Nestes primeiros dias de Lisbon & Estoril Film Festival, o Carlos Natálio (CN) e o Ricardo Gross (RG) já viram a homenagem ao folk anos sessenta nos irmãos Coen, Arnaud Desplechin e Sarah Polley em incursões mais ou menos psicanalíticas e familiares, Rosi com os seus documentários sobre outcasts, e a obra-prima que é Le passé de Asghar Farhadi.
Inside Llewyn Davis (2013) de Joel e Ethan Coen
Na noite em que começo o meu périplo pessoal pelas imagens do Lisbon & Estoril Film Festival, ironia ou habilidade de programação, os irmãos Coen deixam-me uma odisseia no ecrã. Odisseia animal pois há um gato fofo que, diz a internet, os irmãos Coen colocaram no filme pois não tinham história suficiente e que aparentemente fez as delícias de Steven Spielberg e do restante júri em Cannes este ano pois deu-lhe o seu grande prémio. Odisseia também humana, uma vez que o Llewyn Davis (Oscar Isaac) de Inside Llewyn Davis, músico de guitarra na mão e pouco sucesso na cena folk de Nova Iorque nos anos 60, procura constantemente um sítio para dormir. Uma espécie de Ulisses que ainda não sabe a que casa há-de voltar (não tem nenhuma, de facto), dado que primeiro há que sair do loop profissional e existencial que o mantém nas traseiras na história, a cantar para os amigos e em bares de segunda. Nesse percurso o nosso Ulisses está metido num trio Jules et Jim, aliás Jean et Jim, tendo engravidado a namorada de Jim, aliás Justin. Justin Timberlake.
Embora seja agradável, não digo que não, este equilíbrio que os Coen instalam entre a melancolia dos falhados e a ironia dos diálogos, fica a impressão de vermos instalar uma fórmula, também em loop, com elementos bem definidos e pesadões. Actos musicais por inteiro que se repetem, demasiada conversa irritada sobre preservativos, a tentativa de “fuga” com a ida de Llewyn a Chicago para a presença habitual das personagens abstrusas de John Goodman, a cena emocional com o pai, o final, do qual não posso falar, mas o final. Ele também é formular e manifesto dessa manufactura Coen que não surpreende e que parece querer render homenagens. Não se sabe bem é ao quê: se a um ambiente, se ao charme das pessoas que não chegam “lá”, se ao folk… Tecnicamente perfeito, bem escrito, coeso, o filme dos Coen dá-nos isso tudo. Depois parece sair uma bolachinha redonda…Talvez a culpa seja do gato perdido. Maldito. (CN)
Below Sea Level (2008) de Gianfranco Rosi
A primeira pergunta que fizeram a Gianfranco Rosi depois de Below Sea Level, que inaugura a retrospectiva dedicada à sua obra no festival, foi: como tinha sido com o script? Não há script, sabe-se. Há quatro anos de idas, sozinho, equipa composta por ele mesmo, à slab city, uma comunidade de okupas e donos de atrelados, estabelecida numa base militar desactivada no deserto californiano. Mas a questão faz todo o sentido. Em dado momento, em ligeiro contraluz, uma médica, cinquenta anos, rosto marcado, que ali foi parar após uma espiral de desespero que começou quando perdeu a filha, diz que, agora que envelheceu, já não pode contar com o exterior. Tudo tem de vir do interior. O problema é que no interior é tudo igual ao exterior. Ideia arrumada, profunda, poética esta. Como nos filmes… de ficção. Mas estes momentos, epicentros emocionais do filme, resultam dessa plena integração esculpida pela passagem do tempo. Trata-se de casar essa dedicação do documentarista, como momento de entrega a um tema (tornando-se temporariamente homeless, nómada, ao fazer um filme) com estas pessoas com uma relação particular com os objectos, sem casa (imóvel, I mean), sem electricidade, sem água canalizada.
Naquele que é talvez o seu melhor e também menos premiado filme, Rosi apaga-se para deixar aparecer uma galeria de personagens impossíveis: o indomável “insane Wayne”, um transexual veterano de guerra com um cabeleireiro montado na sua rulote ou um senhor de barba que disserta sobre moscas e abelhas. O maior interesse de Below é que estamos constantemente a passar dos herdeiros de Walden aos Freaks de Tod Browning, da ode à liberdade e independência ao exílio emocional de pessoas inadaptadas, dos cromos tresloucados às personagens reais de John Cassavetes. Nessa travessia impõe-se, como se verá, o tema de eleição do documentarista italiano, o fascínio pela inadaptação, quiçá um alter ego sedutor que nunca se teve coragem de ser. (CN)
El Sicario, Room 164 (2010) de Gianfranco Rosi
Quando o ano passado Salomé Lamas venceu o Doclisboa com Terra de Ninguém, houve muita gente que se lembrou deste El Sicario, Room 164 (2010) ele próprio prémio de melhor longa-metragem nesse ano. E com alguma razão. O dispositivo minimal impõe-se como solução para mostrar (imaginar) aquilo que não pode ser mostrado. O passado, naturalmente, e no caso do filme de Rossi, o rosto, o do assassino dos narcotráficos da cidade de Juárez que, com uma recompensa de 250 mil dólares pela sua captura, resolve contar o seu passado num quarto de hotel na fronteira dos Estados Unidos com o México. Nessa exiguidade de circunstâncias, a experiência do Sicario converte-se num diálogo entre o cinema, o desenho e o teatro.
Se o quarto de hotel é o único cenário e se o rosto está tapado com um pano negro, resta a Rosi abrir o filme e a imaginação do espectador por via do racconto desenhado. O assassino vai desenhando (ao ritmo que revive emotivamente o seu passado), num caderno em branco, os métodos de rapto, enumera as qualidades de um assassino, usando os números, as letras, os traços como exorcismo visual. Ainda que o filme de Salomé Lamas questione a performatividade do mercenário português Paulo de Figueiredo (algo que se sobrepõe ao político do filme), em El Sicario essa teatralidade não está tanto no que se diz, parece, mas na reconstituição gestual dos actos de tortura e execução que este homem levou a cabo. Rosi trabalha aqui um dispositivo, o que o afasta da mera observação dos seus outros filmes, mas mantém-se o interesse pela crónica daquele que está na margem. (CN)
Sacro Gra (2013) de Gianfranco Rosi
Como no início de Below Sea Level [ver texto acima], a câmara de Rosi em Sacro Gra, também vem dentro de um veículo a entrar pelo filme adentro, a mostrar a estrada e o avanço. Mas se no primeiro o caminho no deserto californiano é poeirento e Rosi veio para ficar, no filme vencedor do Leão de Ouro deste ano (feito inédito para um documentário), a estrada é asfaltada, pertence ao Grande Raccordo Anulare (a mais utilizada estrada italiana, disposta por 70 km que circundam a capital), e a circulação mantém-se durante todo o filme. Neste trajecto, Rosi esteve dois anos a filmar os habitantes que vivem nas imediações do Gra e a natureza (as ovelhas, o rio, as palmeiras) que compõem o espaço. Duzentas horas de material depois, põe-se o desafio de agrupar tudo, em mosaico que construa a identidade, quiçá ficcional, invisível [além da natural inspiração de Roma (Roma de Fellini, 1971), Rosi apoia-se em As Cidades Invisíveis de Italo Calvino] dos que vivem ali, em trânsito, e, mais uma vez, como sempre, no cinema do documentarista, na margem.
Sacro Gra mostra personagens sui generis e há momentos divertidos e comoventes: um pescador de enguias, strippers num bar de estrada, um “cirurgião” de árvores, um príncipe em decadência que aluga a casa para fotonovelas, um filósofo caseiro que se mudou para um apartamento minúsculo com a filha e observa o Gra a partir da sua janela, um gentil paramédico. Se existem estes snap moments no filme, o problema de Sacro Gra é aqui e ali cair no “pecado” do humanismo, de querer encontrar a poesia na decadência, como forma de explicar como esta pode ser um símbolo da Itália contemporânea, de falta de cultura e falência económica. Talvez o filme consiga sobreviver a essa necessidade de agregação, procurando antes o prazer que pode existir no voyeurismo vagamente hitchcockiano de espreitar pelas janelas ou de seguir uma ligeira tempestade de neve. Nessas ocasiões a geografia vaga do em trânsito é já identidade o suficiente para este graal granítico e suburbano. (CN)
Le passé (2013) de Asghar Farhadi
As primeiras duas cenas de Le passé não só explicam o filme como contrariam a tendência a vê-lo como uma peça de teatro filmado, espécie de “cinéma de papa” iraniano. Marie (a melhor actriz este ano em Cannes, Bérenice Bejo) espera o seu ex-marido (Ali Mosaffa) no aeroporto e, ao vê-lo, começam a falar, mas um vidro entreposto entre os dois não permite que se ouçam (que os ouçamos) só deixando passar esse sinal, o da incomunicação. Ele veio de Teerão a Paris para assinar os papéis do divórcio e poder rever as duas filhas, de um anterior casamento de Marie, mas às quais se afeiçoou. Entram no carro, ela diz-lhe que o carro não é dela, ele dá-lhe indicações para saírem do parque de estacionamento. Marcha atrás e, subitamente, parece baterem em algo que não vemos: olham os dois para trás, isto é, para o passado, claro, e a câmara na parte de trás do carro apanha-os nesse momento de surpresa. Genérico com o título “Le Passé” a ser varrido como por um pára-brisas.
É este recuo e este acto de passar um pano que Farhadi quer filmar. Quer pela parecença dos actores principais, quer pela mera comparação de sinopses é fácil de adivinhar que este seu último filme continua, está instalado, no mesmo território do Urso de Berlim de 2011 Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação). Mas se neste a separação pressupunha a ida da mulher para fora do Irão e, com ele, toda uma filigrana de elementos culturais e burocráticos que se imiscuíam na relação (era a crítica leve, underground, ao sistema), em Le passé esse lado quase “procedimental” está todo ao serviço da dissecação das relações emocionais, sem outro ruído que se ouça. O resultado é um drama rohmeriano tenso, com um notável sentido de ritmo (as duas horas e dez voam), produzido em camadas (os problemas dos adultos e das crianças tocam-se, mas são tratados com cuidado individual) e com uma superior direcção de actores. A gestão da frieza, da calma, das lágrimas, do silêncio introduzem nesta experiência algo da ordem do intolerável e do imediatamente reconhecível. Até ver, o melhor filme do festival, que é como quem diz, e em bom português, uma obra-prima. A ele voltarei certamente, com mais espaço e tempo, quando estrear em sala. (CN)
Jimmy P (2013) de Arnaud Desplechin
Arnaud Desplechin não precisa de nos dizer que fez o filme sob a influência de A Dangerous Method (Um Método Perigoso, 2011) de David Cronenberg. A coisa é por de mais evidente. Quando damos com o nome de Howard Shore nos créditos finais, tal constatação não acrescenta consistência às suspeitas acumuladas. Aqui também se filma uma história verdadeira. A construção da narrativa acompanha o evoluir do processo analítico: a conversa e a relação daí decorrente entre paciente e terapeuta constitui o coração do projecto. O Carl Jung de Desplechin chama-se George Devereux e é interpretado pelo francês Mathieu Amalric. A Sabina de Keira Knightley no filme de Cronenberg é substituída pelo nativo-americano Jimmy P. de Benicio Del Toro. O filme chama-se, justamente, Jimmy P. – Psycotherapy of a Plains Indian (Selecção Oficial – Fora de Competição).
A acção decorre em grande parte num hospital psiquiátrico onde Jimmy Picard é admitido por se queixar de dores de cabeça muito fortes que se pensa resultarem de uma fractura craniana, mas que se virá a concluir terem origem num trauma familiar que condicionou as relações de Jimmy P. com o sexo oposto. Filme tépido, como aliás também era o de Cronenberg, as imagens alinhadas sem que se crie uma qualquer vibração, o caldo dos diálogos aquecido pela omnipresença da banda sonora. Dois actores reféns do postiço dos respectivos sotaques também não ajuda à libertação do lado humano no factor qualidade artística dirigida à boa consciência do público instruído e paciente. Isto é suposto soar-vos aborrecido, porque tanta indistinção nunca imprime outra dinâmica ao filme de Arnaud Desplechin que não seja o ponto-morno. (RG)
Stories We Tell (2012) de Sarah Polley
Stories We Tell (Histórias que Contamos, 2012) é um documentário escrito e realizado pela actriz canadiana tornada realizadora, Sarah Polley, de quem conhecíamos duas longas-metragens: Away From Her (Longe Dela, 2006) e Take this Waltz (Notas de Amor, 2011). Quando num momento adiantado de Stories We Tell (Selecção Oficial – Fora de Competição) alguém questiona Sarah Polley acerca do tema do projecto, ela hesita e fica-se por generalizações sobre a memória e a verdade. A origem do filme está na descoberta feita por Sarah Polley de que o pai biológico não era afinal o homem que sempre esteve ao seu lado mas um amante da mãe de quem Polley se aproximou depois e trouxe para o documentário, junto com os vários meios-irmãos e alguns amigos da falecida mãe.
O resultado é banal e cheio de redundâncias. Às imagens de tipo home-movie juntam-se outras falseadas (um pouco ao jeito do método Atom Egoyan, realizador decisivo na projecção de Polley enquanto actriz) que ilustram os depoimentos. Sarah Polley conduz a orquestra familiar de egos, a começar pelo dela, que sem especial talento reconstitui as vicissitudes da vida sentimental de uma mulher moderna (Diane, mãe de Sarah), carente de atenção, que manteve casos fora do casamento com um homem distante que nunca deixou de amar. Nada do que nos é contado em Stories We Tell não vimos antes vezes sem conta em ficções medianas ou menos que isso. Para quê fazer um filme de natureza tão pessoal, se ao espectador nada acrescenta e à catarse emocional dos que nele participam melhor seria que tivesse permanecido na privacidade das suas vidas? (RG)