No outro dia, o Luís Mendonça (sim, nós falamos uns com os outros, mas apenas sobre cinema) chamou-me a atenção para o facto de Roman Polanski ter uma certa preferência por espaços fechados. E atribuiu essa “opção” à impossibilidade de o polaco pisar solo norte-americano, sob pena de ir parar à prisão (cumprir a pena pelo abuso de uma menor no início dos anos 1970), o que o obriga a refugiar-se em interiores quando a acção dos seus filmes decorre nos Estados Unidos da América, para não trair os exteriores pelo que não são: The Ghost Writer (O Escritor Fantasma, 2010), por exemplo, passado em grande parte na Nova Inglaterra, foi filmado na velha Europa (Alemanha); para evitar esse problema, as únicas cenas fora do apartamento nova-iorquino (um cenário parisiense) em que Carnage (O Deus da Carnificina, 2011) se concentra foram filmadas por uma segunda equipa, sem a presença do cineasta.
No entanto, parece-me que esse desejo de Polanski se enclausurar num só espaço vem de trás. Pense-se em Repulsion (Repulsa, 1965), Cul-de-sac (O Beco, 1966) e mesmo Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968), em que Mia Farrow ia sendo progressivamente apanhada por aquele estranho apartamento e pela não menos estranha vizinhança. Confirme-se que, se não me falham as contas, La Vénus à la fourrure (Vénus de Vison, 2013) [por uma vez, louve-se a tradução de um título para português: que aliciante aliteração!] é a quarta adaptação teatral do realizador (o anterior e já citado Carnage também o era), o que torna ainda mais inexplicável a mise en scène meio desleixada e frouxa que apresenta.
O argumento, escrito a quatro mãos pelo polaco e pelo dramaturgo norte-americano David Ives, adaptando uma peça deste, que, por sua vez, se baseia no livro Venus im Pelz de Leopold von Sacher-Masoch (tio-tetravô de Marianne Faithfull e “inventor” do masoquismo), até é interessante: trata das relações entre homens e mulheres, das transmissões de poder e da subjugação que estas acarretam, das trocas de papéis que podem ocorrer na encenação do amor e, sem querer revelar muito, da vingança sobre o criador artístico [meio ao jeito de Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006) de Jean-Claude Brisseau]. Contudo, o formato da peça talvez seja o mais original que tem: passa-se toda num palco, com apenas duas personagens − um encenador e uma actriz (o que faz de La Vénus à la fourrure uma peça dentro de uma peça dentro de um filme).
De resto, Polanski encontra algumas soluções singulares para a sua adaptação: escolhe a mulher, Emmanuelle Seigner, para protagonista face a Mathieu Amalric, uma espécie de sósia seu (não esquecer que La Vénus… é uma sofisticada “guerra dos sexos”); quando os actores dentro da peça dentro da peça (sim, eu também já estou perdido) “usam” adereços invisíveis, ouvem-se os sons (é verdade, esta ideia não é propriamente brilhante, nem leva a lado algum). O principal problema é a câmara que, depois de se passear por uma avenida parisiense sob uma intempérie virtual (evidentemente criada por computador), na abertura do filme (fará o percurso inverso no final), vagueia pelo cenário sem grande propósito. Como se Polanski não tivesse pensado muito nos planos (escapando-lhe a noção do espaço, escapando-se do confinamento do espaço) nem no lugar que os corpos dos actores ocupam nele (falta a “coreografia” das marcações, algo que o realizador poderia ter trazido do teatro). Ou sequer reparado na sensualidade de Seigner (à parte algumas aproximações ao decote): quando ela calça a bota de cabedal, o espectador quase exige que o Cronenberg de Crash (1996) compareça para dar algum tesão perverso àquilo (e, já agora, se estivesse por ali, para calar a música de Alexandre Desplat, um compositor cada vez mais entediante e amaneirado).
Essa displicência, que já se sentia nas suas últimas obras − o único plano memorável nos quinze anos passados é o final de The Ghost Writer −, revela talvez um certo fastio pelo cinema. E La Vénus à la fourrure é um filme enfastiado, que, no espectador, desperta mais pena do que cansaço.