Por alturas deste Harry Black (1958), o seu segundo trabalho em Inglaterra, Hugo Fregonese já tinha trabalhado em Itália, nos Estados Unidos e na Argentina, onde nasceu e começou. Primeiro, realiza documentários e é assistente de montagem no Pámpa Studios, onde conhece o realizador Lucas Demare, passando a trabalhar com ele como assistente, bem como com outros realizadores argentinos; depois, quando Demare funda a produtora independente Artistas Argentinos Asociados, começa finalmente a sua própria carreira como realizador, que chega oportunamente quando Demare tem assuntos pendentes no Chile e confia as sequências de acção de Pampa Bárbara (1945) a Fregonese. O filme passa-se em 1833, durante os embates fronteiriços entre índios e descendentes de europeus, e filma a viagem forçada de um grupo de mulheres de Buenos Aires com cadastro e má fama para fortes nas pampas argentinas, onde servirão de companhia a soldados solitários. Talvez William Wellman tenha visto o filme, antes de realizar o seu Westward the Women (Caravana de Mulheres, 1951), seis anos depois (e as semelhanças entre filmes de Wellman e Fregonese não ficarão por aqui).
Depois de Pampa Bárbara, Fregonese faz o seu primeiro filme a solo, Donde mueren las palabras (1945), que Jacques Lourcelles descreveu como “filme inclassificável” em À la decouverte d’Hugo Fregonese. Apenas un delincuente (1949) é o penúltimo filme feito antes da ida para os Estados Unidos e para Hollywood, onde faz 11 filmes. Demencial e explosivo como os melhores noirs da outra América, Delincuente é desbravamento puro sem deixar de ser também construído em blocos muito precisos e ter uma relação invejável com o espaço, uma Buenos Aires apodrecida e vingativa como o eram e seriam as melhores paisagens urbanas do cinema norte-americano, de Public Enemy (O Inimigo Público, 1931) a Crime Wave (Sombras na Cidade, 1954), passando por Panic in the Streets (Pânico nas Ruas, 1950). Enfim, tanto descendente como ascendente desta linhagem de poetas de rua que perceberam que cidades a ferro e fogo não eram tão violentas e desesperantes como o que se passava dentro da alma dos vagabundos que as percorriam e as enfrentavam só para poder apagar mágoas e passados tenebrosos. Decerto serão também assim One Way Street (O Último Encontro, 1950), com James Mason, e Black Tuesday (Terça-feira Negra, 1954), com Edward G. Robinson, dois actores que foram homens tão assombrados em tantos filmes.
Depois de Hollywood, da Itália e da Inglaterra, Fregonese passou pela Alemanha e por Espanha – mudanças e viagens sempre motivadas pela desilusão com contratos e produtores -, até rumar à Argentina nos anos 70 para filmar os seus dois últimos filmes, La mala vida (1973) e Más allá del sol (1975). (Quem quiser saber mais pormenores sobre a carreira do argentino, pode ler este texto dos irmãos Rubín de Celis.) No meio de tudo isto, Saddle Tramp (Quatro Filhos e uma Noiva, 1950) e Apache Drums (A Revolta dos Apaches, 1951) marcam o aprimoramento da relação do argentino com os meios que tinha à sua disposição – e não será coincidência que um deles tenha sido produzido por Val Lewton -, construindo ambiências e personagens com muitíssimo pouco. Exemplo capital disto mesmo é o mais óbvio: a última sequência de Apache Drums, que é uma maravilha de trabalho de iluminação e contenção. Ou, no mesmo filme, a sequência em que o personagem de Stephen McNally percorre paisagens desoladas e encontra uma carruagem destruída que, ficamos a saber, foi atacada, e depois praticamente só com assobios sentimos uma perseguição invisível, mas cerrada, sobre ele. Ou, no primeiro filme, quando é noite e Joel McCrea está divertido com um ramo de árvore na mão e vê a rapariga, que à sua família improvisada se juntou, a transformar-se em mulher quando esta diz boa noite aos quatro miúdos que ele “adoptou”, num ritual de boas noites lindíssimo. Dois filmes com uma geografia muito precisa também. No primeiro chega a ser impressionante como em tão pouco tempo (72 minutos; Apache Drums tem 75) se consegue dar conta de tantos espaços (são quatro os espaços dominantes e é num quinto que todos esses convergem) e de tantas intrigas. No final de Saddle Tramp, McCrea olha para um bando de patos em migração e lembra-se de um tempo em que passeava livre pelas planícies – a sua tão prezada liberdade com assobios pela estrada -, e o seu “Let’s go have that breakfast” não nos assegura totalmente que assentar esteja nos seus planos. Como o “I’ll be around” do Harry Black de Stewart Granger, que prova tornar-se exactamente o oposto. Os heróis dos filmes de Fregonese parecem ser homens que, quer pelo temperamento quer pelas circunstâncias, são obrigados a partir para a próxima aventura e a vaguear sem rumo.
Harry Black, então. Pode-se associá-lo tanto ao filme de aventuras muito em voga nessa década (e que a presença de Stewart Granger parece confirmar), como àqueles misteriosos e estranhos filmes cujos animais são a encarnação dos demónios dos personagens. Alguma vez se vê a pantera de Track of the Cat (O Rasto da Pantera, 1954) de William Wellman? Nunca, porque a história é outra e tem que ver com outros monstros, os que vemos quando chegamos a casa e nos olhamos de cima a baixo. Toda a gente tem os seus monstros, ou os seus medos, ou os seus remorsos e, apesar de vermos (muitas vezes e filmado com uma classe inabalável) o tigre de Harry Black, o animal é o menor dos seus problemas. Por se tornar a metáfora da selva (antes urbana) literal, isso não significa que os personagens deixem de a olhar como um antídoto para as mágoas. O tigre é a missão em que Harry se concentra para esquecer certos fantasmas, missão que é adiada e quase interdita por esses mesmos fantasmas. O medo e o arrependimento sempre a sondar. Uma vida perdida, um amor de noites brancas. Muito cedo Harry e Bapu falam de “dreams” e “private reasons“ e muito cedo neste filme se diz “I will never go home” e “whisky wine is good for dreams“. Cedo também se percebe, no cimo desse monte, entre cigarros fumados com a mão fechada e doses de whisky, que o tigre é só uma manobra de diversão e a bebida o remédio do costume. Aqui está-se melhor nas sombras e no breu do que na claridade. Tanto se está que Harry por duas vezes o mostra: a primeira é quando bebe dias e noites às escuras e a contentada amada, Christian, lhe abre as janelas e ele, qual vampiro, grita “close it up, close it up!“; a segunda é depois da matança do tigre, uma descida a uma gruta assustadora num jogo de olhares e sombras assolador, quando Christian troca a “happiness” pelo “contentment” e Harry lhe diz “suddenly, it really is the cold light of day“, faz o brinde a selar o “contentment” geral e diz “I’ll be around“. De volta para as sombras e para outros tigres, com o Bapu de que nunca sabemos os sonhos ou razões pessoais, mas que sabemos serem semelhantes às de Harry. Pela estrada fora…
Os melhores filmes de Hugo Fregonese que pude ver são: Pampa Bárbara, Apenas un delincuente, Saddle Tramp, Apache Drums, Blowing Wild e Harry Black.