Aquando do lançamento de La chienne (1931), Jean Renoir passou por uma das maiores humilhações da sua carreira: ainda em afirmação no revitalizado meio do cinema (após a revolução do sonoro), o cineasta francês assistiu a uma ante-estreia desastrosa em Nancy – “as pessoas destruíram as cadeiras” – que terá acabado com a possibilidade da sua estreia em Paris. Contudo, um senhor chamado Siritzki, proprietário de um cinema em Biarritz, procurou uma abordagem diferente ao filme, que surpreendentemente garantiu a este um imediato sucesso de público e a sua passagem em Paris. Como ninguém ia ver o filme que tinha em cartaz, o senhor Siritzki anunciou candidamente: “não venha assistir a este filme, que é horrível!”. Calha bem ao estudo de caso chamado Sharknado (2013) esta história contada por Renoir em entrevista a Jacques Rivette e François Truffaut. De facto, o seu título, que (como se lê no cartaz) diz tudo, não disse o suficiente aos vários milhões de telespectadores que quiseram ver para crer e que, voluntária ou involuntariamente, fizeram dele o cult movie da temporada. Agora não adiantará muito dizê-lo: não o vá ver, que é horrível!
Sharknado seria apenas mais um filme mau produzido pelos estúdios The Asylum, os fornecedores das maiores bestialidades fílmicas ao canal Syfy americano (também disponível aos telespectadores portugueses), visto por poucos milhões de telespectadores e com um impacto quase nulo na vida cinéfila de todos nós. Seria isso, não fosse o que o seu título nos oferece: como uma experiência de Dr. Moreau que não só não correu bem como, na realidade, correu muito bem – confusos? Já vão perceber que não estão… – cruza-se aqui Jaws (O Tubarão, 1975) com Twister (Tornado, 1996) ou, para ser mais exacto, ensaia-se nesta hora e meia o regresso das cinzas de Jack Arnold para, sem a habilidade e mestria que lhe reconhecemos, se produzir um telefilme manhoso onde tubarões famintos se deixam levar pelo mais destrutivo tufão de que há memória, produzindo assim aquilo que os meteorologistas mais imaginativos chamariam de “Sharknado” de nível X… Não percebe? Mais fácil: se em Magnolia (Magnólia, 1999) choviam sapos, em Sharknado “sopram” tubarões maníacos de dentes afiados. Em certa medida, funde-se aqui o filme catástrofe de dimensões bíblicas, à la Roland Emmerich, com o mais série B ou série Z monster movie. O Dr. Frankenstein é a Mãe Natureza e as vítimas, como peixes fora de água, esbracejam para sobreviver à afiadíssima intempérie que, por todos os lados, os ataca. Portanto, filme catástrofe meets monster movie meets survival horror. Isto é Sharknado. “Enough said!”
Apesar de todas as sinopses serem insuficientes, ou por de mais suficientes, para resumirem “o que isto é”, o que fez deste filme a obra de maior sucesso da The Asylum terá sido algo semelhante – ressalvando as milhares de diferenças que me ocorrem – ao que aconteceu com La chienne de Renoir. A primeira exibição do filme no canal Syfy terá tido 1,37 milhões de espectadores, cerca de 200 000 espectadores a menos que a média de telefilmes produzidos por aquela produtora. Portanto, um fiasco. O que mudou foi a estratégia de marketing que levou The Asylum a abocanhar – e a nunca mais largar – o tenro universo das redes sociais. No Twitter e no Facebook, bastou a imagem do cartaz e a tagline sugestiva – “Sharknado. Enough Said!” – para que, numa segunda passagem, o filme atingisse a marca dos 1,89 milhões de telespectadores, atingindo depois numa terceira exibição a marca histórica, para canal e produtora, dos 2,1 milhões. O “genial” autor do argumento, Thunder Levin, manifestou em entrevista o seu espanto pela popularidade que o seu filme alcançou nos Estados Unidos e em todo o mundo, situando o sucesso a partir do momento em que foi divulgado o muito sui generis cartaz: “The film had been generating some buzz ever since the poster was released in November, so I thought it would do well as Syfy/The Asylum movies do, but of course there was no way I could have expected the amazing response it’s received. It’s been nothing short of incredible”. A “lógica sem lógica” de vender o filme depreciando-o, mas depreciando-o “com estilo”, fez de Sharknado provavelmente o primeiro – e, quiçá, o último – telefilme que o leitor viu de uma ponta à outra, com alguma curiosidade, no canal Syfy.
Com efeito, aproveitando a onda (um verdadeiro tubarami?), o acontecimento da estreia de Sharknado na televisão portuguesa mereceu uma exibição simultânea em sala, nos cinemas UCI. O sucesso internacional terá motivado a confiança do canal neste título, mas a ela não terão sido alheias as duas exibições lotadas no Nimas de “o Citizen Kane dos maus filmes”, aquele que para muitos é o mais incontestável “pior filme de sempre”: The Room (2003) de Tommy Wiseau. Com uma muito maior distância temporal sobre o fenómeno cult que se gerou nos Estados Unidos – sensivelmente desde que se começou a espalhar, como um vírus, pela Internet -, o Nimas provocou, em Julho deste ano, um inusitado “evento” em torno da estreia em Portugal desta espécie de Ed Wood da contemporaneidade (?!). Toda a campanha – como se vê pelo trailer produzido de propósito para a ocasião – actualiza a de Siritzki nos anos 30, pela forma como exclama com orgulho que este filme é tão, tão, tão mau que não o vai querer perder.
Estamos aqui no domínio do (género?) Camp, tal como Susan Sontag o definiu em 1964 no artigo «Camp – Algumas notas». Como avisa desde logo, o Camp presta-se pouco à racionalização e, talvez por isso, seja um conceito não só instável como, no limite, impossível de sistematizar de forma totalmente satisfatória. O seu efeito – e, se calhar, o Camp é só “efeito” e é por ele que devemos começar – é também difícil de “fixar” ou apreender, porquanto, parafraseio Sontag, se é atraído pelo Camp quase na mesma medida em que se é ofendido por ele. Na nota 10 acrescenta: “O Camp vê todas as coisas entre aspas. Não é um candeeiro, mas sim um «candeeiro»; não uma mulher, mas uma «mulher»”. Não temos dúvidas de que Sharknado não é um filme, mas um “filme”, tal como não é sobre um tornado, mas sim sobre um “tornado”. Como diz o cartaz, o título diz tudo. Não são raras as vezes em que os títulos vêm entre aspas. Neste caso, seria uma redundância.
Na nota 26 do artigo de Sontag lê-se: “Camp é a arte que se apresenta como séria, mas que não pode ser tomada completamente a sério por ser «demais»”. O excesso descontrolado, over the top, é o nome do meio de Sharknado, mas ao contrário do filme de Wiseau, nada aqui é levado muito a sério – salvo talvez a pastosa crise familiar, pseudo-spielberguiana, que atormenta o protagonista enquanto este… procura salvar o dia. De novo, cito o argumentista Thunder Levin: “I had a lot of fun writing the script and whenever anyone would question whether it was too over-the-top I’d just say ‘It’s called Sharknado! It can’t be too over-the-top!'” De facto, quando um filme se oferece apenas como aquilo que o seu título indica, não haverá mais limites a serem ultrapassados pela imaginação do espectador: Sharknado é um filme sobre um tornado feito de tubarões, é isso e não é nem quer ser mais que isso. A proposta não é excedida e o filme cumpre com as expectativas geradas.
Por causa deste gesto de perfeita sintonia entre o produto em venda e as expectativas geradas, pode-se mesmo dizer que Sharknado é um filme conservador, ficando aquém – se é possível! – de “algo mais”. Uma sequência em particular seria paradigmaticamente Camp num filme com outras qualidades ou, deixo a sugestão, poderá servir de paradigma para a sequela que já se anuncia. Falo da cena em que um tubarão vindo dos ares é atravessado pelo protagonista da boca à barbatana, através da acção da única arma contra “sharknados” que tem à mão: uma motosserra que decerto faria as delícias a Hopper por Hooper. Fora estes breves instantes em que, por momentos, Sharknado é “algo mais” – esse “algo mais” deliciosamente Camp -, não encontro delírio nas doses desejadas. Não haja dúvidas, citando aqui Stuart Gordon (Re-Animator), que no território do entretenimento trash, série Z, kitsch ou Camp não vale a máxima “less is more”, já que, muito concretamente, “more is more”. A razão irracional fala mais alto – e é já curioso que Levin diga que este é o filme mais cientificamente rigoroso que podia haver -, mas é preciso o desvario das paixões acéfalas. É aí que Sharknado fica abaixo – sendo um telefilme do canal Syfy, diria que compreensivelmente abaixo – de algumas experiências recentes desenvolvidas na periferia da grande indústria, como Piranha (Piranha 3D, 2010) e Eight Legged Freaks (Arac Attack – Tarados de Oito Patas, 2002). Este último, registe-se, será um dos filmes mais jack arnoldianos dos últimos 20 anos a saírem da fábrica Hollywood (mas, atenção, já ouvimos ao fundo uma nova mutação/invasão).
Passado o efeito sleeper, que faz do mais que certo flop um hit no mercado direct-to-TV e mais além (com algumas exibições em sala), fica claro como Sharknado não faz justiça à nota 55 de Susan Sontag: “O Camp não afirma que seja de mau gosto ser sério; não troça de quem consegue ser seriamente dramático. Limita-se a reconhecer sucesso em certos falhanços apaixonados”. É paixão o ingrediente que falta a este falhanço, que não passa de uma piada pouco engraçada em torno, vide a nota 58 de Sontag, da “declaração Camp mais extrema: é bom porque é horrível…”. Fora a piada, que se esgota em minutos – e só reemerge, com criatividade, na sequência da motosserra – ou que apenas reside no genial cartaz, Sharknado acaba por ser uma frustração Camp, ou seja, muito simplesmente “mau porque é mau”. Claro como o título. E nada mais digo.