Tive um professor que gostava de iniciar a sua cadeira de Lógica com uma piada sobre a diferença entre coerência e consistência (isto porque em inglês consistency of a theory traduz-se para português como uma teoria coerente – isto é, que não contem contradições), sendo que a punch line era o facto de a consistência ser o adjectivo usado para descrever a merda do bebé. Don Jon (2013) é um filme que espelha, de forma muito evidente, a diferença entre as duas expressões, dado que é um exemplo de um filme consistente, no sentido em que é encorpado (do ponto de vista formal), mas é dificilmente coerente, isto porque lhe falta conformidade entre os propósitos dramáticos a que se propõe e aquilo que alcança.
Don Jon começa, no genérico de abertura, com um segmento dos Looney Tunes onde uma voluptuosa mulher animada atravessa o ecrã e o personagem masculino aprecia o monumento parcamente vestido e na excitação se vê com os globos oculares fora das cavidades próprias – já a meio caminho entre si e o objecto do desejo. Funciona esta primeira sequência como aviso de duas coisas: uma, de que a sexualidade está presente em todas as formas de consumo e em todas as faixas etárias, que é natural ao ser humano como qualquer outra necessidade fundamental – isto é o que Joseph Gordon-Levitt pretende transmitir -; outra, que o que estamos prestes a ver é um exercício sobre a sexualidade que toma como farol as caricaturas loonáticas nos seus excessos e planura dramática. Esta segunda perspectiva é a que mais me interessa, isto porque me venho apercebendo que são os realizadores (e os filmes) que não têm medo de se lançar às caricaturas, de viver na vertigem do ridículo, de vaguear entre o sublime e o simplesmente estúpido que mais merecem a minha atenção.
Mas antes de lá chegarmos parece-me importante referir que Gordon-Levitt consegue uma série de coisas particularmente divertidas e que o revelam como alguém que tem um par de ideias sobre a composição do plano e a montagem. Dessas ideias destaca-se a forma como o realizador-escritor-protagonista constrói a rotina do seu personagem principal e a forma como progressivamente a vai desequilibrando – sempre os mesmos planos do quarto (fazer a cama), do ginásio (um travelling a trás ao longo do corredor), da igreja (um contra-picado que enquadra o personagem e o cume da torre sineira, ou o grande plano da face no confessionário), da roda do loading, e por aí fora. A estratégia é simples, cria-se uma linguagem visual que acompanha o dia-a-dia do protagonista e, através de mudanças ténues (a colocação da câmara altera-se, o travelling pára a meio, as sequências inicialmente com câmara fixa passam para o ombro), introduz-se uma sensação de desconforto no espectador que, tal como Jon, não sabe bem como lidar com a mudança. É através deste trabalho de rotina que se introduz – entre a família, o trabalho e o fitness – a dependência de pornografia que é o tema do filme e aquilo a que o título original se referia, Don Jon’s Addiction. Ao introduzir este aspecto da vida de Jon como se tratasse de apenas mais um das suas tarefas diárias (tão importante como aspirar o tapete da sala) evita-se o julgamento do personagem. Este cuidado tem como objectivo introduzir um personagem ao espectador de forma a que não se criem anti-corpos e mais, que essa introdução se faça com afectuosidade e identificação (subvalorizando a dependência do rapaz que chega a masturbar-se mais de 30 vezes numa semana). Ou seja, formalmente o filme progride impecavelmente no sentido de criar uma comédia romântica limpinha e elegante que contraria os caminhos óbvios, mas que chega aos mesmos fins.
O grande problema é o tal da coerência, isto porque o trabalho de direcção de actores contraria a “perfeitura” do resto: Scarlett Johansson, sempre que aparece em cena, masca uma pastilha e faz de boneca insuflável que tem o problema de conseguir dizer coisas, Julianne Moore faz de mulher madura e livre de preconceitos – que evidentemente tinha que gostar de dar umas passas ilegais e de umas quecas estouvadas -, Tony Danza faz o pai italo-americano que bebe cerveja e vê futebol americano [meu rico Robert De Niro em Silver Linings Playbook (Guia para um Final Feliz, 2012), que fazia um boneco em tudo semelhante, mas que ao menos era mais divertido]. Ou seja, por um lado o senhor Levitt quis refazer (remodelar?) a comédia romântica cumprindo uma lista de requisitos mínimos, mas por outro lado quis ser destrambelhado, brincar com os estereótipos da masculinidade, num jogo cartoonista, e o resultado é o espectável: um desejo de seriedade dinamitado pelo traço grosso dos personagens.
Mas tomara que todos os males do filme fossem esses – aliás, tomara que Levitt fosse menos inteligente na composição do plano. O que incomoda acima de tudo é a limpeza com que se filma o sexo; um filme sobre a dependência de pornografia não pode limitar-se a mostrar umas maminhas aos saltos e a usar uns clips inocentinhos do Pornhub. Joseph Gordon-Levitt – que em sigla se escreve JGL, a diferença que faz uma troca de letras… – não se atreve nunca a fazer mais do que insinuar (naquela voz off descritiva que se limita a explicar o que estamos a ver – ou que queríamos ver mas que ele nunca ousa mostrar). Ao lado disto os irmãos Farrelly são mestres do cinema: a construção de personagens é incomparavelmente mais elaborada – logo a começar pelo facto de nos seus últimos filmes estarem a filmar homens quarentões que se vêem a braços com a impotência ou a solidão -, a ousadia é máxima (sexual, mas também cinematográfica) e o jogo com os arquétipos da masculinidade são o pão para a boca desses realizadores – mas o senhor Levitt é ovacionado e os irmãos apanham por tabela a cada filme seu, simplesmente porque têm tomates para fazer um filme com tomates (e pilas, e patarecas, e diarreia, e vómito e todas essas coisas que se convencionou chamar de humor fácil, sendo que fácil é fazer um filme como Don Jon onde o arrojo ficou à porta e a simpatia tomou o seu lugar).