Quem não conhece Sasha Grey? Apesar dos meros 25 anos, o percurso único de Marina Ann Hantzis (nome de baptismo) dificulta uma apresentação breve. Sasha Grey atingiu a projecção mundial com uma prolífica carreira de estrela pornográfica que iniciou aos 18 anos e largou aos 23, tendo actuado em 271 filmes para adultos e realizado 3. Em 2009, foi a protagonista de The Girlfriend Experience (Confissões de uma Namorada de Serviço, 2009) de Steven Soderbergh, que lhe trouxe a primeira experiência de representação no grande ecrã e lhe concedeu uma nova aprovação em Hollywood. Seguiram-se filmes independentes como I Melt with You (2011), Would You Rather (2012) e, mais recentemente, alguns episódios na série da HBO Entourage. Como modelo, entrou em diversas campanhas de moda, videoclips e colaborações artísticas [como a exposição e a curta-metragem, Leporello (2010), de Julião Sarmento]. Em 2011, lança o seu primeiro livro de fotografia, Neu Sex. A ligação à música inicia-se publicamente com a co-fundação da banda de música industrial Atelecine, de que já não faz parte desde Junho de 2013. Hoje viaja pelo mundo como DJ e dedica-se à escrita. É o seu novo livro, Juliette Society, disponível nas livrarias pela mão da Divina Comédia, que a traz a Lisboa. Neste seu primeiro romance erótico, a sua conhecida veia cinéfila funde-se ao cru imaginário fetichista em que sempre se distinguiu. Sem arrependimentos, Sasha Grey define-se como artista no mais alargado sentido da palavra. Foi com uma presença segura, de inquestionável beleza, que Luis Mendonça, Sabrina D. Marques e Mariana Castro (autora das fotografias) se encontraram. Sobre o futuro, Grey adianta que a sequela de Juliette Society está para breve e que tem vontade de ter outro projecto musical. O mundo parece ser o limite para Sasha Grey.
Sabrina D. Marques – A Sasha Grey é considerada um ícone contemporâneo do girl power, nomeadamente por enfrentar o cinismo de uma sociedade disfarçada: por um lado, existe um choque massificado em relação a estrelas porno, por outro lado, toda a gente consome pornografia. É essa consciência dessa repressão generalizada que procura pôr em questão no seu livro, Juliette Society?
Sasha Grey – Bem, de uma maneira subtil, podemos dizer que sim. Não foi uma mensagem directa que estava a tentar enviar, quando escrevi o livro, mas como Angela Carter disse – ela foi uma grande inspiração para escrever Juliette Society – “o erotismo é a pornografia da elite”. Acho uma frase maravilhosa. Pertence a um muito maior âmbito informativo, que referencia outros tipos de arte. No Instagram, um dos poucos espaços onde ainda troco comentários com fãs, eu recebo sempre um comentário a dizer “por favor, volta à pornografia”. E eu digo “já voltei, pode ler! Está disponível agora!”.
Luís Mendonça – Mas é um auditório diferente.
SG – Sim, claro. Mas obviamente que trago muitos leitores que não leriam um livro como este, pelo facto de ter feito pornografia. Porque tenho uma base de fãs pré-existente.
SDM – Em Erotismo, Georges Bataille escreve que “as origens da orgia, da guerra e do sacrifício são idênticas: devem-se à existência de proibições que se opõem à liberdade da violência assassina ou sexual.” Esta ligação entre sexo e violência está presente no seu livro. Quando começou a sua carreira na pornografia, estava consciente e capaz de descrever a sua própria necessidade de transgressão?
SG – Sim, a 100%. Foi uma das minhas motivações para entrar na pornografia. Eu pensei nas minhas escolhas antes de decidir. Passei muito tempo a investigar a indústria, para saber o mais possível, mas também para decidir se estaria disposta a arcar com os riscos que viriam com essa escolha.
LM – Depois de se retirar da indústria pornográfica, teve várias experiências enquanto modelo, actriz, música, agora escritora. Depois de fazer tudo isto, como se define hoje?
SG – Eu sou uma artista. Eu gosto de fazer aquilo que me faz feliz. Quando estou apaixonada por algo, quero seguir em frente e dar o meu máximo. Mas, por exemplo, escrever é algo que faço desde que tenho 10 anos. Não é nada de novo, mas é a primeira vez que escrevo um romance – isso é um grande passo. É diferente de escrever um argumento que não se torna num filme – e tive várias experiências assim também [risos]. Mas ainda brinco quando encontro numa situação social alguém que não conheço, amigo de um amigo, que me pode perguntar: “Então o que faz?”. “Depende do que estou a fazer, neste passado ano e meio tenho estado, sobretudo, a escrever”. Fiz um filme e percorri o mundo como DJ, mas tenho-me focado principalmente a escrever Juliette Society. E agora estou a começar uma sequela. O que adoro em ter a habilidade de fazer tantas coisas é que posso ser mais complicada e astuciosa no que diz respeito à interpretação. Já é para mim uma batalha conseguir os papéis que gostava de interpretar. E provar às pessoas que sou séria e que posso interpretar papéis mais diversificados. Assim, posso dizer “não” a coisas que me fecham numa caixa (keep me in the box). Já recebi algumas críticas sobre ter podido escrever este livro, que foi possível graças à minha fama. Não tenho problemas com isso, não tento esconder isso, mas tenho sorte e sinto-me grata por isso.
LM – É também conhecida por ser uma grande cinéfila e, sem surpresas, a personagem principal de Juliette Society é uma estudante de cinema. No seu livro, mistura teoria fílmica com sexo e desejo de uma forma particularmente imaginativa. Tenho curiosidade de saber como se começou a interessar por cinema.
SG – Adoro filmes desde pequena. Acho que começou com filmes como The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939), Edward Scissorhands (Eduardo Mãos de Tesoura, 1990) ou Willy Wonka & the Chocolate Factory (Willy Wonka e a Fábrica de Chocolate, 1971). Filmes bizarros, cheios de cores e de personagens estranhas. E recordo-me de ir com a minha mãe ao clube de vídeo alugar os VHS, e eu queria sempre os mesmos. Não se comprava filmes em minha casa. Ela responderia – “Não. Quando se vê um filme, não é preciso voltar a vê-lo”. E eu sempre senti exactamente o oposto. A primeira vez em que me apercebi do poder do cinema, e não apenas do seu potencial de entretenimento e de escape, foi quando tinha uns doze anos e vi o Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966) pela primeira vez. Deixou-me em êxtase. Nunca tinha visto um filme assim. Ou talvez tivesse e não era suficientemente madura para o perceber. Mas, por qualquer motivo, foi este que mudou a minha perspectiva e me deu um mais largo entendimento do poder do cinema. O meu tio costumava levar-me e aos meus irmãos ao cinema quase todos os fins-de-semana. Era o nosso momento especial com o nosso tio. Ele não tinha filhos, por isso levava-nos a sair e mimava-nos. Quando tinha quinze anos, conheci o meu mentor numa aula de representação. Era e é o meu professor preferido. Em aula, disse-me duas coisas importantes que mantenho sempre em mente: uma, é que como actor deves escrever permanentemente; duas, que devíamos ver um filme novo todas as semanas. Não o blockbuster que está em todas as salas, mas ir à procura de algo interessante. Devo ter sido a única da turma que depois da aula lhe foi perguntar: mas que filmes? E ele escreveu-me uma lista com uns dez títulos. Na altura, vivia ao pé de uma loja fixe de cinema indie e pude procurar esses filmes. Foi também lá que descobri a Criterion, e foi como abrir a caixa de Pandora. Não há volta atrás (risos). Desde então, tenho sido obcecada por coleccionar filmes, em possuir o objecto tangível. A minha ruína (risos). Em Juliette Society, comecei por escrever uma proposta antes de escrever o romance. Não sabia se era algo que eu pudesse fazer. Desde os 19 anos que me pedem para escrever as minhas memórias, o que é completamente ridículo. Em discussão com o meu editor e alguns amigos escritores, perguntava-me ”o que é o que os meus fãs realmente gostam em mim? Que componentes posso retirar da minha personalidade sem fazer disto um livro de memórias coladas a algumas histórias eróticas?”. E o que continuava a responder a essa questão era o meu amor pelo cinema. É algo que já partilhava com os meus fãs no Myspace aos 18 anos, quando comecei a fazer pornografia. Embora soubesse que ia ser uma grande parte do livro, ainda não estava certa de como o organizar. Belle de jour (A Bela de Dia, 1967) foi o primeiro filme que sai dessa ideia. A partir daí, Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999), Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1999), Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim, 1971), Le mépris (O Desprezo, 1963). Estes foram filmes que seleccionei para falar sobre eles. Estão presentes como quando duas pessoas estão a conversar e eis que um filme surge na televisão e faz mudar o assunto. Pensei: como usar este tipo de situações? E comecei a tirar notas…
SDM – Quais foram as suas últimas descobertas cinematográficas?
SG – Acho que o Jeff Nichols é um dos meus realizadores favoritos, e [Mud (2013] foi do melhor que vi este ano. De resto, não tenho visto muito, ando a viajar desde Janeiro (risos). Não tenho sido impressionada por muita coisa ao longo do ano. Estou à espera de ver o novo do Sorrentino, La grande bellezza (2013), mas ainda não estreou nos Estados Unidos.
SDM – E o novo do Lars von Trier (Nymphomaniac), talvez?
SG – Na verdade, muitas pessoas criticaram o Melancholia (Melancolia, 2011), mas eu adorei. As pessoas estão à espera há tanto tempo, que não quero criar demasiadas expectativas.
LM – Não acha estranho haver uma versão com sexo hardcore e outra sem sexo?
SG – Não, é marketing. Tudo é negócio. Os canais por cabo que têm interesse nesses filmes têm um público familiar ou adolescente e precisam dessas versões, ou perderão publicidade, ou seja, dinheiro. Deixa-se o sexo para os filmes pornográficos. O que acho mais interessante é que os actores usam duplos para as cenas de sexo. Metade do público ainda vai achar que foram eles que o fizeram realmente, por isso, qual é a diferença? (risos)
LM – Mas não há duplos na pornografia, no último plano (final shot)?
SG – (risos) Não! Ao fazer a série Entourage, entre takes, quando faziam ensaios com as câmaras, ficava ali a observar, a aprender. Para mim, era educação grátis. Diziam-me: “Podes voltar para a tua caravana”. E eu : “Mas eu quero ficar aqui”. E como se eu fosse uma criança, mandavam-me embora. Faziam piadas até : “Ah, é verdade, tu nunca tiveste duplos não foi? Isto é novidade para ti !” (risos).
LM – Se pensarmos na história do cinema, os únicos artistas que trabalharam com o seu corpo tão directamente como a Sasha Grey enquanto porn star foram as estrelas dos filmes burlescos, tais como Harold Lloyd, Chaplin ou Buster Keaton. Acha que agora, enquanto actriz dramática, já explorou a fundo todo o conhecimento intuitivo que adquiriu enquanto transformava o seu corpo numa performance visual por inteiro?
SG – Não, de todo. Eu adoro todos os autores mencionados, sou fã de Jerry Lewis, Jim Carrey (fui criança nos anos 90) e Carole Lombard. Fantásticos comediantes, eram todos incrivelmente físicos. E eu adorava fazer uma comédia. Tenho a reputação de ser séria e negra. Quem me conhece realmente sabe que sou extrovertida. Quando fiz Entourage entrei nalguns dos episódios mais dramáticos que a série alguma vez teve, mas ainda assim consegui sentir a ênfase cómica do programa. Adorava fazer uma comédia para mostrar outro lado de mim.
SDM – A pornografia parece ser a única janela aberta no meio de muitas janelas entreabertas: é o caminho real para mostrar o que é sugerido em todo o lado (publicidade, filmes, etc). Mas, numa sociedade hipersexualizada, porque é que acha que o estigma em torno da pornografia se mantém?
SG – Acho que já descobri a resposta a essa pergunta. É um assunto em que pensei bastante, assim como um dos meus heróis, Peter ‘Sleazy’ Christopherson das bandas Throbbing Gristle e The Coil. Ele era um homem gay e um artista incrível na música experimental industrial, numa altura em que o género não era popular, e falava de temas sombrios, como satanismo ou sexo. Ele disse algo de verdadeiramente curioso – que as pessoas precisam de alguém para vilanizar. Precisam de saber a quem chamar bom ou mau. Pessoas como ele, Eminem ou Marilyn Manson estão a fazer coisas que pessoas nunca antes ousaram. Acho mesmo que a pornografia é o único meio de entretenimento a não ser aceite como fantasia. As pessoas tratam-no como algo real. Uma mulher não tolera que o seu namorado veja pornografia por pensar: “eu nunca poderei ser assim”. Mas acho que as pessoas querem manter as coisas assim porque permanece real, logo, proibido. E é claro que as pessoas precisam de imaginar rapazes e raparigas bonitas em iates, sempre em festas, a sair com estrelas de rock, a viver uma vida de decadência. E, felizmente, isso não é verdade mas as pessoas gostam de acreditar que é para que possam viver através dessa fantasia e terem um ideal a que se agarrar. Senão, seriam apenas pessoas normais a ter sexo em frente de uma câmara.
LM – Há um conselho antigo relacionado com a representação no cinema que diz: “não deves actuar”. Quanto mais a actriz for fiel a si própria, melhor será o seu desempenho. Recordo-me da sua personagem em The Girlfriend Experience: sentiu-se mais “igual a si mesma”, num certo sentido, talvez mais exposta e “despida” do que nos filmes porno?
SG – Não, não me senti mais eu porque na pornografia nunca tive de criar um personagem. Nunca tive de fazer esse tipo de trabalho de casa acerca do que seria a vida sob a perspectiva de outra pessoa. Ainda por cima, quando filmei esse filme vivia em Nova Iorque há apenas um mês. Nasci e cresci na Califórnia, que obviamente é completamente diferente de Nova Iorque e isto é apenas uma parte da equação. Em relação à capacidade de sermos fieis a nós próprios, eu acho que por maior actor ou actriz que se seja, uma parte do que se é está inegavelmente presente. Isto lembra-me outro conselho que o meu mentor me deu sobre representação: nunca julgues a tua personagem, ou a tua representação não será credível. Por exemplo: uma personagem matou o gato sem razão aparente. É claro que isso me horroriza pessoalmente e me faz perguntar: “porque é que alguém faria algo assim?”. Acho-a repugnante, má. Mas se essa é a personagem que tenho de interpretar, aceitarei isso sem julgar a minha personagem. Cada novo papel é uma troca.