A cena final de Children of Men (Os Filhos do Homem, 2006), em que Theo (Clive Owen) e Kee (Claire-Hope Ashitey) estão à deriva num barco a remos com o único bebé do mundo que poderá ser a solução para o problema de infertilidade mundial que assolou a humanidade, deixa pistas eloquentes para contextualizar Gravity (Gravidade, 2013), o mais recente filme de Alfonso Cuarón. Este abre com a pesada frase de que a vida no espaço é impossível. É sobre essa impossibilidade física, que em Children é uma impossibilidade genética, que o cineasta mexicano constrói uma odisseia darwinista de sobrevivência que implica um recomeçar do zero. No primeiro filme, é um bebé que permite reactivar a cadeia reprodutiva. No segundo, é o regresso à terra que possibilitará a Ryan Stone (Sandra Bullock) recomeçar a viver (e, literalmente, a andar, na reconquista da gravidade) após o trauma da perda do seu filho (outra vez a experiência da maternidade em causa, aqui interrompida abruptamente). Além disso, o barco – que ali é o espaço de fronteira com um não-espaço (o mar), que permite concentrar a tensão – aqui é representado pelo confinamento dos fatos espaciais e do interior das estações separando a vida da deriva pura, separando a tensão dramática de um universo infinito de possibilidades.
Esta breve diatribe autoral entre os dois filmes permite estabelecer uma lógica de circulação entre os atributos da física e da metafísica presentes em Gravity. É quando o espaço físico natural não tem fim (o espaço, o mar, o deserto) que há maior necessidade de pôr fim a uma noção material de vastidão e lançar mão de uma dimensão metafísica que reequaciona a pequenez da condição humana, a necessidade de continuar a viver, mesmo quando a probabilidade de isso acontecer é ínfima. Não é por acaso que, do lado de lá, a “observar”, constante, está essa meta-personagem de olho azul: o Planeta Terra. Ela observa tanto aquilo que os astronautas Sandra Bullock e George Clooney fazem para sobreviver como o faz o espectador do lado de cá. Essa é a abordagem oblíqua, que permite problematizar a extinção da humanidade, de forma muito mais eficaz que os monólogos directos e desnecessários (o pior do filme, o resíduo) que, pela boca de Ryan (quando fala directamente com o filho morto) e pela boca de Matt (Clooney fala de quão belo é o nascer do sol no Ganges, por exemplo), vão dessincronizando o Drama com os “dramas”.
Percebe-se que se trata no caso de preencher o silêncio do espaço e o isolamento das personagens com palavras que veiculem sentimentos. Mas isso afasta o filme de uma pureza da relação entre background (o forte do cinema de Cuarón, como refere Slavoj Žižek acerca de Children of Men) e foreground (o roller coaster visual e auditivo da experiência no espaço). Só por isso, já é bem clara a distância da impenetrabilidade face a 2001: a Space Odissey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) de Stanley Kubrick. No filme de Cuarón, a gravidade e o silêncio norteiam o trabalho de câmara e do som.
Embora tenhamos visto o filme a 2D, a noção de profundidade de campo é tal que a terceira dimensão está já presente, quer pela forma como os longos planos-sequência fazem a câmara simular (e este é um filme onde as simulações não são vistas positivamente) a ausência de gravidade, quer pela flutuação dos objectos (o buda, as peças de xadrez, os garfos, as fotografias, os parafusos….), que se aproximam e afastam constantemente. Daqui parte uma possível e curiosa alternância entre a beleza do espaço e o seu horror (Ryan diz que o odeia). A beleza é essa brecha aberta em Gravity para um filme que documenta o próprio avanço da tecnologia cinematográfica (esteve quatro anos “à espera” de ser terminado, enquanto se desenvolvia a tecnologia adequada à visão de Cuarón) e que trabalha a composição, sobretudo na relação com os detritos espaciais em fundo negro, como se de uma pintura abstracta se tratasse. Pintura CGI, essa que foi sendo complementada pela iluminação real da fotografia de Emmanuel Lubezki [The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011)]. O horror vem da já referida adversidade que explora as ligações entre Ryan e Ripley [Alien (Alien – O 8º Passageiro, 1979)] – até pela postura atlética de ambas, o trabalho sobre a respiração e a claustrofobia no interior do capacete espacial –, mas também da sobrevivência, marcada por acções muito específicas que remetem Gravity para a experiência subjectiva dos videojogos e a sua progressão por níveis [Ricardo Vieira Lisboa fala disso aqui a propósito de After Earth (Depois da Terra, 2013) de M. Night Shyamalan]. Sonoramente, a ideia de silêncio espacial surge trabalhada a partir da propagação do som através das vibrações. Aos sons abafados, confinados, a música de Steven Price acerta quando quer ambientar o neutro, a viagem, e falha ao agigantar o dramático, o épico, como na cena final.
Em suma, Gravity parece por vezes uma visita virtual ao museu do espaço. Outras, um jogo de simuladores em continuidade temporal e espacial, em que se intrometem a coreografia dos corpos e dos objectos. Tal materialidade tecnológica traz muito mais ao espectador do que uma visão new age da sobrevivência e do cosmos para onde por vezes ameaça resvalar. Seja como for, no panorama esquizóide da distribuição nacional actual, Gravity é certamente um filme interessante.