Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), um curto documentário sobre a poetisa Sophia (claro está) encomendado pelo produtor Ricardo Malheiro a um tal João César Santos, foi rodado em 1968 no helénico Algarve de então, dos banhos demorados nas águas muito azuis (apesar do preto e branco), entre as grutas e a praia, das grandes famílias espraiando-se em longos verões. Nele, Sophia recita contos infantis aos filhos (o seu Maria do Mar) da mesma maneira como recita poemas (os seus) aos espectadores, a voz pausada e decidida (só se engana uma vez), com a altivez daqueles que encontraram a paz num paraíso terreno construído por si mesmos, e a mesma limpidez no olhar e no gesto que se encontra na sua poesia, uma personagem plena(mente) de ficção que César Santos filma esquecendo-se de que busca o documental, embora permita a sua desmontagem naquele momento em que um dos muitos filhos põe um disco a tocar e lhe interrompe a pose, devolvendo-lhe a naturalidade de qualquer mãe que se zanga. Essa pequena subversão é a única nota que destoa de uma obra bastante reverente da figura que retrata.
Reverência não é a primeira palavra que vem à cabeça quando se pensa na obra subsequente do cineasta, nem a segunda, nem a terça, nem a décima quinta. Uma parvoíce, até porque foi sempre muito reverente a algumas coisas: Schubert, Stroheim, Murnau, à língua de Camões, etc. Mas talvez por isso o cineasta tenha mudado a sua assinatura a partir daí, de César Santos para César Monteiro, que realmente tem outro som. De resto, o único outro filme “de” César Santos é À Flor do Mar (1986), sito no mesmo Algarve helénico das famílias grandes, embora a cabecinha (salvo seja) de Monteiro, ou de um dos seus alter egos, no caso Stavroguine, já espreite e se divirta a destruir a justeza e a limpidez que vem de Sophia e Sophia.
No entanto, a primeira aparição, se é que se pode falar de aparição (provavelmente não), dos alter egos monteiristas, dá-se em Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971), em que o Lívio de Luís Miguel Cintra (no primeiro papel em cinema) é possuído por um deles e até fala com a sua voz. Nesse primeiro ou segundo filme (depende das perspectivas, Quem Espera Por Sapatos foi iniciado primeiro mas Sophia foi terminado antes; de qualquer forma, ambos tiveram de esperar bastante ou algum tempo para serem concluídos e vistos), anuncia-se a trilogia de Deus, nas deambulações pela cidade, nas perdições de Lisboa, na pelintrice e chico-espertice do vagabundo burguês, meio Charlot meio Nosferatu (assim como se anunciam os múltiplos reflexos em espelhos: aqui é Paula Bobone, sim essa, que se reflecte num). Uns quantos anos depois, Lívio, já exorcizado (portanto, na posse da própria voz) ainda que enfiado num hospital psiquiátrico, haveria de ordenar ao seu antigo demónio para que fosse (lá para fora, subentende-se) e lhes desse trabalho. Mais uns anos, já em liberdade, e trar-lhe-ia uma mala cheia de dinheiro… Contas de outro rosário.
Lá vai o carro à frente dos bois. Antes dessas assombrações, houve o 25 de Abril que levou César Monteiro primeiro para filmes mais ou menos políticos e depois para a “antropologia visual” (assim lhe chama a Wikipedia e eu repito porque me parece suficientemente vago), ou seja, para os montes e vales deste nosso Portugal em busca das nossas raízes, do nosso povo, o verdadeiro, da nossa cultura, da portugalidade ou algo que a valha (no fundo, para umas férias da cidade). Escrito assim, parece um tremendo aborrecimento. Visto nas três encomendas da RTP de Fernando Lopes – os violentíssimos e reisíssimos (de António Reis) A Mãe (O Rico e o Pobre) [1978] e Os Dois Soldados (1979), interpretados por não-actores nas austeras paisagens transmontanas, e no artificialíssimo O Amor das Três Romãs (1979), com os seus cenários pintados, os Corta!, e a companheira Margarida Gil -, ou nas longas-metragens Veredas (1978) e Silvestre (1982), muito pelo contrário. Ao meter-se pelo conto tradicional português, César Monteiro fixa a sua maneira de filmar – os longos planos, os muito poucos movimentos de câmara – e apura a escrita dos diálogos primorosos que hão-de habitar seus filmes futuros. E a cabecinha (salvo seja outra vez) dos alter egos continua a espreitar.
O alter ego comparece de corpo inteiro (cabecinha e todos os outros membros) em Recordações da Casa Amarela (1989), uma inevitabilidade tão inevitável como o facto de não mais desaparecer [à excepção de Branca de Neve (2000), mais perto de uma “antropologia sonora” dos contos infantis]. Embora tenha vários nomes – João de Deus, Max Monteiro, João Vuvu -, nunca será muito diferente do maior alter ego deles todos, César Monteiro. João Raposão, o produtor de Conserva Acabada, nova encomenda da RTP, que troca as serras transmontanas pelas curvas da muito jovem e fresca Alexandra Lencastre e termina com um grande plano das suas mamas, é mais um deles. O protagonista de Lettera Amorosa (1995), O Passeio com Johnny Guitar (1995), O Bestiário ou o Cortejo de Orfeu (1995) não é mais um deles, é o mais conhecido, João de Deus, que só participa nestas curtas-metragens, porque elas não são de facto curtas, antes os restos da primeira tentativa de filmar A Comédia de Deus (1995) em CinemaScope, como explica o produtor Joaquim Pinto no belíssimo texto que deixou no site do Festival Córtex. Deste trio, destaca-se claramente O Passeio com Johnny Guitar, em que se ouve o famosíssimo diálogo entre Sterling Hayden e Joan Crawford do esdrúxulo western de Nicholas Ray, enquanto César Monteiro espreita uma vizinha da janela do seu quarto. Os outros, apesar da imprevista mosca comida, são esboços de cenas conhecidas do segundo tomo da trilogia de Deus.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço, A Mãe (o Rico e o Pobre), Os Dois Soldados, O Amor das Três Romãs, Conserva Acabada, Lettera Amorosa, O Passeio com Johnny Guitar, e O Bestiário ou o Cortejo de Orfeu compõem a sessão de abertura do Córtex – Festival de Curtas-Metragens de Sintra. A sessão, de homenagem a João César Monteiro, decorrerá no Centro Cultural Olga Cadaval e terá início às 21h30 do dia 10 de Outubro.
6 Comentários
Gostei e parece-me que no texto se pode encontrar a admiração pelo cinema de João César Monteiro.
[…] ♦ João César Monteiro, curto e grosso João Lameira (2013) – À Pala de Walsh […]
No limite, é possível colocar o Sophia à parte da obra futura. Tendo a marca distintiva do autor, é um filme sobre outra pessoa. Ou assim parece. Com este realizador é melhor ser cauteloso.
Quanto ao resto, basta ver a relação estabelecida pelo César Monteiro com Quem Espera Por Sapatos de Defunto, filme fechado, pensado e sofrido, filme a que haveria de voltar vezes sem conta, dando a entender com esse vai-e-vem auto-referencial que já lá estava tudo, ou quase.
O Que Farei Eu com Esta Espada? é cinema politico? Talvez em 1975 coubesse numa ideia lata do dito. A Trilogia de Deus estabelece uma relação estreita com este documentário, vampirizando-o e transformando-o em outra coisa. Ou levantando fantasmas que já lá moravam.
É o mestre geladeiro a dizer para si:
O que farei eu com esta espada?
“Espera lá que já vais ver…”
Um texto recente sobre o assunto:
http://reviewingtreeoflife.blogspot.pt/2014/05/wait-and-see.html
À Flor do Mar (1986) tem, de facto, muito que se lhe diga. À flor dele já estava o senhor João de Deus. Talvez esse filme faça ao da Sophia um pouco o que a Trilogia faz ao filme da revolução.
[…] mais tarde grande reconhecimento com as suas longas, desde o americano Antonio Campos ao luso César Monteiro, passando pela trilogia de estreia de Terrence Davies ou os primeiros títulos da neozelandesa Jane […]
[…] um bocado mais para cima. E muitas vezes está ligado ao lugar onde as pessoas passam férias. O Sophia de Mello Breyner Andresen (1969) do César Monteiro é filmado em Lagos porque era lá que ela passava férias. E estas […]
[…] da história do cinema, muitas vezes com cópias restauradas digitalmente. São os casos de Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, assinalando o centenário do nascimento da autora, Das Cabinet […]