Voir des films, voyager. C’est la même chose. Voyager et non pas s’évader ou fuir (to escape).
Serge Daney, L’exercice a été profitable, Monsieur
Mark Cousins é cineasta. Mark Cousins é cronista da revista Sight & Sound. Mark Cousins é cineasta e crítico, mas não detecta fronteiras intransponíveis entre estas duas categorias da cultura cinéfila. Nos seus filmes ensaísticos, Cousins põe em diálogo extractos da história do cinema – de uma história do cinema – com uma travessia pela sua própria memória, sempre “em construção”, do cinema. Na minha viagem à Polónia (e nunca deixaremos de falar disso mesmo: de viagens…), no âmbito do evento Sunday in the Country do festival New Horizons em Wroclaw, produzi a entrevista que se segue, aproveitando esta oportunidade para saber como nasceu o monumental The Story of Film: An Odyssey (A História do Cinema: Uma Odisseia, 2011), o seu filme de 15 partes que nos propõe a revisão, muito crítica, da história oficial do cinema mundial. Graças à Midas Filmes, os espectadores nacionais poderão ver cada uma delas onde estas devem ser vistas: no grande ecrã. Se não estiver por Lisboa nos próximos dias, fica a sugestão de Natal: a caixa de DVDs.
(O À pala de Walsh junta-se à distribuidora/editora Midas Filmes na organização de um debate, intitulado “A História e o Futuro do Cinema”, que se seguirá à exibição, às 22h, na sala 3 do Cinema City Alvalade, da última parte do filme de Cousins. O painel será constituído por João Mário Grilo e Maria João Madeira, tendo como moderadores eu e João Lameira.)
De uma certa maneira, o seu documentário The Story of Film: An Odyssey traduz um desafio à história oficial do cinema, nomeadamente quando olha para outros cinemas, em África, na Índia… Pensa que, apesar de todos os livros que são publicados todos os meses, de todos os cursos de cinema que são ministrados, sabemos muito pouco acerca da verdadeira história do cinema?
Sim, eu penso que não sabemos o que não sabemos. Há sempre cinema para lá do que nós sabemos. Porque o cinema normalmente está associado ao dinheiro, muitas vezes a história do cinema é escrita pelos departamentos de marketing, falando sobre quem ganhou os Óscares, que filme tem o maior orçamento… E eu tento fazer a mim mesmo uma pergunta simples: se nos esquecermos de orçamentos, marketing, Óscares e estrelas e tentar apenas dizer quem são os inovadores, então não será que subitamente a história do cinema se reconfigura e se torna numa outra coisa? Quando falamos dos anos 50, começando no Egipto e continuando com James Dean, isso torna-se excitante. Sim, a história convencional do cinema é muito má. É racista e sexista, pelo menos. Mas eu costumo dizer que sou um constante amador, estou constantemente a aprender. Há muita coisa que não sei também, mas, pelo menos, eu tentei fazer algo que cubra muito mais terreno, com um pouco mais de paixão.
Há em si um lado de arqueólogo.
Sim, há um pouco disso… Eu sinto quase que sou um DJ. Ele pode tocar os temas mais famosos, mas há muito melhor música que apenas as músicas de dança famosas. Há muito mais coisas. Tento isto, que é muito bom e vem do Senegal ou assim. Este é o lado divertido de ser um historiador do cinema. Mas há um outro sentido, em que temos de nos tornar quase como advogados num tribunal, defendendo um cineasta como, por exemplo, Safi Faye, o cineasta senegalês cujo trabalho não está em nenhum ou quase nenhum livro de história do cinema. Queremo-nos levantar, num tribunal, e afirmar que o trabalho desta pessoa passou despercebido e que merece uma melhor reputação.
É interessante usar o termo “historiador do cinema”. Em que ordem devemos definir Mark Cousins: um historiador do cinema, um realizador e um crítico de cinema?
Crítico de cinema no fim, diria, porque nunca fiz crítica a filmes, apenas dois talvez na minha vida. Sou melhor com imagens e menos bom com palavras. Por isso, talvez seja, em primeiro lugar, um realizador. Era realizador antes de ser crítico de cinema. E depois um historiador. Sou historiador no sentido em que leio as fontes primárias que consigo e tentar encontrar um contexto ou um mapa do passado do cinema. O que faço é tentar reunir peças de um puzzle para criar uma imagem geral da história do cinema.
Também é um viajante. Estava a pensar no crítico de cinema Serge Daney, que era também um amante de viagens.
Oh, o meu herói! Serge Daney! Serge Daney! “Eu estou no cinema como um peixe está na água” – é brilhante que ele tenha dito isto. Alguns cineastas, como David Lynch, sentem que podemos fazer os nossos filmes apenas estando sentados numa sala e a olhar para a janela, para o jardim abaixo ou para a cerca. E podemos imaginar um mundo aí, o que é verdade. Outras pessoas podem fazer o contrário, como Gilles Deleuze, que não gostava muito de viajar. Mas eu não consigo esperar para me pôr na estrada. Sou uma daquelas pessoas cujo cérebro só funciona quando estou a andar. Por isso, sim, viajo muito. Com grande pena, o único sítio onde estive em Portugal foi no Porto. Fui lá por causa da Casa da Música… Mas eu adoro viajar. Tenho uma verdadeira sede pela deambulação. Viajar é uma força centrífuga e os historiadores do cinema têm de ter isso; têm de olhar para lá do seu mundo e perceber que cada mundo é o centro do mundo. Portugal é o centro do mundo, a Polónia é o centro do mundo… e eu vivo na Escócia, etc. Temos de nos lembrar que Londres, Paris, Nova Iorque, Los Angeles não são o centro do universo.
Normalmente, associamos a imagem de um historiador com esse tipo de pessoa foucauldiana que vai à biblioteca, procurando a essência das coisas ou os factos ou tentar fazer esse puzzle de que falou. A sua pesquisa, pelo contrário, é feita em movimento. Como é o seu método: vai primeiro à biblioteca ou, porque também não há muita bibliografia sobre os universos cinematográficos que lhe interessam, viaja cegamente para um país e começa por aí?
A história do cinema existe parcialmente em arquivos e bibliotecas. Mas o cinema é uma arte do lugar. Por isso temos de ir a esses lugares também. Quando estava a escrever o livro The Story of Film, fiz cinco meses de muito intensas pesquisas, informando-me sobre partes do planeta que mal conheço. Isso imediatamente deu-me vontade de fazer uma viagem. Esta é uma abordagem “mochila aos ombros” (backpack approach): uma simples mochila, os hotéis mais baratos… E depois zarpamos movidos pela curiosidade. Eu sabia que queria ver como era a campa de Ozu, eu sabia que queria ir à aldeia, fora de Calcutá, onde Satyajit Ray realizou a sua trilogia de Apu… Eu sabia que tinha de ver pelos meus próprios olhos alguns dos lugares onde Ozu filmou no Japão, eu sabia que tinha de ir à campa de Forough [Farrokhzad], a realizadora de Khaneh siah ast (This House is Black, 1963), cujo nome tatuei no meu braço. Tinha de ir a todos estes sítios, pela simples razão de que a historia do cinema, para mim, não devia ser prosa, devia estar mais próxima da poesia e poesia implica lugar, textura, luminosidade, atmosfera, paisagem.
Nesse sentido, terá sido muito significativo para si o salto que deu do livro The Story of Film para The Story of Film: An Odyssey.
Sim, foi. The Story of Film foi eu sentado numa sala durante seis meses. Deixei crescer uma barba. Foi extremamente doméstico. Foi eu e os meus pensamentos. Quando escrevo sobre o rosto de Ingrid Bergman, o seu rosto não está à tua frente, quando lês o livro. Por isso, aí tive de descrever o seu rosto. Tentar compor o seu rosto com as minhas palavras. No filme isto foi completamente o oposto, porque, claro, eu podia mostrar um excerto de Casablanca (1942). O que eu tive de fazer foi: quando estás a olhar o rosto, tentar encaminhar os teus pensamentos para um pequeno passeio sobre o seu rosto e tentar mostrar o processo emocional que lhe subjaz. Por isso, é o oposto: quando realizamos um filme tentamos mostrar o invisível, quando escrevemos um livro tentamos mostrar o visível. É o oposto mas trabalha-se, estranhamente, sobre a mesma matéria.
Em The Story of Film: An Odyssey, usa a sua voz na narração. Com essa opção é como se estivesse a implicar-se no que mostra, como se desse forma a uma visão pessoal da história do cinema. Fez ainda, pelo menos, dois outros filmes que são ainda mais pessoais, What is This Film Called Love (2012) e A Story of Children and Film (2013). Como estabelece esta tensão entre visão pessoal e objectividade histórica?
Eu não sou grande leitor e o argumento de The Story of Film tinha 500 páginas. Nós ponderámos contratar outra pessoa para ler, como Sean Connery. Mas depois comecei a pensar: não será crível, se Sean Connery estiver a falar de cinema iraniano toda a gente sabe que ele não conhece. Claro, eu acredito no que Chris Marker acreditava: que uma narração não tem de ser formal, professoral, retórica ou pedagógica. Não precisa disso. A voz numa narração pode ser muito mais intoxicante – como uma carta de amor. Então, perguntei “por que não tento eu próprio?”. A narração é melhor quando não é puramente factual, porque depois torna-se uma questão “quem diz? Por que diz? A quem diz?”. Todo um conjunto de questões em torno da voz. Eu sei que muita gente não gosta da minha voz, mas pelo menos tem integridade e honestidade. What is This Film Called Love é narrado maioritariamente por uma mulher e depois descobre-se que ela sou eu. O que é uma coisa muito Chris Marker.
Muito Sans soleil (1983).
Sim, muito Sans soleil. Portanto, eu sinto-me livre por usar a minha própria voz. Liberta-me não estar a falar do púlpito, como um Professor em frente à turma. Isso não faz sentido, para mim.
Outra questão que combina movimento, viagem e cinema é o festival de cinema [A Pilgrimage] que organiza com Tilda Swinton. Como é que o concebeu?
Eu e a Tilda fizemos quatro coisas juntos, todas muito diferentes: uma na China, algumas na Escócia, etc. Duas dessas coisas podem ser chamadas de festival de cinema… O principal objectivo é evitar a banalidade, ser imaginativo. Numa era de 20 000 de festivais de cinema em todo o mundo, a forma do festival de cinema precisava desesperadamente de ser mudada. Há tantos festivais, que é preciso encontrar inovações. Nos nossos tempos livres, eu e Tilda, pela piada da coisa e de um modo quase infantil, decidimos tentar encontrar novas formas de festivais. Então, numa peregrinação [pela Escócia], viajámos num camião de 35 toneladas que era um cinema sobre rodas. Isto foi roubar ideias a práticas religiosas, como Santiago Compostela e outros. Isto foi tirar uma forma da vida humana – que é a religião – e aplicar a outro conteúdo – que é seleccionar filmes. E, assim, conseguimos criar algo que nos parecia genuinamente novo e excitante. A nossa ambição é abanar um pouco as coisas, numa escala pequena, de uma maneira acessível, a um nível local. Os nossos preços eram 3 ou 2 libras, o que é um terço do preço standard por um bilhete de cinema no Reino Unido.
Tiveram o apoio do governo?
Tivemos um pouco. A primeira coisa que fizemos foi Ballerina Ballroom Cinema of Dreams, que foi muito divertido e eram oito dias e meio de filmes e dança. O custo total foi, penso, 29 000 libras, o que num festival no Reino Unido não é nada. Assim, tivemos algum apoio e estamos gratos por isso. A maioria das pessoas voluntariaram-se e claro que nós não recebemos honorários ou qualquer coisa parecida. E tudo isto torna-se… Há um livro de Lewis Hyde chamado The Gift. Ele fala da economia da dádiva, da era do consumismo e do materialismo. E acho engraçado fazer algo em troca de nada. Às vezes, quando os espectadores vêm assistir nós cozinhamos arroz e feijão e oferecemos às pessoas quando saem do filme. Eu não sou cristão, mas esta é quase uma ideia cristã: fazer algo em troca de nada. Só pela diversão e pela reunião de uma comunidade.
Essa ideia de religião também está presente nesse seu esforço de criar uma nova comunidade de filmes. Uma “congregação”, de certa forma. Não haverá o risco de estar a criar um novo cânone, uma nova história oficial e a provocar depois a necessidade de um outro Mark Cousins?
Eu adoro listas. Por isso, fiz uma lista. The Story of Film é uma espécie de lista. É uma espécie de menu de degustação, mas é uma lista. A crítica do New York Times disse que todas as futuras revisões da história do cinema devem começar aqui. Óptimo, comecem a rever já. Eu próprio já estou agora “contra” The Story of Film. Tenho vergonha de assumir que quando estava a montar The Story of Film há três anos ainda não tinha visto os filmes de Pedro Costa, ainda não tinha visto os filmes de Lav Diaz. Havia muita coisa que ainda não tinha visto. Wang Bing, por exemplo.
Mas tem sempre de excluir.
A primeira montagem tinha dezanove horas e trinta minutos. Eu tinha sempre uma frase na cabeça: “venha, segunda de manhã”. Existem uns novos cursos intensivos de condução, em que consegues aprender a guiar num fim-de-semana: “venha segunda de manhã e é um condutor”. Se eu conseguisse fazer algo que teoricamente fosse passível de ser visto num fim-de-semana seria: “Segunda de manhã pode voltar aos seus amigos e dizer ‘vi a história do cinema'”.
Ao mesmo tempo, as 15 horas de The Story of Film podem ser um impedimento para que seja visto no grande ecrã. Aceita bem a ideia de que esteja limitado à exibição home video?
Eu fi-lo como sendo um filme único. Nunca pensei como uma série, mas como um filme longo. As pessoas podem “cortá-lo” da forma como quiserem. Eu sabia que estava a usar um estilo mais cinematográfico do que televisivo. Fiz uma lista das técnicas televisivas que existem: muitas “cabeças falantes”, planos de fotografias, ângulos invertidos, oráculos com os nomes das pessoas quando estas aparecem… fiz essa lista e livrei-me de todas estas técnicas. Tentei encontrar um estilo que fosse mais simples e, ao mesmo tempo, um pouco mais cinematográfico. Eu sabia que não queria ser manipulador (grabby) como a televisão, eu sabia que era sobre olhar para uma imagem grande. Mas não pensei que fosse exibido tanto no grande ecrã como acabou por ser, em todo o mundo.
Nós, em Portugal, vamos mostrar o filme no grande ecrã e vendê-lo em DVD. Este é o modelo perfeito para si?
Sim, perfeito. Essas imagens são para ser vistas no grande ecrã. O meu comentário tenta guiar o olhar do espectador ao longo do ecrã, o que tenta, o que é a grande teoria de Meyerhold, que depois Eisenstein usou: o encenador deverá mobilizar o olho do espectador ao longo do palco. Eu tento fazer isso com o meu comentário: “Olha para aqui, olha para ali”. Ora, o olho do espectador move-se muito mais – e mais longe – no grande ecrã. Deve, definitivamente, ser visto no grande ecrã, mas eu fico contente que as pessoas o vejam, de qualquer forma.
Que resultado espera que o seu filme venha a obter?
Para mim, esse resultado já aconteceu. No último ano e meio, diariamente, no Twitter ou Facebook, tive pessoas a contactarem-me, dizendo: “Acabei de ver Sholay (1975), não conhecia”, “Acabei de ver The House is Black“… Quando isso aconteceu uma vez, fiquei contente. Hoje aconteceu já milhares de vezes. Eu fico comovido, quase me vêm as lágrimas aos olhos, porque hoje não faltam pessoas a dizer que as pessoas mais novas não querem ir ao cinema ou não se interessam seriamente por cinema, que a cinefilia está a morrer. Há muita gente a dizer isto. Mas, por aquilo que vejo, se fizermos algo que é acessível, que não diga “isto não é para ti”, que diga “isto é para ti, por favor, entra. Existe aqui uma caverna do Aladino para ti” as pessoas entram. E é notável em que número. Nos tempos modernos, em que as pessoas pensam que tudo é “rápido, rápido, rápido”, em que a atenção se dispersa em clips de YouTube, as pessoas apreciam a disposição épica, as formas discretas e longas, apreciam empenhar-se em algo que as enriqueça. Quão brilhante é isso?
Disse numa entrevista que esta era a década do “ensaio visual”. Acredita que a crítica de cinema tem de mudar? Deve trabalhar directamente com as imagens, não deve ter uma caneta, mas uma espécie da câmara-caneta?
Não digo “deve” como imperativo. Mas se pensarmos em alguém como Serge Daney, não adorarias ver os seus cine-ensaios? Eu falo por mim, porque prefiro imagens a palavras. É natural para mim fazer assim, fazer um filme sobre cinema guiado por imagens. E é isso que tenho estado a fazer, num filme que estreia este mês, um ensaio sobre arquivo, memória, comunismo… É-me muito natural, olhando para Chris Marker, olhando para Jean-Jacques Rousseau, a escrita de Virginia Wolf, Montaigne. Todas estas pessoas perceberam que o ensaio era como fazer passear uma ideia. Era a forma mais livre do pensamento. E é isso que nós, críticos, queremos: sermos o mais intelectual, criativa e poeticamente livres que possamos ser.
Vê no futuro próximo cada vez mais críticos a irem aos festivais para mostrarem os seus mais recentes ensaios visuais?
Eu penso que sim. Eu acho que as grandes revistas de cinema deveriam publicar cine-ensaios todos os meses. Penso que a Sight & Sound fez recentemente um cine-ensaio sobre os cine-ensaios. Parece-me natural proceder nesse sentido. Isso abriria a crítica de cinema. Um dos problemas que tenho é que não sei ler japonês, não sei ler farsi, não sei ler hindi, não sei ler português, por isso, eu não consigo ver o que os críticos estão a dizer nessas linguagens. Mas se esses mesmos críticos fizerem vídeo-ensaios, ensaios baseados em imagens eu poderia entendê-los melhor. Eu penso que este é um grave problema que se coloca à nossa cultura cinéfila. Não sabemos o que disseram os críticos japoneses, por exemplo, sobre qual o significado de Imamura no seu país. Este é um grave problema. Não ouvimos a opinião dos críticos indianos sobre o significado do cinema de Guru Dutt. Eu sinto sede e fome por tudo isto que impede a minha capacidade para compreender o cinema mundial, mais até que a acessibilidade dos próprios filmes.