A odisseia espacial que, fora do tempo (como sempre), Stanley Kubrick fez nascer em 1968 é aquilo que todo o Cinema deve ser: um mistério. Ensaio sobre “a mão e o instrumento”, isto é, monumentalidade operática sobre aquilo que o cinema basicamente é sempre: técnica. Toda a técnica implica uma metafísica. O ensinamento sartreano transposto para a problemática da representação fílmica do real por André Bazin ganha aqui um alcance que diria ser finalmente universal. Primeira contradição sublime: o filme mais misterioso e inefável do mundo é também o mais universal. Um filme sobre a Ignorância – a nossa, Humanidade – é um filme sobre todo o saber do mundo – Kubrick chama Infinito; nós, humanos de fracas certezas e fortes superstições, chamamos Deus. O Infinito, contudo, tem de ter um princípio – nenhum filme poderá abdicar de começar… Essa génese estará no gesto do australopithecus: o osso que amassa o crânio, o osso que institui as noções de território, o território que, assim, nasce da força e – é aqui que quero chegar – institucionaliza o terror. Depois disto, com o raccord mais implacável da história do cinema – antes víramos os fade outs mais portentosos da história do cinema – Kubrick varre toda a História do mapa.
Depois da pré-história, 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) especula sobre a pós-história: um futuro onde nos reconhecemos tão pouco quanto naquele passado ancestral. O homem do futuro é o novo homem-macaco, o novo homo sapiens sapiens: o que está “entre” é um parêntesis sem engenho e, por isso, impõe-se a exigência máxima à máquina temporal que é o cinema. Que se suprima o “entre” – isto é, Nós! -, que se dê o “salto quântico”: do osso para a nave! Apesar do seu último plano, 2001 não nos pertence, nunca nos pertence por inteiro. Ela pertence sempre ao cosmos e no cosmos ouve-se “Assim Falou Zaratustra” de Strauss e a técnica encena o seu musical sideral, levitante e sublime. Aqui parece que Kubrick não descobre no vazio do espaço o terrível fim da humanidade, mas talvez o princípio de algo mais belo e harmonioso: o universo sem o Homem.
Antes de o primeiro homem descobrir a guerra – a potência de matar -, uma pedra tumular, tão negra quanto o espaço profundo, ergue-se do nada e motiva a inquietação (que será ainda apenas irrequietude) do homem pré-histórico. A primeira reacção é tocar, mas a pedra impõe distância. O mistério que encerra este objecto totémico, invenção auto-gerada de…, não serve às mãos, mas aos olhos – e, na segunda parte, veremos que não serve definitivamente ao ouvido. Ele oferece o Mistério – todo o mistério do mundo – ao olhar. E é por ele que a dúvida nasce e é pela dúvida que se gera a primeira e última grande invenção humana: a guerra e, mais logo, o estranhoamor à bomba e à “ultra-violência”. “Primeira e última”, escrevi, porque, se virmos bem, não há nenhuma invenção que interesse mais ao realizador de Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957), Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (Doutor Estranhoamor, 1964), A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1974) e Full Metal Jacket (Nascido para Matar, 1986). A partir da guerra, trazida por este túmulo inspirador – monumento ao Deus morto, logo, infinito -, tudo se pare, incluindo a dita civilização humana.
Estamos em 1968, mas o filme tem este título: 2001. Também eu sugiro que se produza um raccord implacável. A frase é de Karl Stockhausen, o pai da música electrónica, com quem trabalhou precisamente György Ligeti, o lado B de Strauss na banda sonora de 2001: “the greatest work of art imaginable for the whole cosmos”. Estas palavras, que podiam ter como objecto o filme de Kubrick, foram proferidas não sobre mas em 2001. Setembro de 2001. Dia 16, cinco dias depois do dia 11. Nunca, desde 1968, esta imagem do totem paralelepipedal impeliu tanto o Homem à mesma inventividade destrutiva. O totem de 2001 é o primeiro ecrã dos dois alicerces intocáveis do mundo ocidental: as Torres Gémeas. Depois do “toque” que as fez cair – ataque de terror devolvido ao Deus Guerra – os humanos elevam nos céus duas luzes. A substituição é fantasmática, aponta para Cima e serve para sossegar o homem moderno: o esquecimento não irá vencer a sua ignorância, mais uma vez. O monólito que viaja pela odisseia kubrickiana é também um marcador – e ao espectador servirá, retroactivamente, de reminder -, um ponto de delimitação entre as imagens. Quando na Terra, na lua ou em pleno cosmos o objecto negro aparece, Kubrick acelera o mergulho no infinito.
No fim (aviso: spoiler), depois da trip psicadélica digna de um filme de James Whitney ou de Jordan Belson, damos por nós num quarto de hotel de estilo rococó kitsch, que caberia num décor de A Clockwork Orange ou numa divisão alucinada por Jack Nicholson em The Shining (Shining, 1980). Aí o astronauta que matou o Deus-máquina Hal (no capítulo de 2001 mais relevante para nós, em que ainda não conhecemos o momento da revolta da técnica contra o criador) vê um homem vestido de negro e de rosto cadavérico. Esse homem é ele, um duplo seu em acelerado processo de envelhecimento. A sucessão temporal torna-se demasiado elíptica para conseguirmos encontrar um eixo de análise: o astronauta desaparece e o velho toma o lugar do novo. Vemo-lo na cama, após o estilhaçamento de um copo – que “rasga” o silêncio da cena, como o monólito na lua produzia um som estridente insuportável ao ouvido humano. À sua frente, a pedra escura, hirta, “dá-se a ver”, oferece-se, de novo, à contemplação. Quando a câmara se aproxima (para tocar?), a imagem é preenchida pelo negro e entramos num cosmos onde já não cabe o homem velho, à beira da morte, mas o óvulo humano de dimensão planetária, maior que todos os (outros) planetas e todas as estrelas: o Homem nasce ou renasce a partir da morte e o homem velho – supomos – é o primeiro e o último espectador deste espectáculo monumental. Assim, o grande espectáculo tele-visionado, exibido no ecrã tumular, é o Nascimento da Humanidade. É o desfecho mais optimista – e, usaria prudentemente o adjectivo, “inesperado” – em toda a obra de Kubrick.
Só um filme desde 1968 – fora o já mencionado 11 de Setembro de 2001 – se aproxima, em profundidade e em escala, do gesto transcendente de Kubrick. Esse filme é The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011). E esta evidência tem sido lamentavelmente pouco reflectida pela globalidade da crítica, em favor de comparações frívolas com um filme como Gravity (Gravidade, 2013), action movie no espaço (sobre o vazio aterrador, precisamente não musical e harmonioso do espaço) que diz muito mais à vertigem e às fobias de um James Cameron que ao ballet tecnológico de Stanley Kubrick. Maria Filomena Molder foi das cabeças que melhor leram a extensão do gesto de Malick, sendo que sobre essa leitura podemos agora assentar os alicerces de cada linha que aqui escrevo. Por exemplo: “Malick não dá elementos: ele é muito elíptico e, ao mesmo tempo, de uma clareza sem fim. Não há qualquer obscuridade nas imagens, nós é que temos dificuldade em compreendê-las, mas elas não são obscuras: não podiam ser mais claras e evidentes“. A clareza de Kubrick não está na fotografia. Mesmo a primeira “história”, “The Dawn of Man”, é filmada debaixo do crepúsculo e entre lentos fade outs, como se a própria Terra não soubesse, então, como agilmente processar o tempo e a luz. A clareza de Kubrick está na sensação de familiaridade, nessa “contiguidade” de sentidos com o “agora”, nessa tangência com a vida que se produz em cada um dos seus planos – mesmo os mais abstractos. Tudo é claramente pertença do Universo – logo, ainda que não o dominemos, parte de Nós. Nada é críptico no sentido de viver apenas de uma racional descodificação. Num primeiro nível, 2001 é só uma “odisseia no espaço”, a experiência de uma experiência impossível no espaço. Todos os outros níveis – nomeadamente os “porquês” do monólito – são dúvidas, matéria reflexiva (ecrãs do pensamento), que nos oferecem uma única certeza: a certeza da nossa ignorância. A dúvida é, portanto, clara em 2001. O mistério é matéria viva de infinitas possibilidades e Kubrick não “joga” com isso, não “inscreve” tramas semióticas por desocultar. De resto, as pistas que dá – a “organicidade” das formas das naves, por exemplo – são claramente insuficientes.
O filme abstracto mais monumental de todos os tempos é muito concreto e muito claro em todas as suas dúvidas infinitas. A morte é matéria de certeza para todos nós, mas nenhum de nós sabe o que é, como é. Especulamos, portanto. Algo semelhante acontece com o tempo e com a técnica que Malick preferiu à guerra de Kubrick, a própria linguagem: “Como diz Santo Agostinho, ‘se me perguntam o que é o tempo, eu não sei. Se não perguntam, eu sei’. Nós estamos quase sempre nessa situação quando falamos. Quando caímos em nós em relação a uma palavra, então procuramos a definição“. Toda a gente sabe do que trata 2001, mesmo se, quando sobre isso questionada, não saiba responder. Para mim, o ecrã-espelho (espelho vem do latim speculum, logo espelhar é especular) é o totem negro, o “cinema total” do cosmos e, enfim, a sua própria “definição”, pelo menos na medida em que definir é limitar – ora, uma questão de enquadramento, ora, uma questão de Cinema.
Outra citação de Filomena Molder a propósito da odisseia de Malick: “O que produz emoção grotesca sublime? São os arranha-céus imensos; a verticalidade produz uma emoção, uma emoção que tem a ver com ameaça ou a consciência estética de que o nosso corpo não consegue medir (…). [É] a verticalidade imensa que os olhos não podem alcançar. Se o nosso corpo está próximo, há um sentimento emotivo ou uma emoção de ameaça terrível. E essa ameaça não é amenizada por nenhuma relação de intimidade“. Encontro sinais da verticalidade monolítica, “ameaçadora” de 2001 na mais incompreendida sequência de The Tree of Life, em que Sean Penn é filmado num atordoante fish eye enquanto deambula dentro de um espaço que o supera, um altíssimo arranha-céus todo ele construído em vidro, aberto à luz mas estruturalmente esmagador. No final do filme, num luminoso éden que é todo ele “espaço aberto”, filmado à altura dos homens e, sobretudo, das crianças, Sean Penn encontra a liberdade. Todo o filme de Malick é a busca de uma liberdade ou, para ser mais exacto, a ânsia de uma libertação. A experiência de luto de uma mãe que perdeu o filho, dor oceânica, incomunicável, que se mistura – e devém matéria – com as imagens da destruição cósmica que forjou o Universo. Do caos, da desordem, desta guerra primitiva anterior a todas as guerras imaginadas – e imaginárias – nasce o Universo. Ao mesmo tempo, Malick fala da morte. Depois, vemos uma criança nascer, aprender a andar, falar e, mais importante ainda talvez, como diz Filomena Molder, a “maravilhar-se” e a ter medo.
“Há uma maneira de traduzir natureza que eu prefiro que vem do grego: physis. (…) Se formos à etimologia originária de natureza tem a ver com proveniência e nascimento (…), tem a ver com aquilo que é nascimento sem cessar (…). É essa a relação que os gregos têm com a natureza: (…) é princípio de génese e é a própria génese“. Malick filma a Natureza (nela surge o Homem), já Kubrick preferiu filmar o conflito do homem com a técnica – logo, com uma ideia (uma representação) de Deus (ou do fogo dos deuses). Contudo, Kubrick e Malick juntam-se neste gesto de fazer equivaler o Nascer ao Morrer. Malick fá-lo logo no início, como que começando o seu filme onde Kubrick terminara o seu. Na realidade, The Tree of Life é uma espécie de big bang fílmico que acontece nessa supressão genialmente pessimista que junta a imagem do osso à imagem da nave. Malick filma o Homem de hoje, o Homem da História – o facto de ser “um filme de época”, passado nos anos 50, só serve este propósito de sublinhar o elemento “histórico” dessa História com “h” maiúsculo. A universalidade em Malick está na vida. Em Kubrick termina aí, porque até à imagem do feto 2001 é uma fria análise da técnica, da vontade de poder e, finalmente, pré-visão da dominação patética do Homem pela técnica. A clareza e luminosidade de Malick, cineasta católico, contrastam com a frieza analítica de Kubrick – e mesmo o magma psicadélico da viagem interestrelar parece provir de uma Natureza erradicada, desfigurada ou horripilante. Do deserto quase marciano do “Dealbar do Homem” – “dealbar” que só voltei a encontrar em A Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha – Kubrick passa para o deserto claustrofóbico, higienizado como qualquer “quarto de hotel”, do “Último Homem”. Malick, por seu lado, faz um tratado sobre a vida, com as irradiações cósmicas dos quatro elementos da Terra: o ar, a terra, o fogo e, sobretudo, a água. “O papel da água na obra de Malick, sobretudo a partir de A Barreira Invisível, (…) é absolutamente central. O papel da água sob todas as formas: a água tranquila, tumultuosa, a água que se despenha numa fúria devastadora, a água que corre, a água que sustém…”
A crítica que entendeu gastar rios de tinta a comparar a rollercoaster ride de Cuarón ao bailado analítico de Kubrick montou uma armadilha ao leitor e a si mesma, sobretudo se antes não gastou o dobro dessa tinta a comparar o filme de Malick não só a Jonas Mekas, Stan Brakhage, mas, antes de tudo, a esta obra-prima intemporal de Kubrick. A comparação pode ser de sinal negativo, mas por trás de cada um destes dois objectos, isto é, no espírito de cada um destes objectos está o mesmo projecto essencial de definição do lugar do Homem no Universo. Resumindo e concluindo: em 2001 pode caber todo o cinema, mas 2001 não cabe em todo o cinema. Actualizar o lugar de 2001 na história das imagens audio/visuais é actualizar o lugar do Homem no Universo. Falhar esta missão é falhar o cinema na sua essência, apetece dizer, “máxima”. Agora que o filme maior da Humanidade estreia comercialmente nas salas (numa cópia digital assombrosa), a crítica de 2013 não poderá continuar mais a insistir nesse logro. 2001 também nos traz, com clareza, o mistério da crítica de cinema. Este poderá ser o único filme do mundo que nunca chega a ser projectado, já que ele nunca cessa de se projectar sobre nós – a sua monumentalidade supera-nos… -, como o universo se “liga” na laje sepulcral de Deus. O canal transmite um programa inquietante: o Homem. Mas quem tem o comando?