Estreias de Ozus ao fim de sessenta anos. Kiarostami no Japão. Velhos em tabernas com bancadas de mármore a discutirem acaloradamente Ozus e Naruses enquanto emborcam tintos e desferem golpes sem misericórdia na bisca lambida. Até aquele spot da MEO com japoneses caricaturais. Foi assim em Setembro de 2013, com o nosso país embrenhado em entusiasmo nipónico como já não se via desde 7 de Dezembro de 1941, quando o Doutor Oliveira Salazar enviou um postal ilustrado repleto de congratulações para o Imperador Hirohito, dois minutos antes de enviar um postal ilustrado cheio de lamentações para Franklin Roosevelt, meia dúzia de minutos antes de combinar mais um carregamento de volfrâmio para a Alemanha, vinte e quatro minutos antes de telefonar a Churchill e assegurar que o coração de todos os portugueses, da metrópole às províncias ultramarinas, estava com os Aliados, dezanove anos antes do nascimento de Takashi Miike.
Se reflectirmos no Japão como país com as suas complexidades históricas, as suas deambulações entre a tradição e a modernidade, entre os rigores familiares, as concepções de honra e a parafernália tecnológica, entre as geishas e os mangas, entre os samurais e o porno mais bizarro à face do sistema solar, então temos em Takashi Miike o mais fiel agregador cinematográfico das últimas duas décadas de todo esse conjunto de disparidades. Uma esponja sistemática e a carburar sem parar, pois só entre 2001 e 2002 (a época das suas obras-primas), segundo a Wikipedia, este homem realizou quinze filmes, dispensando dormida, comida e demais actividades recreativas para o bem-estar humano.
E se reflecte um Japão longe da pitoresca-imbecil visão ocidental, Takashi tem uma filmografia igualmente variada, onde cabem comédias familiares, musicais, filmes de terror, dramas familiares, e, claro, o género por excelência onde se define a sua carreira, o filme de yakuza. Por vezes mistura todos estes ingredientes no mesmo filme, para deleite dos adeptos da expressão “objecto inclassificável”. Em comum a quase todos esses géneros está uma perspectiva sobre a vida no limiar da banda desenhada, com fantasias que só podem sair da cabeça de alguém que, se não fosse realizador de cinema, andaria provavelmente a cortar cabeças por aí e a atarrachá-las em cima de postes de alta tensão. Como ficar indiferente a Koroshya 1 (Ichi the Killer, 2001) ou ao espantoso Bijitâ Q (Visitor Q, 2001), onde a harmonia familiar só poderá ser conquistada à base de homicídio e incesto? Estamos muito longe dos gulosos sakés e do sorriso do Chishû Ryû, de facto.
Felizmente que este “cinema choque” está diluído em toneladas de humor sardónico, paredes meias com o do outro homem que só nos tem dado alegrias nos últimos vinte anos, de seu nome Kitano. Portanto, se, por qualquer razão que desconhecemos, o Antichrist (Anticristo, 2009) tivesse um remake, ele só poderia ser dirigido por Miike, que transformaria todo aquele pastelão pseudo-metafísico em algo de nos levar às lágrimas de comédia. Ninguém se espantaria se a célebre raposa surgisse na tela de garfo, faca e babete, pronta para degustar as suas próprias tripas num belíssimo caldeirão de diversos tipos de molhos.
Nos primórdios da sua filmografia, Takashi realizou Gokudô sengokushi: Fudô (Fudoh: The New Generation, 1996), já inserido no seu registo de yakuza lover, onde há hermafroditas, parricídios, japoneses cabeludos de dois metros, fast food e espadas de samurais, tudo harmoniosamente congeminado numa descabelada perspectiva sobre a vida escolar (qual?) japonesa, em que as tradicionais vestes dos alunos e alunas apenas surgem como sinais icónicos de um Japão cartoonizado e facilmente exportável para mentes tolinhas, onde se misturam polvos e meninas de farda escolar. O resultado de tudo isto é que não fazemos ideia do que estamos para aqui a escrever, embora não deva ser coisa boa.
Esta algaraviada poderia estar resumida numa das mais memoráveis cenas de Gokudô sengokushi: Fudô, uma em que todas as marcas de Takashi estão impressas a frames de ouro. Sons onomatopaicos sincronizados com uma montagem exemplar, imagens singulares do interior de uma vagina (muito antes de ti, Gaspar), uma música entre a pura coolness e a o kitsch mais esgroviado, e estúpidos yakuzas com o seu costumaz tom de voz de quem bebe quinhentas bagaceiras por hora. Que tudo isto tenha a sua génese numa banda desenhada não iliba Miike de cometer variadas vilanias aos olhos de gente decente e com bom gosto. Para piorar ainda mais, o seu filme preferido é o Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997), de outro homem que, se houver justiça, nem terá direito ao purgatório, tal o mal que tem feito ao mundo dos decentes e do bom gosto.