É no meio das nuvens, a meio de uma viagem, que o último número dos Cahiers du cinéma me faz lembrar de uma outra viagem – uma que já remeti para um tempo intemporal, sem data, tão fortuito, feliz e irrepetível foi o encontro que ela me deu.
Essa viagem, tal como outras, veio com uma ida acidental à Cinemateca Portuguesa, em que sinopses de filmes me chamavam a desfazer as imagens que sobre eles tinha criado, ou a descobrir um mundo que tinha emocionado quem agora tinha escrito sobre o filme. O olhar humano emociona-se porque vê realidade em histórias de ficção (e vice-versa) – assim, senti que era essa a chave para ler e aceitar filmes, nas suas diferenças e tempos vários, ajudando a perceber, também, a ficção que eu próprio criava no meu tempo.
Jean Grémillon é talvez dos nomes mais esquecidos da história do cinema – o meu contacto com ele apenas existiu nesse único filme que vi dele, nessa noite em que decidi ir vê-lo à sala de cinema. Os Cahiers dedicam-lhe agora uma atenção especial, e lembram-me, de novo, uma obra capital: Le ciel est à vous (The Woman Who Dared, 1944), realizada durante um dos tempos de maior incerteza no continente europeu.
Recordo-me da sua história de sacrifício, de amor à família e de uma família de amor, pessoas que sonham diariamente com uma felicidade que parece impossível dada a escassez de recursos, de caminhos, de prosperidade e futuro na vida diária das pessoas. Le ciel est à vous, a história de uma família que se sacrifica para que um dos seus se possa aventurar no ar, entre as nuvens – um espaço que (se bem me lembro) nunca chegamos a ver -, poderia ser uma história adaptada aos nossos tempos. Mas a marca que transporto do filme estende-se para além disso – é a história de uma comoção universal, a que nos diz que, com o nosso espaço natural (as origens e a família), todos os nossos sonhos se concretizam se desafiarmos os espaços desconhecidos que se encerram à volta dele (a incompreensão dos outros, as classes, ou mesmo a morte).
Le ciel est à vous, no seu lirismo e musicalidade, aparenta ser simples como o seu título – assim o é, de facto. Mas é nessa simplicidade, e nesse realismo, que se encerram as sensações mais complexas e profundas da nossa existência. Aquelas que comovem o olhar de um cineasta que cumpre o seu dever, se é que existe um – fazer-nos vê-las (e vivê-las) entre as coisas terrenas e palpáveis. Para que, pelo nosso olhar, cheguemos também ao céu e ele nos diga – a vida é nossa, o cinema é nosso. Para além da morte e daquilo que, cá em baixo na terra, nos retira a esperança para os nossos sonhos.
Tenho saudades de Grémillon – desse que vi e de todos os outros que agora imagino pelas páginas da revista que o relembra. Nesses momentos de menor esperança, esses vôos levar-me-ão sempre de volta a essa noite em que, no escuro da sala de cinema, fui transportado para uma realidade – no depression in heaven, como cantava outra música. Espero chegar ao fim dos dias, olhar para trás, e ver sempre – viajei, tal como sempre sonhei. La vie est à nous.