O tempo está fechado, cinzento, possibilidades de aguaceiro e, como tal, propenso a comparações imbecis. Eis uma: encontrar um programa de curtas-metragens a estrear em sala é como encontrar um trevo de quatro folhas (neste caso de quatro curtas) num vasto campo atafulhado de longas-metragens, muitas delas de folhagem vistosa e na mesma medida esquecíveis e de pouco relevo. Após este breve intróito bucólico, eis que convém dizer que o facto de João Salaviza ter vencido a Palma e o Urso de Ouro com Arena (2009) e Rafa (2012), respectivamente, fez algumas pessoas voltar a olhar para esse formato invisível do circuito da distribuição em sala. O desafio é elaborar uma estratégia comercial alternativa a colocar as curtas como aperitivo das longas (algo que vem ocorrendo regularmente há já vários anos) e agrupá-las em sessões que façam a hora e meia, duas horas, na lógica de que, se comermos vários snacks, acabamos por matar a fome e dispensamos uma só refeição principal e solene (alerta: segunda nota imbecil, desta feita uma metáfora). Além disso, se a curta é tradicionalmente a rampa de lançamento e experimentação de muitos cineastas, as reduzidíssimas condições para fazer cinema em Portugal fazem com que muitas vezes a curta-metragem seja a única forma de ainda ir fazendo cinema e, consequentemente, a única via pela qual o espectador pode ir acompanhando a carreira de alguns cineastas.
Todos estes factores combinados fizeram com que este já seja o segundo programa de curtas que a produtora de Luís Urbano, O Som e a Fúria, coloca em sala este ano. É relativamente fácil identificar o tema que une os filmes de João Nicolau, Telmo Churro, Jorge Cramez e João Rosas: as experiências e dilemas de infância e adolescência. É curioso que o que faça variar os filmes, sendo fundamentalmente o gesto o mesmo, o de “olhar sobre” um passado, é a distância com que se olha, modelando sucessivamente a visão que se tem e, claro, a sua transdução audiovisual. Nesse sentido podemos perceber que Gambozinos (2013) de João Nicolau (melhor curta na quinzena de realizadores em Cannes este ano) e Rei Inútil (2013) de Telmo Churro fazem parte do mesmo imaginário. Cineastas que buscam lembrar momentos-chave do crescimento – no primeiro, o amor, as partidas nos acampamentos de férias em criança e, no segundo, as escolhas de vida que se começam a formar na adolescência, os falhanços na escola – mas sempre com um olhar que se recusa a separar o adulto da criança. Falava disso há uns anos, chamando-lhe infantilização adulta, a propósito de Embargo (2010) de António Ferreira.
João Nicolau, Telmo Churro, assim como Miguel Gomes, representam uma “nova” geração de cineastas adultos portugueses cuja experiência de adulto prolonga conscientemente traços de adolescência numa sensibilidade autoral que recusa espartilhar o que é próprio do novo e o que é próprio do velho. Em Gambozinos, próximo do cinema de Wes Anderson mas também de um realismo fantástico de Apichatpong (penso, claro, na figura mítica do gambozino-papão, mas também na aparição no Jardim da Estrela de D. Sancho II, rex inutilis, a Tiago, protagonista do filme de Rei Inútil) o que está em causa é abrir os episódios de infância a uma imaginação comentada por um tom mordaz, nesse jogo onde as crianças retratadas são-no pelo olhar adulto e mordaz de Nicolau (o plano da aranha em que a miúda sai a fugir de campo, o pormenor das pétalas quando vence o bingo são só alguns exemplos), ele mesmo uma espécie de “adulto-criança”. No filme de Telmo Churro esse humor é ainda mais poderoso pelo contraste com o questionamento da pseudo-“inutilidade” do seu protagonista. Quando Tiago fala com Deus ou quando dá o 11 da equipa de futebol formada por figuras históricas (com Salazar à baliza, grande ideia) ao seu professor de história (Manuel Mozos), é mais uma vez esse espaço fantástico que se alarga e que comenta a “pobreza” dos inúteis, dos pobres de espírito que no seio da natureza revolta têm de se levantar para não serem pisados. Bela revelação a estreia de Telmo na realização. Ficamos a aguardar com expectativa as próximas experiências que, antevemos, trarão algo novo ao cinema português.
Jorge Cramez, cineasta de outra geração, habita com Na Escola (2010) um lugar mais reconhecível de revisitação da infância como um espaço mítico e perfeito de brincadeira, de exploração da natureza. Próximo do belo filme de Jacques Rozier, Rentrée des Classes (1956) o argumento escrito a meias com Edmundo Cordeiro revisita uma experiência mais romântica desses verdes anos produzindo uma certa nostalgia pela distância a que o autor está desse momento passado. Seja como for, desde o início que a câmara de Cramez, em travellings sucessivos no interior sala de aula, prenuncia essa viagem que se dará lá fora em corridas, em encontros com répteis, cogumelos, ouriços, estrelas-do-mar…Esse é espaço de imaginação da infância e, com ele, do cinema: cá fora, ao ar, no exterior a mostrar seres ainda por formatar no processo de descodificação e sensação do mundo que sobre eles se fechará. Mas isso só chegará mais tarde.
Se em Na Escola esse espaço é para ser percorrido também na imaginação, há um dilema pragmático no encontro com outro espaço para Mariana de 11 anos, protagonista de Entrecampos (2012). O filme de João Rosas quer filmar a passagem da serenidade de Serpa à desorientação e anonimato de Entrecampos para onde a menina vem viver com o pai. Além da premissa ser, como no filme de Cramez, algo mais reconhecível, a isto acrescente-se algum desequilíbrio nas escolhas dos actores e mesmo de algumas situações narrativas que não chegam nunca ao que Rosas tinha provavelmente em mente: mostrar o encontro de um espaço novo e sua arquitectura, sem pontos de referência, com o interior da sua personagem. Se Mariana se perde, Rosas ainda anda à procura.