Marco Martins, o que levanta um problema: como pôde estar o realizador ao mesmo tempo em locais tão distantes? Evidentemente não pôde. Então para quê os subtítulos informativos? Esta situação infesta o filme de um sensação de falsidade, como se tudo fosse encenado, contrariando o desejo do realizador de mostrar as actividades humanas num dia específico da história. O segundo problema prende-se com o desejo de mostrar um mundo globalizante e globalizado, essa ideia de que estamos todos ligados e de que independentemente da nossa origem e cultura todos somos humanos e irmãos, à custa de impor a formatação dos personagens a instrumentos − o astrofísico, que serve para apresentar uma equação que liga tudo, Gonçalo M. Tavares, que funciona como comentador-súmula, ou Michelangelo Pistoletto, que desenha uma figura circular como que premonitoriamente avisando da intenção do filme. Mas talvez o mais incomodativo seja o ritmo de ram-ram que não anda nem desenvolve − lá está, o formalismo a sobrepor-se ao resto − ou como escreveu Jorge Mourinha a propósito doutro filme seu: “Fica-se com a ideia de um filme controlado, até demasiado controlado, que espera até ao fim por um momento libertador, por um gesto que o rasgue, que vire do avesso o seu torpor descritivo“, mas esse momento nunca chega… (RVL)
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