O Queer Lisboa 17 trouxe a Lisboa o realizador Travis Mathews para apresentar Interior. Leather Bar. (2013), que se estreia comercialmente esta semana. Travis Mathews é já figura habitual no festival lisboeta, mas com a parceria com James Franco – grande estrela de Hollywood – foi a Sundance e a Berlim, onde todos falavam do ano do sexo. É também sobre sexo que o Ricardo Vieira Lisboa fala com o realizador americano, já que Interior é um projecto sobre os 40 minutos que foram cortados a Cruising (A Caça, 1980) de William Friedkin – filme maldito que, além dos protestos durante a sua produção (e após a sua estreia), teve que se ver com cortes significativos para poder ter uma classificação não pornográfica – onde Al Pacino interpreta um polícia que se tem que infiltrar na comunidade leather bar para encontrar um assassino em série. Mathews apresentou também In Their Room: London (2013), o último tomo da série In Their Room, onde o realizador visita os quartos de homens gays em várias cidades do mundo. A conversa segue também sobre as grandes metrópoles, sobre os sistemas de financiamento de filmes independentes, sobre a representação popular da homossexualidade e sobre o ‘new new queer cinema‘.
O Travis Mathews e o James Franco chegaram a falar com William Friedkin antes de fazerem este Interior. Leather Bar.?
Não, originalmente isto foi concebido como um filme-arte, mas na verdade era para ser ainda mais pequeno. O James foi convidado para contribuir para uma boutique em Nova Iorque durante a semana da moda, por isso isto era para ser apenas algo que se projectaria nos vestiários da boutique. Esse é a sua origem. Mas quando eu escrevi o tratamento do filme, tive duas ideais: uma era fazer a parte da boutique, uma coisa em loop, quase expressionista – entrava-se e ao fim de 30 segundos já se tinha percebido e podia-se ir embora -, a outra era conseguir extrair uma longa-metragem do tratamento que já tinha escrito. O meu maior foco era a longa-metragem, que era o que me interessava e estimulava mais. Mas para a peça da boutique eu tive a ideia de juntar o James e o Friedkin a conversarem ao telefone – o que seria gravado -, conversa para a qual eu já tinha questões sobre as quais os queria ouvir a discutir livremente, por exemplo, ‘quem pensas que és para ter uma voz na subcultura gay (em diferentes épocas, 1980 ou 2012)?’. De qualquer forma, a ideia era juntar esse som com umas imagens que eu tinha pensado. O que acabou por acontecer foi que não conseguimos falar com o Friedkin e a boutique não queria nada expressionista, eles queriam o máximo de James Franco possível… Por isso acabaram por receber uma versão curta do que acabou por ser o Interior. Leather Bar.. Mas quando começaram a surgir as primeiras notícias sobre o nosso projecto, passou-se a ideia de que nós estávamos a fazer um remake do Cruising. Depois acharam que nós afinal não estávamos a refazer o Cruising, mas apenas a refazer os 40 minutos desaparecidos. Eventualmente isso acabou por chegar aos ouvidos tanto do Friedkin como do Pacino, que estávamos a refazer o Cruising – coisa que obviamente não fizemos -, e criou-se uma tensão. Tivemos mesmo que os convencer (a eles e aos seus advogados) de que não estávamos mesmo a refazer o filme deles. Até foi engraçado, durante a montagem eu tive que montar uns 20 minutos do filme para enviar ao Friedkin, para ele ver e se convencer que este era um filme de baixo orçamento e experimental – enviei-lhe as coisas mais confusas que consegui, a ver se ele pensava, ‘mas que merda é esta?’ e assim se desinteressava de nós.
Mas o filme original influenciou de alguma forma o vosso trabalho de realização? Pelo menos nas sequências de recriação dos leather bars…
Sim.
Eu estava a perguntar isto porque no filme do Friedkin ele filma tudo quase como um documentário, mas de forma sempre muito distante. Ao passo que você filma tudo muito de perto, em enormes close-ups nas sequências dos bares.
Sim, mas a forma como ele filmou essas cenas foi muito ao estilo da docu-ficção, isto porque aquilo são bares reais e os clientes são de facto as pessoas desses sítios. E as pessoas estavam de facto a ter sexo, a dançar, a beber e a drogarem-se. Por isso, temos que assumir que grande parte dos 40 minutos perdidos são cenas dessas. Originalmente, quando estava a pensar em que cenas devíamos re-imaginar, estava a ser demasiado literal. Estava pensar em partes do filme sobre as quais sentia que havia buracos narrativos e pensei recriar as cenas que pudessem explicar esses mal-entendidos. Mas isso não fazia sentido quando a grande maioria das pessoas ou não viu o filme ou viu-o há tanto tempo que… que se perderia em 99% dos espectadores. Por isso acabámos por fazer algo que se refere mais à ideia daquilo que as pessoas têm do que é o filme – que é a cultura dos leather bars. No entanto, a segunda sequência de sexo já tem pouco a ver com o filme original; é mais carinhosa, foi importante para o Val, o tipo que interpreta o Pacino no nosso filme. Nós queríamos que ele se confrontasse com uma representação da sexualidade gay da qual ele não estava à espera – ele pensava que seria tudo à volta do sexo dos leather bars. Assim, uma sequência tão carinhosa, com a qual ele é capaz de se identificar, tinha que lá estar como elemento surpresa para ele. Há um paralelo com o Cruising, quando o Pacino entra na subcultura gay e se perde, ele torna-se mau e perturbado. Nós, por sua vez, colocámos o Val a fazer de Pacino, a entrar numa mesma subcultura gay – que não compreende e que o confunde – mas que o muda, possivelmente, para melhor.
Quando o Cruising estreou houve muitos protestos (até mesmo durante a produção) e isso também aconteceu com o Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992). Isso porque as personagens gay eram os ‘vilões’. Hoje em dia parece-me que há um grande receio em ofender a comunidade gay, os personagens homossexuais são sempre muito fofinhos e simpáticos. Acha que se deve contrariar esta noção?
Eu acho que estamos numa época em que isso são coisas que já não devem ser policiadas, que já não há benefício nenhum para a comunidade gay em que os seus elementos sejam vistos dessa maneira. Aliás, quanto mais nós formos vistos como pessoas com falhas – além de sermos maravilhosos – mais tridimensionais nos tornamos. Acho que é bom mostrar as pessoas como sendo complicadas e complexas – não é tão preto e branco como ‘vamos trazer todos os vilões gay de volta’.
O Interior foi um filme que encontraram na sala de montagem? No sentido em que é mais um making of da recriação dos 40 minutos do que a própria recriação.
Nós sabíamos desde o início que seria qualquer coisa como 80% a 90% dos bastidores. Quando eu escrevi o tratamento, o objectivo era encontrar o arco [narrativo] do Val e isso está presente tanto nas cenas da recriação como nas dos bastidores – é tudo parte da mesma trajectória. Desde o início sabíamos que não queríamos fazer 40 minutos de cenas re-imaginadas, sabíamos que precisávamos disso, mas funcionou mais como uma pista de lançamento.
Mas a montagem tem um papel muito importante nos seus filmes. Você descobre coisas dos seus filmes enquanto os monta? Penso em particular nos filmes do In Their Room.
Pois, os filmes do In Their Room são uma coisa diferente. O que eu mais gosto dos filmes dessa série é o facto de ser só eu, não há ninguém para o som nem para a iluminação, só eu com a câmara. Isto permite-me tornar-me íntimo das pessoas mais depressa, fico… ágil. Dessa forma consigo seguir os meus instintos e as energias, ficar aberto ao que vai acontecendo. Eu tenho umas ideias do que quero, mas nada muito definido, deixo-me levar pelas pessoas que filmo. Como virtualmente não há dinheiro envolvido na feitura dos filmes, dá-me muita liberdade para experimentar – por vezes funciona e por outras não. Eu gosto muito dessa liberdade e quero continuar a fazer esses filmes, mas quero que os filmes comecem a sustentar-se por si. O próximo também se chamará In Their Room e será filmado numa cidade diferente, mas já terá pouco a ver com os anteriores, talvez tenha só duas pessoas, ou talvez apenas uma… Estou preparado para sair da minha zona de conforto dessa série, porque São Francisco, Berlim e Londres são cidades que acabam por ser muito semelhantes. Vivemos num mundo tão globalizado que, se fores a qualquer grande metrópole, és capaz de encontrar sempre o mesmo tipo de pessoas, quero ir para pequenas cidades e para culturas que não conheço e passar tempo lá e conhecer as pessoas. O meu namorado é brasileiro – ando a começar a aprender um bocadinho de português – e tenho passado os últimos meses do ano no Brasil, por isso talvez o próximo filme seja feito por lá.
Estava a dizer que os filmes do In Their Room não precisam de quase dinheiro nenhum, este último foi financiado pelo Kickstarter, e para o I Want Your Love (2011) só conseguiu financiamento de uma produtora pornográfica. Pergunto-me se o sexo é uma coisa que já não vende no cinema?
Não… a verdade é que eu não procurei dinheiro. Não é como se eu tivesse andado à procura e não tivesse conseguido em lado nenhum e por isso só me restaram essas escolhas. A produtora veio ter comigo e perguntou-me se eu tinha um projecto para lhes apresentar, e eu tinha… deram-me muita liberdade. Claro que teria sido diferente se não tivessem sido eles a produzir, continuaria a ter sexo explícito, mas talvez não tanto. De qualquer forma, eles não me estiveram constantemente a controlar. No caso do Kickstarter… eu nunca tinha feito uma campanha lá, mas o projecto pareceu-me ser de tamanho apropriado. Mas nunca mais quero arranjar financiamento desta maneira, é um trabalho a tempo inteiro conseguir levar avante um projecto pelo Kickstarter.
A propósito disso, quando o Cruising foi feito vivia-se um tempo em que o sexo no cinema era mais frequente, mesmo nos grandes sucessos de bilheteira. Hoje em dia, os grandes filmes de Hollywood são completamente assexuados, veja-se os filmes de super-heróis. Está o sexo a ser levado apenas para os mercados de nicho, para as art houses?
Eu acho que, se estamos a falar da indústria de Hollywood, eles estão a tornar-se cada vez mais conservadores do ponto de vista fiscal – eles só vão fazer remakes porque são sucessos garantidos, ou adaptações de bandas desenhadas porque essas fazem sempre muito dinheiro – eles não querem perder uma fatia dos espectadores apenas porque são demasiado atrevidos. Mas isso é uma coisa completamente diferente, se estamos a falar de filmes de art houses… eu não sei, talvez seja a pessoa errada para perguntar, porque eu sempre filmei sexo nos meus filmes. Eu sinto que o sexo está a ser reclamado de volta. Quando eu fui a Sundance e a Berlim só se ouvia pessoas a comentar ‘é o ano do sexo! é o ano do sexo!’ e eu ‘ok’. Agora vai estrear o Nymphomaniac (2013) do Lars von Trier… eu não sei se isto são casos isolados ou se é uma moda. De qualquer forma, falando de cinema gay, há um interesse em trazer o sexo de volta, porque ao longo dos anos temos vindo a ser encarados como figuras assexuais, em detrimento de outras conquistas sociais (os direitos, o casamento, enfim…), sermos figuras assexuais é de muito melhor gosto para a sociedade.
Regressando ao Interior. Leather Bar., gostava de saber de que forma funcionou a vossa colaboração? Há coisas que são muito evidentemente suas (a cena do quarto, o sexo, as entrevistas…) e outras que associo mais aos filmes do James Franco como realizador (o seu gosto pela história do cinema gay, ele fez filmes sobre o Sal Mineo, River Phoenix ou James Dean).
Quando comecei o projecto eu estava, não quero dizer rígido, mas eu queria ter bastante controlo sobre o que é que íamos fazer nas várias cenas. Como eu escrevi o tratamento, eu queria ter tudo mapeado, porque queria ter a certeza de que conseguíamos filmar tudo. Enquanto que o James estava muito mais… ‘é só uma exploração, nós vamos e logo vemos o que acontece’ e acabámos por nos encontrar a meio caminho sobre o quão estruturado deveria ser o filme. Isto foi uma das coisas que funcionou muito bem entre nós, ele deixou-me planear mais as coisas do que ele tinha previsto e eu deixei-me ser mais solto na rodagem.
Sente-se parte de uma nova geração de realizadores de cinema queer, ou cinema gay, para os quais é importante filmar o sexo de forma mais explícita: como o Ira Sachs [Keep the Lights On (2012)] ou o John Cameron Mitchell [Shortbus (2006)].
Eles são todos meus amigos, todos eles, e também o Andrew Haigh [Weekend (2011)]. Eu fico muito feliz por ser amigo deles, porque os respeito muito. As pessoas gostam muito de colocar molduras à volta das pessoas, de engavetar momentos.
No The Guardian escreveu-se um artigo sobre o ‘new new queer cinema‘…
Sim, exactamente. Parece-me que o new queer cinema era muito guiado por um desejo político, e depois isso passou e houve quase uma década de filmes (há sempre excepções) pirosos, filmes gay de pipoca e então não havia… é melhor calar-me. Sinto que hoje em dia há mais filmes gay, e realizadores, e assuntos que estão a ser tratados de forma mais sofisticada do que estávamos habituados nos últimos 20 anos – onde o sexo e a sexualidade são apenas parte da narrativa, mas nunca são a coisa fundamental. Com o I Want Your Love, eu queria que a pessoa caísse num mundo gay, onde os dramas e as crises não eram especificamente gays, eram crises e dramas de pessoas que por acaso também eram gays. Estamos a ver novas histórias que não são fundadas nos temas do costume: a sida, o sair do armário, o bullying… Estas histórias devem continuar a ser contadas, mas é bom que comecem a surgir novas coisas.