São raros os momentos em que o cinema consegue transportar consigo o turbilhão de emoções e o longo caminho que percorremos na vida até ao momento em que olhamos para trás e percebemos, de facto, a maneira como tudo o que vivemos ter-nos-á mudado intelectualmente, emocionalmente, e na nossa intimidade física, para fazer aquilo que somos hoje e o lugar que ocupamos no mundo em relação aos outros e a nós próprios. Raros não pela distância que possa existir entre vida e cinema – nada existirá de tão próximo e, ao mesmo tempo, de tão distante -, mas porque para filmes tão grandes como La vie d’Adèle (A Vida de Adèle, 2013), o caminho a fazer é longo, desde o momento em que o filme se imagina até à sua montagem final, passando por uma direcção de actores e uma rodagem intensa, experimental, mas pensada, e que exige o máximo de cada um dos intervenientes. A vida é uma viagem e um filme também o é, condensada nesse “curto” período de seis meses de filmagens onde se vivem anos de vida. Assim se fez La vie d’Adèle, e assim se fez, na nossa perspectiva, um dos filmes mais bonitos, intensos e verdadeiros dos últimos anos. Abdellatif Kechiche, o seu realizador, esteve presente no Lisbon & Estoril Film Festival para apresentar a sua quinta longa-metragem (com estreia comercial a 28 de Novembro), a sua história de uma “heroína da vida quotidiana” que descobre que o amor não tem nome nem sexo, apenas uma cor e as suas emoções – emoções que saem de um corpo mas que se estendem e ficam até ao resto da eternidade.
Devido às cenas explícitas de La vie d’Adèle, à sua longa fabricação, à sua rodagem intensa, surgiram casos na imprensa e em sites internacionais por meias-palavras mal interpretadas entre realizador e actrizes, e que serviram para uma exploração mediática que em nada corresponde à natureza do filme e aos seus objectivos artísticos – uma exploração que não foi estranha, também, a publicações especializadas em cinema (que não hesitaram em colocar um interrogatório quase nunca visto a um autor, buscando, na sua essência, uma justificação perversa do seu olhar e da sua posição enquanto artista). Por isso, optámos por publicar, além da conversa traduzida para português, a conversa na língua original em que foi feita, que pode ser consultada neste link [interview en français].
Noutros filmes, de uma forma mais clássica, costumamos ver actores a dar interpretações técnicas, ou seja, uma versão da leitura que fazem de uma personagem. Mas em La vie d’Adèle, como noutros filmes seus, estamos muito próximos deles e dos seus rostos, e sentimos que há uma máscara que cai – já não vemos reacções que vêm de um código, mas gestos verdadeiros que pertencem ao instinto. O que é que se faz para fazer com que essa máscara caia e encontremos um pedaço de verdade, e não apenas uma interpretação?
Trata-se de um longo processo. Primeiro, há esse desejo, essa vontade de fazer cair a máscara e com que o actor se entregue, que entre dentro de si mesmo e exprima aquilo que ele tem dentro de si. Não tenho um processo preciso nem geral, nem sequer um método para fazer com que isso aconteça. Interrogo-me, a cada encontro com cada actor, sobre a melhor maneira de fazer isso, ou em todo o caso, sobre como tentar fazê-lo. Com alguns actores, acontece de maneira muito rápida, tal como numa relação de cumplicidade afectiva, quase telepática. Com outros, passa por uma busca, e recorro a algo de menos instintivo e mais psicológico, se assim poderei dizer. Há actores que são muito abertos a esse tipo de experiência, outros não tanto, ou que acreditam sê-lo e não o são verdadeiramente, ou que pensam ainda terem feito bem o seu trabalho, que pensam não ter nenhuma máscara, ou, por vezes, que não compreendem aquilo de que estou à espera. É algo que acontece por uma espécie de atordoamento. Algumas pessoas poderão chamar isso de manipulação, mas sei que é algo da ordem da obsessão. Nesse preciso momento, estamos de tal forma mergulhados nessa busca e no trabalho que, quando acontece, é por vezes incompreensível a forma como lá chegámos. Às vezes, percebemos que se tratava, afinal, de algo muito simples, como encontrar o bom sítio, o bom lugar. Outras vezes, trata-se de criar uma atmosfera no plateau. Não tenho nenhuma receita. Sei apenas que, para mim, é algo de obsessivo.
Em vez de manipulação, trata-se talvez de um caminho que percorrem juntos.
De um caminho, mas não me incomoda que se fale de manipulação, caso isso simplifique as coisas. Para alguns, é da ordem da manipulação. A manipulação é algo que pertence às relações humanas. Por vezes, somos também manipulados ou encontramos resistências.
Tudo isso faz parte dos encontros: quando encontramos alguém e algo acontece entre duas pessoas. Nesta história de amor, existem talvez resistências. Acabamos por ter uma personagem que descobre coisas, que se descobre a si mesma, e que muda. Numa relação entre um realizador e um actor, temos também um encontro, e talvez existam também resistências, mas ao mesmo tempo existe um desejo de querer chegar a alguma coisa.
Na relação entre as duas personagens, não creio que a personagem de Adèle se transforme mais do que se revele, que seja já essa mulher com as suas qualidades, o seu ideal, as suas emoções, que se liberte. Talvez até em oposição à personagem de Emma, que acredita já ser livre e que se encontra numa teorização da liberdade e da aspiração artística. Podemos também entrar numa teorização da relação actor-realizador, ou mais precisamente, entre dois indivíduos a quem é dado um papel para se fazer um filme. A parceria possível entre um actor e um realizador passa por algo da ordem da emoção, da percepção, do inconsciente.
A liberdade é algo de importante nos seus filmes. Ou seja, são personagens que procuram ser livres – primeiro, por aquilo que sentem, pelos seus corpos ou pela maneira como se vão posicionar no mundo, mas sobretudo livres para além das convenções sociais. O amor e a emoção têm um papel muito importante.
É sempre difícil libertarmo-nos das convenções sociais, do nosso meio social, do meio de amigos ou do meio afectivo, assim como libertarmo-nos da relação amorosa, de podermos florescer livremente na relação e guardarmos a nossa capacidade de reflexão, de pensamento, de ouvir os nossos desejos e aspirações. Mas é verdade que é um tema, em todo o caso, sobre o qual penso – o que significa ser livre no mundo social no qual evoluímos?
Podemos ser livres para além dessas convenções? Amar é algo que nos leva a ser livres?
Tudo depende daquilo que entendermos por liberdade. No caso do filme – sim, amar leva a libertarmo-nos das convenções sociais. Mas julgo que a verdadeira liberdade passa pela reflexão – uma liberdade de reflexão, portanto -, porque é perfeitamente possível sermos livres dentro dessas convenções. É algo de muito interior.
No filme, Adèle é uma mulher que descobre o amor, a vida e tudo o que vem com isso, naturalmente, mas também a vocação. Algumas pessoas poderão ver uma certa convenção no desejo de Adèle de se tornar uma professora de escola primária, mas na verdade, talvez isso seja exactamente o contrário. A vocação, a curiosidade e a educação pertencem a toda uma outra ordem, algo que nos leva a reflectir, a uma forma de liberdade. É por aí que descobrimos a nossa vocação? A vocação era uma coisa importante a mostrar no filme?
A vocação de Adèle já existe, antes mesmo do encontro com Emma. Adèle quer tornar-se uma professora de escola primária porque é uma profissão – uma bela profissão – e isso está para além da vocação. É algo que pertence ao seu carácter, algo no qual ela imagina florescer. Tudo depende daquilo a que chamamos vocação. A vocação artística, religiosa, profissional, um ideal de vida. Isso deixa de ser uma vocação se se tornar dependente de um encontro. Ou então, esse encontro revela-nos uma outra vocação e a outra pessoa torna-se um instrumento dessa revelação. Penso que a vocação de Adèle é viver. Amar e viver plenamente.
Trata-se também de um filme sobre o desejo e o apetite, não apenas o apetite por comer, mas o apetite por viver. A emoção e o desejo estão muito presentes. São coisas imateriais, mas ao mesmo tempo fazemos um caminho até à emoção através do que é físico, do apetite pelo outro. Para a personagem de Adèle, fazer com que a sua máscara caia passa também por fazer com que o seu corpo se manifeste e reaja. Está sempre muito próximo das suas peles. Também aí, passamos por algo de muito físico até chegarmos, finalmente, à alma das personagens.
Sim…
Gostaria que me falasse desse desejo de ver e filmar esses corpos como uma maneira justa de os ver e conhecê-los para a sua história.
É algo de muito instintivo. Precisamente, é difícil descrever o desejo que temos por filmar um corpo, uma pele ou uma parte de um corpo e de uma pele, algo que nos toca num rosto. Por que razão gosto de olhar para certas bocas? Geralmente, trata-se do movimento da boca, da mastigação, algo que fazemos todos e com o qual se faz um trabalho completamente fisiológico. Esse momento diz-me qualquer coisa, emociona-me, toca-me e faz-me vibrar, da mesma maneira que duas bocas que se beijam ou dois corpos que se tocam. Causa-me uma emoção e é essa emoção que procuro transcrever.
Inspira-se no cinema mudo? Como não há som, obviamente, trata-se de algo de muito sensual, muito erótico, muito físico. Na cena da festa de Emma, há um filme de Pabst que é projectado.
Vi muitos filmes mudos durante o meu período cinéfilo, a minha adolescência. Agora, já não vejo filmes, infelizmente. Sem dúvida que o cinema mudo e talvez o de Pabst em particular me tenha tocado por muitas razões. A realização, a forma de filmar os rostos e o rostos de uma actriz, Louise Brooks. Os filmes dele aspiravam também a essa liberdade social. Há tantos realizadores e filmes que são referências inconscientes… Talvez o cinema mudo consiga captar algo da linguagem dos corpos, dos rostos e o consiga exprimir mais directamente. As palavras ajudam a exprimir essa linguagem. Mas a expressão, o rosto e as emoções que temos em nós imprimem-se, de qualquer modo, antes das palavras e através dos rostos.
Fala-se muito de um “método Kechiche”, mas mais do que um método, trata-se de uma busca e de um caminho. Uma ideia que acredito ser falsa em relação ao seu trabalho – um trabalho único porque procura uma verdade e, quando procuramos uma verdade, temos de ser verdadeiros, em primeiro lugar, em relação a nós próprios – é a de que o “método Kechiche” passa muito pela montagem. Mas parece-me que se trata, em vez disso, de uma busca que faz durante a rodagem com pessoas para quem olha e filma. A rodagem é o momento em que se sente mais vivo?
É talvez o momento mais decisivo da escrita de um filme – o momento em que se cria a vida. Antes desse momento, imaginamos. Estamos dentro de uma mecânica, tal como depois da rodagem, uma mecânica que é também muito criativa e apaixonante. Mas o momento crucial é a rodagem. Não existem pessoas de um filme que se tornam outras durante a montagem, só nos tornamos outro porque a rodagem existe. De qualquer forma, um filme é uma viagem entre o momento em que imaginamos a história e o momento em que termina. São etapas de uma viagem. Para lhe dar uma imagem – a rodagem é o momento em que estamos a navegar sem bússola no meio do mar.
Como o percurso que fazemos nas nossas vidas. No de Adèle, temos um encontro no início – um momento muito forte -, mas quando o filme termina, saímos da sala e ainda estamos a acompanhar Adèle. Ficamos emocionados porque tivemos um encontro com um filme ou uma emoção. Um encontro é algo que nos determina, mudamos com os encontros que fazemos nas nossas vidas, mas é algo que não podemos adivinhar ou esperar, acontecem, simplesmente. O encontro de Adèle com Emma, no filme, é talvez algo de tão forte, imagino, como o encontro que teve quando entrou numa livraria e descobriu esse livro [Le bleu est une couleur chaude]. Abriu o livro e, de repente, tudo começa.
Sim. Trata-se de uma interrogação sobre o sentido do destino. Será que existe um destino? Será que estava escrito que o livro que encontrámos, que abrimos naquele momento, iria falar-nos, ou será que estava escrito que a personagem de Emma iria mudar a vida de Adèle? Posso acreditar que foi a vida – e chamemos a isso o destino – que nos queria levar a esse livro, e que foi esse mesmo destino, nesse encontro, que fez com que Emma se tornasse um instrumento da metamorfose de Adèle. Adèle acaba por estar num caminho desde o início do filme e continua a fazer esse caminho no fim. É num caminho que encontra a personagem de Emma que, tal como esse livro, a ajuda a viver e a revelar-se, tal como nos seus encontros com os seus livros, os seus amigos, a sua profissão.
A personagem de Adèle continua consigo? Vai continuar a querer filmá-la?
De certo modo, penso que já a tinha filmado antes deste filme. Continuarei a filmá-la depois. É uma personagem que me toca, que amo, ou que idealizo. É uma heroína da vida quotidiana que continuará a exprimir-se por outras formas num outro filme.
Existe uma relação directa entre o cinema e o artifício, mas entre todas essas ferramentas, todas as questões de interpretação, de reflexão, de ficção… Quando filma, procura a verdadeira vida?
Julgo que é um momento privilegiado para exprimir, como diz, a verdadeira vida. Um momento forte como o amor, uma relação sexual, o luto, a dor – esses momentos da vida, no cinema e na rodagem, são instantes muito fortes. Estamos à flor da pele e aquilo que chama a verdadeira vida pode surgir aí.
Nos anos 70, Roberto Rossellini veio a Lisboa, à Fundação Gulbenkian, quando ainda estávamos em ditadura, para apresentar Roma, città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945). Fizeram-lhe uma pergunta – será que tinha algum conselho a dar a essa juventude que vivia em ditadura? Ele respondeu – “é estúpido dar conselhos”. Já não vivemos em ditadura, mesmo se talvez possam existir outras, mas gostaria de lhe perguntar – para um jovem que se queira lançar num filme e procurar algo de verdadeiro no cinema, tem algum conselho a dar?
Se não tivesse citado Rossellini, teria respondido como ele. Mas queria talvez acrescentar que, tirando o facto de não ter nenhum conselho a dar, posso prevenir e é talvez uma forma de conselho… Vai ter de fazer das tripas coração.