Agora que o cinema anda por todo o lado, em mostras (e monstras), festas, ciclos, festivais e outros que tais, vemos eventos como o Doclisboa como uma figura paterna (que, não tendo ainda a maioridade – apenas 11 edições -, já se mostra como pai de família extremoso, acolhendo amigos distantes e vizinhos para uma almoçarada de 11 dias).
Sente-se, no entanto, que este ano, por condicionantes várias – onde o financiamento não há-de ser uma variável de somenos importância – na preparação da enorme refeição cinéfila, faltaram alguns ingredientes que consideramos fundamentais. É com pena que vemos esse enorme prato principal de nome Claude Lanzmann passar para as mãos dos chefes franceses da Festa do Cinema Francês – com a antestreia de Le Dernier des injustes (2013) e a retrospectiva que antecipou o lançamento em DVD de Shoah (1985) -, assim como se nos humedecem os olhos ao ver que um dos filhos queridos do festival lisboeta prefere a sua nova família. Falamos de Gianfranco Rosi – vencedor do Prémio Cidade de Lisboa com El Sicario, Room 164 (2010) – que vem a Lisboa apresentar o seu novo filme (premiado este ano com o galardão máximo em Veneza), Sacro Gra (2013), ao Lisbon & Estoril Film Festival, bem como uma retrospectiva da sua obra. Também ausente da programação está o mais recente título de Werner Herzog, em mais uma edição da sua série prisional On Death Row (2013), que, pelas relações que tem com o IndieLisboa (que o homenageou como herói independente há uns anos), terá preferido esse festival, assim como Joaquim Pinto que, estando na competição internacional com E Agora? Lembra-me (2013), estreou-se por terras lusas na última edição do Queer Lisboa. Mas talvez a falha mais grave – ou mais triste -, um tio daqueles que nos faz sempre rir, seja a ausência de Boris Lehman, com a continuação em formato épico de 404 minutos de Mes entretiens filmés (2013), que foi apresentado na última edição do Cinéma du réel.
Mas o segredo do mestre cozinheiro não é fazer óptimo com bom, é fazer óptimo com o que consegue, e esta edição do Doclisboa é disso exemplo: um festival onde os amigos do costume não puderam faltar e onde os pratos típicos (feitos com anos de prática e dedicação) são a aposta forte. Por isso mesmo, a edição deste ano assenta as fundações em 8 (sim, oito!) sessões especiais onde se destacam os filmes dos companheiros de longa data: Frederick Wiseman, com o seu mais recente At Berkeley (2013), sobre a universidade do mesmo nome, e Un Voyageur (2013), uma viagem pelas memórias do realizador Marcel Ophuls, pela mão do próprio. Também em jeito de viagem pelas recordações de uma vida – desta feita, anti-memórias – temos o mais recente título de Jonas Mekas, Outtakes from the Life of a Happy Man (2012), composto por pedaços de filmes perdidos (os ditos outtakes) que se foram acumulando nas prateleiras do realizador ao longo dos anos – e incluído na secção Riscos, comissariada por Augusto M. Seabra. Note-se que todos estes realizadores foram já homenageados pelo festival em edições anteriores. E não me posso esquecer do mais recente filme do grande Errol Morris sobre o senhor Donald ‘flor no meio da merda’ Rumsfeld, arquitecto da invasão do Iraque, The Unknown Known (2013).
Também na secção Riscos, podemos encontrar outros nomes recorrentes do festival, nomeadamente João Pedro Rodrigues [com duas curtas feitas para Guimarães e Veneza], James Benning [com Stemple Pass (2012), apresentado este ano em Berlim e sobre o qual o Luís Mendonça já aqui escreveu], Nicolas Provost [com três curtas] e ainda Jafar Panahi com o seu último filme Pardé (Closed Curtain, 2013), vindo da selecção oficial de Cannes 2013. E claro, a estreia portuguesa de Redemption (2013) de Miguel Gomes (que estará nas salas comerciais dentro de pouco tempo).
Mas recentremo-nos nas secções competitivas do festival. Na competição internacional, os destaques são como a pescada que antes de o serem já o eram: Wang Bing – vencedor do grande prémio do ano passado – com o mais recente Feng Ai (’Til Madness do Us Part, 2013), vindo direitinho do Lido para os espectadores portugueses, assim como o já referido E Agora? Lembra-me, vindo muito premiado de Locarno – sobre o qual já escrevi aqui. Na competição de curtas, chamo a atenção para a entrada de Ben Russel, em parceria com Ben Rivers, habitué(s) do festival, assim como para ’A Iucata (The Bet, 2013) – filme de extraordinário rigor sobre a competição nas corridas de cavalos – ou o mais recente filme de Harun Farocki, Ein Neues Produkt (A New Product, 2012) – outro dos ex-homenageados.
Na competição nacional, vários são os nomes já conhecidos: Susana Nobre com Vida Activa (2013) (sobre ‘as novas oportunidades’), Margarida Leitão com Cara a Cara (2013) (sobre os forcados), Gonçalo Tocha – o vencedor de há dois anos com É na Terra, Não é na Lua (2011) – que apresenta agora A Mãe e o Mar (2013), vindo de Vila do Conde, onde foi produzido através do projecto Estaleiro (e sobre o qual já aqui se escreveu, pela pena de João Araújo), ou Marco Martins que regressa à competição nacional do festival com Twenty-One-Twelve The Day the World didn’t end (2013). Nas curtas nacionais, os nomes também já nos são familiares: Salomé Lamas – a grande vencedora do ano passado com Terra de Ninguém (2012), que se estreia brevemente em parelha com o referido filme de Miguel Gomes – com Theatrum Orbis Terrarum (2013), Marcelo Félix [que conhecemos de A Arca do Éden (2011)] com Flor e Eclipse, ou Tabatô (2012), a curta de João Viana que o levou à Berlinale [cujo Ó Marquês, Anda Cá Abaixo Outra Vez! (2012)] foi apresentado o ano passado no festival na secção Cinema de Urgência].
Este ano o Cinema de Urgência dedica-se à guerra civil na Síria – apresentando uma série de pequenos filmes (1, 2, 3 e 4 minutos) de produção colectiva através da produtora de cinema documental Abounaddara -, à continuação das evoluções e revoluções no Egipto e aos confrontos no Brasil e na Turquia, num bloco a que chamaram The Revolution will not be televised, it will be twitted. Por fim, o quarto destaque faz-se sobre as recentes manifestações anti-gay em França (aquando da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo) e a repressão de homossexuais na Rússia.
O cinema à volta das outras artes encontra-se nalguns títulos do festival: o teatro, pela parelha improvável de Fim de Citação (2013), Joaquim Pinto e Nuno Leonel, que se debruça sobre a peça do mesmo nome exibida na Cornucópia em 2011 – resultado dos cortes transversais que o teatro sofreu nesse ano – e o filme de Catarina Neves sobre o encenador Joaquim Benite, recentemente falecido, A Última Encenação de Joaquim Benite Não basta dizer “Não” (2013); a escrita, com o documentário sobre António Fonseca – de nome 8816 Versos (2013) – na sua preparação para a declamação em extensão d’Os Lusíadas no decorrer das actividades de Guimarães, Capital Europeia da Cultura, ou Tempo/ Espaço de Tiago Afonso sobre Memórias do Cárcere de Camilo Castelo Branco – filmado no estabelecimento prisional de Guimarães -; a dança, com Rain (2012), filme que acompanha a apresentação da peça com o mesmo nome, de Anne Teresa De Keersmaeker, pelo Ballet de l’Opéra de Paris; o próprio cinema, através do retrato de Béla Tarr, Tarr Béla, I used to be a Filmmaker (2013), ou de The Great North Korean Picture Show (2012) onde, pela primeira vez, ocidentais puderam visitar e filmar a escola de cinema da Coreia do Norte; e, por fim, a música (a qual tem secção própria, Heart Beat), onde se destacam o filme sobre os The National, Mistaken for Strangers (2013), filmado pelo irmão do vocalista durante a sua última digressão mundial, assim como Pokazatelnyy Protsess: Istoriya Pussy Riot (Pussy Riot: A Punk Prayer, 2013) sobre as performers que deram a volta ao mundo a partir da prisão onde ainda estão detidas. Mas talvez mais interessante que esses seja a sessão dupla composta por Death Metal Angola (2012) e I Love Kuduro (2013), que acompanha os dois fenómenos musicais no país cuja parceria estratégica com Portugal acabou de cessar.
Este ano a retrospectiva é dedicada a Alain Cavalier, que o leitor-espectador recordará dos recentes Irene (2009) e Pater (2011). Sendo integral, mostram-se também esses filmes, e todos os outros. O realizador que conheço melhor da câmara amadora e do vídeo-diário mostrar-se-á pelos seus filmes, desde Le Combat dans l’île (Fire and Ice, 1962), passando por Thérèse (1986), até ao filme resumo (?) Le Filmeur (Filmman, 2005). Também em jeito de retrospectiva, mostram-se três documentários de Patricio Guzmán no ciclo 1973–2013. O Golpe Militar no Chile: 40 Anos Depois, ou ainda, no âmbito da secção Retrospectiva Moving Stills – Fotografia, Fotógrafos e Documentário (comissariada por Federico Rossin, que o ano passado organizou a ‘mostra’ de cinema colectivo United We Stand, Divided We Fall, sobre a qual a Sabrina D. Marques produziu dois excelentes textos, primeiro e segundo), mostram-se filmes de Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Man Ray, Chris Marker, Ken Jacobs, Harun Farocki, entre tantos outros.
Mas é da natureza dos festivais dar a conhecer nomes estreantes, revelar novos criadores, introduzir novos autores aos festivaleiros; por isso mesmo, termino com um conjunto de apostas, tiros no escuro, esperanças sem grande fundamento, jogos de azar – de novos e menos novos realizadores: Casa Manuel Vieira (2013) de Júlio Alves, que continua a interessar-se por arquitecturas, só que desta vez a casa traz o monumental e eterno candidato Vieira; Just Ancient Loops (2012) de Bill Morrison, que usa digitalizações em alta definição de antigo material de arquivo em nitrato juntamente com imagens criadas digitalmente, tudo ao som de Michael Harrison; Dime quién era Sanchicorrota (Tell me about Sanchicorrota, 2013) sobre o mito de um Robin Hood na Espanha do século XV; e, por fim, Os Caminhos de Jorge (2013) de Miguel Moraes Cabral, sobre as andanças de um amolador chamado Jorge.
Para esta edição do Doclisboa, o À pala de Walsh convoca as 8 mãos dos seus quatros redactores que cobrirão o festival: o João Lameira debruçar-se-á sobre a Competição Internacional de Longas e o Ricardo Vieira Lisboa sobre a Nacional, o Luís Mendonça dedicará a sua atenção à Retrospectiva Moving Stills e, por fim, o Carlos Natálio ficará com o a secção Riscos, as sessões especiais, as Investigações, o Heart Beat e os Retratos.