Na Europa, na Ásia, em África, milhares de jovens e menos jovens americanos lutavam, suavam, sofriam, rebentavam, desfaziam e morriam. Na terra natal, e no cinema, desflorava um género onde, se as tragédias físicas eram bem menos graves, as fracturas psicológicas também quebravam ao meio muito macho. Um género onde o chapéu, o cigarro na ponta da boca e o tom ríspido flamejante de one-liners misóginos apenas camuflavam homens com a cabeça a estourar de fragilidades. Houve um homem que dedicou o melhor da sua arte a este género, escavando até às áreas mais subterrâneas da mente. E inserido no sistema de estúdios. Não, não era inglês. Era alemão.
Na filmografia de Robert Siodmak, costumam destacar-se os clássicos Phantom Lady (A Mulher Desconhecida, 1944), The Killers ( Assassinos, 1946) ou Cris Cross (Dupla Traição, 1949) como as suas principais obras de referência, onde não só construiu os alicerces do film noir (luz e sombras, uso intensivo de espelhos como “reflexos da alma”, homens desgraçados e manipuláveis, arquitectura urbana, isso tudo), como os elevou a patamares bem graúdos. Concordamos com os senhores e senhoras que costumam atirar para a arena estes nomes, mas deixai-nos atirar outro, menos famoso, mas tão ou ainda mais sensacional que os seus “irmãos”: o extraordinário Christmas Holiday (Luz na Alma, 1944), o filme que Robert teve autorização para fazer depois de ter recheado os bolsos dos senhores da Universal com Phantom Lady.
Este espanto de filme deve ser das obras-primas mais inesperadas na história de Hollywood: um filme que foi uma prenda da Universal para a sua menina querida dos musicais, a boneca Deanna Durbin – que nos deixou em Abril deste ano, choremos -, após esta ter dito que queria mudar de registo, de menina bem-comportada para menina de contornos mais soturnos. O seu parceiro escolhido dava pelo nome de Gene Kelly, mundialmente reconhecido, como sabemos, como uma das caras mais identificáveis com o filme negro. Herman J. Mankiewicz como argumentista a partir do conto homónimo de Somerset Maugham. E Siodmak a comandar esta tropa. Portanto, um filme com o título de Christmas Holiday, interpretado por uma adorável menina de matinés para senhores e senhoras respeitáveis e por um actor de musicais na Broadway; suspeitamos que muito público foi vilipendiosamente enganado por tais atributos, pedindo o dinheiro de volta na bilheteira.
Mas esta gente queria o quê? Novela? Bosley Crowter, uma das figuras pardas da crítica americana da altura, deu fortes machadadas no filme, classificando de indigno o que se fez a Miss Durbin – nomeada e mormente terem-na obrigado a ser actriz. Mas isto é uma muito “piquena” parte do sótão negro, negríssimo, preto mais preto não há, de Christmas Holiday, onde há sugestões de incesto, complexos de édipo, ménage à trois entre mãe, filho e nora, e dois enormes flashbacks com a acção invertida no tempo, Hermano J a brincar aos poderes da memória e seus puzzles temporais, tal como fizera num esquecido filme anterior de 1941. E uma missa de Natal que dura aproximadamente cinco minutos.
Uma missa em latim, sagrada, com as personagens principais apenas focadas intermitentemente, com Siodmak a dar relevo à liturgia do momento, sendo esta uma das vezes onde Hollywood mais deve ter estado próxima das procissões do Rossellini. Há uma evidente tensão formal entre o “sagrado” do documental e o “profano” da ficção, com Deanna Durbin e Dean Harens remetidos a uma omnipresente escuridão, separados do ritual que vai sucedendo à sua frente, um ritual com coros e órgãos que quase me leva a reconsiderar a opção de me baptizar.
Uma missa que também serve como verdadeiro início de Christmas Holiday. Se antes da missa acompanhávamos Harens, é a partir deste momento, e sobretudo após o choro de Deanna, que entramos na verdadeira força motriz deste filme. Um abençoado desvio de perspectiva, porque se ficássemos com Harens iríamos entrar por terrenos mais reconhecíveis de vingança e demais patifarias de homem cornudo. Mas com Deanna e o seu choro, um choro de nostalgia, perdão e impotência, ficamos sem dúvida muito mais bem entregues. A partir dessas lágrimas vamos em directo para o abismo, de onde só se sairá num dos mais incríveis finais de sempre no cinema. No cinema, não do cinema americano. O título do filme está todo nesse último plano, autêntico Dreyer em Hollywood. Que filme, Jesus Cristo (som de órgão).