Neste último texto sobre a edição deste ano do LEFFest 2013, da autoria de Carlos Natálio (CN) e Ricardo Gross (RG), salta à vista que a qualidade média dos filmes que por aqui passaram é invulgarmente alta e passível de antever um ano recheado de auspiciosas estreias em Portugal. Assim queiram os distribuidores nacionais. Pelos nossos olhos já passou o invulgar talento de Hirokazu Koreeda para o melodrama, a reformulação do estatuto do grande plano de Abdellatif Kechiche, a ambição desmedida de Albert Serra e aquele que poderá ser, sem grande escândalo, o filme do ano: The Immigrant (A Imigrante, 2013) de James Gray. Preparem os olhos e os ouvidos.
Mahi Va Gorbeh (Fish & Cat, 2013) de Shahram Mokri
Vamos admitir que a filiação de Mahi Va Gorbeh (Fish & Cat, 2013) tem origem no cinema do húngaro Béla Tarr, com os seus longuíssimos travellings que sugerem uma metafísica que mais não é que pessimismo existencial, o humanismo segundo o gigante Tarr, que influenciou a filmografia “tardia” de Gus Van Sant, com início em Gerry (2002), onde a noção de tempo circular e a repetição de acções observadas de distintos pontos de vista são mais evidentes, e este método ter-se-á infiltrado até no Irão, como o prova Fish & Cat, exercício coreográfico e narrativo aparentemente assente num único plano de mais de duas horas, que ao contrário dos exemplos citados se esgota em si mesmo, exasperando o espectador que vê frustradas todas as expectativas criadas pelo prólogo que informa sobre um restaurante que em 1998 terá estado sob suspeita de servir carne humana aos frequentadores.
O filme de Shahram Mokri faz crescer o suspense a muito largos espaços, relatando histórias anteriores que surgem dos vários cruzamentos de personagens que se encaminham para um acampamento junto de um lago, onde decorrerá um festival de lançamento de papagaios. Estamos sempre à espera do momento em que a carnificina começa, mas antes que nos sirvam o suposto prato principal (apenas narrado e remetido para o fora de campo), há todo um interminável rol de entradas que dão conta do pretensiosismo oco do projecto de Mokri. Típico exemplo da montanha que não pariu um Elefante (2003) digno das parecenças. (RG)
Stop the Pounding Heart (2013) de Roberto Minervini
O ano passado, o segundo tomo da trilogia do Texas, Low Tide (2012) de Roberto Minervini, italiano residente nos Estados Unidos, tinha sido apresentada no LEFFest e tinha deixado a sensação de grande pequeneza, de registo quase documental, perfurando a intimidade pela marca do neo-neo-realismo. Um ano depois, Minervini volta a estar em competição e deixa-me, como penso que aconteceu com o Luís Mendonça o ano passado, um pouco dividido. Por um lado, as imagens deixam transparecer um fascínio do documento, do mostrar e estar com a família Carlson, ultra puritana, texana de gema, figura de pureza, que vive de criar cabras e vender queijo, que crê na submissão bíblica da mulher face ao homem. Mas esse deslumbre também é pelas tatuagens dos jovens texanos, pela obsessão das armas, pelo rodeo (há um jovem que só fala e só pensa em montar touros). Nesse caminho há uma dramaturgia apagada que subitamente ganha contornos ficcionais. De repente há história, há um argumento, um dilema da jovem Sara de 14 anos, um dos 12 filhos, que não sabe se é boa cristã, que tem dúvidas, que talvez não tenha como sonho e projecto de vida casar.
Estamos assim entre o pequeno e o grand récit, entre o minimalismo naturalista de planos longos, que filmam o trabalho, a melancolia, os rastos do western e da ruralidade americana e a pequena princesa que tem o coração que bate forte contra essa vida de restrição para a qual a mãe a educa. Conjunção enigmática com imagens poderosas que vão constantemente apagando os traços de falhanço com momentos de sublimação. Sara assiste a um parto em casa, uma mulher grávida dispara tiros de semiautomática, a mãe terna e inteligente explica à filha como a dúvida é parte do caminho do crescimento e da certeza. Obra exigente que nos faz questionar os valores do aborrecimento, do indie como postura e, com eles, as inquietações espirituais destas pessoas tão disponíveis na sua presença. (CN)
Moloch (1999) de Aleksandr Sokurov
Aleksandr Sokurov é um criador de imagens para cinema tão particulares, que qualquer pessoa que tenha visto um dos seus filmes reconhecerá em outros as mesmas fortes marcas de autoria: as de um cinema que está entre a imagem em movimento e a pintura animada. Moloch faz parte de um conjunto de filmes dedicados a grandes ditadores do século XX, tratando-se aqui de filmar um retrato íntimo de Adolf Hitler, em tom de farsa, recorrendo a uma imponente residência de campo para onde o tirano se retira por uns dias na companhia dos seus mais directos colaboradores.
O que existe em Moloch para lá da estética Sokurov, impregnada de remissões para a pintura romântica alemã de Caspar David Friedrich (1774-1840), paredes meias com o recurso a espaços e enquadramentos que sugerem menos directamente o cinema expressionista germânico, é um pastiche de tiques iconográficos e ideológicos do nacional-socialismo, de onde sai uma caricatura de Hitler não tão distante quanto isso da concepção universal ligeira da terrível figura. Muito pouco para uma obra que se mede com tão enormes referências, enclausuradas num palco de fantoches involuntários de carne e osso (ao menos Syberbergh filmou-os enquanto fantoches de facto, no seu Hitler, ein Film aus Deutschland, de 1977), de onde apenas saem lampejos do invulgar talento de Sokurov para fazer imagens que vão aqui muito além do tosco do retrato que o artista russo se propôs realizar. (RG)
Història de la meva mort (História da Minha Morte, 2013) de Albert Serra
Contou o catalão Albert Serra, na apresentação deste Història de la meva mort, melhor filme este ano em Locarno, que uma vez na Roménia um produtor lhe disse que deveria fazer com o Drácula aquilo que fez com D. Quixote e Sancho Pança em Honor de cavallería (Honra de Cavalaria, 2006). A esta ideia, que o colocava na rota do cinema fantástico (do qual não gosta e que pensa ser para miúdos), juntou a figura do sedutor Casanova (de quem lia História da Minha Vida, o seu livro de memórias) e uniu-os no seu cinema, que é como quem diz, juntou-os num mundo “não fodível” à prova de ataques estético-ideológicos. Neste seu último filme, este é o espaço de liberdade que sugere a oposição entre o riso (de Casanova) e o grito (de Drácula), a passagem da vida à morte, do ambiente racionalista do século dezoito ao romantismo dos cem anos seguintes, do desejo exterior da sociabilidade à submissão dark e interior feminina, implícitos no poder de atracção do conde.
Claro que tudo isto são elaborações nossas, apensas a um mapa de cenas onde o extraordinário trabalho de Serra consiste em captar a inspiração, a improvisação, os diálogos dos seus não-actores (sobretudo da figura proeminente de Casanova interpretado por Vicenç Altaió, um curador de arte e poeta basco) e inclui-los num ambiente de desordenação poética de onde exalta a dimensão performativa na repetição do cinema. Ideia inusitada esta, afirmada pela intenção de recolher elementos da rodagem e compor diálogos imaginários, formatos de imagem não experimentados (Serra filmou em 4/3 e só na pós- produção recortou a imagem para um formato scope). Há nele a intenção de criar o único, o nunca antes criado, rasgo estético e sensorial no espectador, um cinema “contra” ele, de cariz anti-burguês. O que se repete então nesse anseio do irrepetível? A travessia, tema transversal a Serra, o amor masculino – neste caso, entre Casanova e o seu criado Pompeu (Lluís Serrat), espécie de Sancho não oficial, presença constante nos seus filmes e que já o havia sido de pleno direito, no filme que adapta a obra de Cervantes – e ainda a beleza como prolongamento do grotesco. É precisamente esse espaço de alquimia, de transformar, como se diz, “a merda em ouro”, aquilo que define esta passagem da simplicidade dos elementos com que trabalha Albert Serra à construção de um mundo sensorial único, em que mais do que julgar é preciso, como em Dreyer ou Bresson, acreditar. (CN)
The Immigrant (A Imigrante, 2013) de James Gray
Ter dois breves parágrafos para falar do último Gray é como tentar perceber o que são Os Maias através dos livrinhos da Europa América. Anyways, mais uma vez obviamente em territórios classicistas, o cineasta vira, pela primeira vez, o protagonismo para o feminino e constrói uma desmistificação do golden american dream (o dourado está sempre lá na fotografia de Darius Khondji mas é para perverter; ao inverso do filme de Albert Serra, é o “ouro que se transforma em merda”, pelo menos em detrito emocional) com Marion Cotillard como imigrante polaca, estátua da liberdade, enxovalhada, violentada, amada na medida da sua exploração. E é aqui que começa o duplo dilema que ajuda a abrir a caixa de pandora da filiação do cinema do norte-americano. Bruno Weiss (Joachin Phoenix) que explora Ewa (a primeira mulher, também o catolicismo, e a crença genericamente, dão aqui pano para mangas), no momento em que a ama (isto é, em que ama a “liberdade”) tem de, para efectivar esse amor, desvirtuar essa mesma liberdade, mantendo-a cativa.
“Essa cativa que me mantém cativo” é o núcleo de The Immigrant. E James Gray vai sempre fragilizando, passo a passo, no seu controlo absoluto de uma mise en scène subtil, os grilhões dessa cadeia. Está em causa o amor que prende e que liberta, está em causa a passagem do portal que do lado de cá tinha o histrionismo de Cotillard em Édith Piaf e do lado de lá, transformada, o olhar de Lilian Gish, o sofrimento de Falconetti, a condição de Gelsomina. E ela talvez não quererá a libertação como Natalie Wood no The Searchers (A Desaparecida, 1956) ou Yvonne De Carlo em Band of Angels (A Escrava, 1957). Como se pode ver, levantando este véu e mostrando camada atrás de camada, como se de ecos se tratassem, o assunto da genealogia de James Gray é algo complexo: labirinto que pode partir de Copolla, anos 70, movie brats, mas não prescinde da masculidade de Ford, da vingança silenciosa e atmosférica do cinema oriental, do fascínio pelo cinema italiano de Fellini ou Viconti. Tudo desemboca, claro (Gray admitiu-o ontem no fecho da sessão, mas nem será preciso dizê-lo) em Shakespeare. Shakesperiano o seu cinema, nessa suprema arte do duplo dilema, de se fazer algo sacrificando outra coisa, de pôr em contraponto e espelho o bem e o mal, o amor e o ódio, a heroicidade e a canalhice. Voaram os parágrafos e termino com o óbvio. The Immigrant é naturalmente uma obra-prima à qual valerá a pena voltar vezes sem conta sob pena dos “homens em collants” (expressão com que Gray qualificou o cinema norte-americano actual, com super-heróis) acabarem por pôr a derradeira estaca no nosso imaginário. E, com ela, o desmoronar, a dissolução do sentimento de História. (CN)
La vie d’Adèle (A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2, 2013) de Abdellatif Kechiche
O rosto é algo que associamos à identidade de alguém, estando para a intimidade de cada um de nós a correspondência com outras partes do corpo, e quanto mais tapadas estas estiverem maior a sugestão da intimidade. Assim, a sensibilidade para com o potencial revelador de um rosto pode, relativamente ao realizador tunisino Abdellatif Kechiche, estar relacionada com a tradição cultural árabe, que obriga a que em certos países as mulheres o escondam do olhar alheio. La vie d’Adèle: Chapitres 1 & 2 (A Vida de Adèle: Capítulos 1 e 2, 2013) constrói-se por completo sobre o rosto da actriz Adèle Exarchopoulos, sempre filmado de muito perto e que, quando em movimento, é acompanhado frequentes vezes através de enquadramentos igualmente fechados.
O filme corresponde a um período de cerca de três anos na vida de Adèle, do fim do liceu ao começo do trabalho como educadora de infância, sendo o facto mais relevante dessa época a paixão que a liga a Emma (Léa Seydoux), primeiro amor adulto e primeira relação de forte intimidade física com outra mulher. Muito se falou e se falará das cenas de sexo em La vie d’Adèle: Chapitres 1 & 2, iniciadas com aquela que tem uma duração fora do comum. É bem possível que o espectador se sinta mais no papel de intruso quando os rostos das amantes mostram uma intensidade de prazer que o movimento dos corpos não consegue dar a sentir com a mesma força. Serão sempre os rostos, e o rosto de Adèle, o revelar o que ela sente, o seu modo de existir que se liga à essência de quem é. Uma obra digna da paixão do espectador, que não convida à lubricidade mas a um certo pudor. (RG)
Soshite chichi ni naru (Like Father, Like Son, 2013) de Hirokazu Koreeda
Hirokazu Koreeda, de quem têm estreado todos os filmes em Portugal, coloca sempre crianças no centro das ficções, embora Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Fillho, 2013) seja possivelmente o seu primeiro filme para todas as idades. Quer isto dizer que pode ser visto por todos os públicos que haverá sempre coisas a retirar, tanto pelas crianças como pelos adultos, deste belíssimo melodrama, que aborda o caso de duas famílias que à idade de seis anos têm conhecimento de que os filhos foram trocados na maternidade.
O estilo de Koreeda, da construção do argumento à habilidade para trabalhar com actores das várias gerações, remete para o saudoso Edward Yang (1947-2007), realizador chinês de Taiwan que prematuramente nos deixou, e deixou-nos com o deslumbrante Yi yi (2000), quando tinha ainda imenso cinema para dar. É que filmes como Soshite chichi ni naru, ou os de Edward Yang, são muito mais que escrita, planificação, ou direcção de actores. São filmes que vão directo ao coração da vida, que nos fazem retomar o contacto, ao nível da consciência, com o que é essencial. Filmes que mostram como os sentimentos são mais determinantes que o sangue (em sentido genético), e que as pessoas estão cá para dar e receber afecto. Argumentando com muito sóbrio e muito sábio cinema. (RG)
Fruitvale Station (A Última Estação, 2013) de Ryan Coogler
Há filmes em relação aos quais a nota de intenções parece devorar tudo o resto. É o caso desta obra de estreia de Ryan Coogler, acorrentado aos factos verídicos da morte de um jovem negro de 23 anos, Oscar Grant, vítima de agressão policial numa estação ferroviária no regresso da celebração do Ano Novo em 2009, na Califórnia. Essa intenção de nos apiedarmos da morte de um inocente, e com ele, tomarmos consciência dos abusos racistas que a sociedade norte-americana ainda vai destilando foi plenamente conseguida a julgar pelo prémio de melhor filme que o júri do Festival de Sundance lhe concedeu, assim como pelos audience awards que tem vindo a coleccionar um pouco por esse mundo fora.
Fruitvale Station é um drama em que a clareza da vitimização da personagem, a mão pesadona de Coogler na realização e os mecanismos um tanto telenovelescos não deixam grande espaço ao cinema além dessa piedade in your brain que vai sendo inculcada a ferros. Aparte a introdução do conteúdo dos sms, que Oscar vai mandando ao longo do dia, que nos surgem no ecrã, significando uma solução visual para a relação com o telemóvel, e ainda a reflexão em torno de Oprah Winfrey ser vista como guru de mudança e crença para uma classe negra que tenta fazer pela vida, este Fuitvale Station (A Última Estação, 2013) tem pouco mais para oferecer no campo daquilo que vulgarmente se chama cinema. (CN)