Fotografar é conferir importância.
Susan Sontag, Ensaios sobre Fotografia
Federico Rossin foi o responsável por esta não-conciliação entre, como diria Agnès Varda, duas almas incestuosas: o cinema e a fotografia. De um lado, o movimento (Moving), do outro lado, a imobilidade (Stills). O intenso e intensivo ciclo Moving Stills, pequeno festival dentro do grande festival que foi o Doclisboa 2013, parece ser sobre esta dialéctica entre a imagem que mexe e a imagem que (se) fixa, entre o isto-é e o isto-foi barthesianos. À primeira vista poderá ser isto, mas Rossin não quer oferecer ao espectador viagens fáceis, por territórios batidos, entre paisagens (mesmo as da mente…) já vistas e mil vezes fotografadas. Por isso, nem sempre esse Moving diz respeito a movimento – pode significar comoção, por exemplo – ou é exclusivo do cinema. Da mesma forma, nem sempre esses Stills – o acto de filmar uma foto não poderá ser, em si, um still? – são soberania da fotografia.
Em salas bem assistidas, foi verdadeiramente iluminante acompanhar os vários contornos desse incesto ontológico entre fotografia e cinema, por entre filmes que ora nos fazem crer que estas são duas linguagens contrárias e inconciliáveis, ora nos propõem casamentos semióticos quase perfeitos entre os dois. E ainda há aqueles que, como um dia disse Hollis Frampton [que, neste ciclo, contou com o seu brilhante exercício de (nostalgia) (1971)], nos transmitem a impressão de que fotografia e cinema são partes de uma mesma linguagem que ainda não foi inventada. Trata-se, portanto, de uma proposta exigente e desafiante em que cinema e fotografia dialogam entre si como num jogo de ténis onde a bola é essa linguagem em comum que se poderia apelidar de imagem. Mas com a imagem não vem só a bola de um match entre artes e suportes não-conciliáveis; vem com ela também o rol de perguntas à la Grupo Dziga Vertov, bem presente num dos filmes do ciclo, Six Fois Deux, Part 3A: Photos et Cie (1976) de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville: imagem de quê? Por quem? Contra quem? Imagens fundamentalmente sobre a memória, pública ou privada, e também (mas não só, até porque o ciclo foi longo e rico) sobre o próprio processo (ideológico) de enunciação fotogramatical.
Imagens da memória pública são aquelas que, por exemplo, nos dão filmes como Filmarilyn (1992) e La Disparition: Variation sur des Photos Politiques Truquées (1982). No primeiro vemos Marilyn Monroe quase despida, em várias poses ousadas, “animadas” por um dispositivo simples de justaposição sequencial de imagens. No segundo caso, mais politizado, vemos uma tentativa de desmontar os mecanismos políticos de revisão e “rectificação” da história, pegando em famosas manipulações fotográficas das principais famílias políticas dos regimes totalitários do século XX e dando-lhes, por assim dizer, uma “redentora animação”, reinserindo na imagem os corpos suprimidos. Trata-se, em certa medida, de uma desfantasmagorização não da mas na imagem: os protagonistas ausentados pelas “artes mágicas” da censura política regressam à imagem como fantasmas regressados aos seus corpos. Também sobre imagens da memória pública trabalham filmes como Viet Flakes (1965) e Powszedni Dzién Gestapowca Schmidta (An Ordinary Day of Schmidt, the Gestapo Man, 1963). Se o primeiro colige, num ruidoso frenesim imagético e sonoro, recortes de imagens extraídas do coração infernal da guerra do Vietname, aquele pequeno filme polaco de 10 minutos é uma obra de um gesto apenas: abrir o álbum de fotografias. Não o álbum com as fotos do casamento, do baptizado de um filho, de uma viagem a um destino paradisíaco; abre-se aqui um álbum como quem queima com um cigarro uma ferida mal cicatrizada. A dor e o horror estão naquilo que esse álbum documenta: as atrocidades diárias cometidas por uma alta patente da Gestapo durante o tempo de perseguição e massacre do povo judeu. A famigerada “banalidade do mal” (também) cabe num álbum de fotografias? Tente abri-lo – o álbum? Não, o filme – e verá, num registo perturbantemente casual, um dos ângulos sobre “o irrepresentável”.
Mas falemos de outros álbuns, aqueles que apenas tocam – e nos tocam – nessa outra ferida, mais benigna, mil vezes mais aceitável (até porque não há remédio…), chamada tempo. A memória privada é a memória do snapshot familiar e entre os moving stills em exibição foi daí que vieram as fotografias mais (co-)moventes. Karins Ansikte (Karin’s Face, 1983) foi o único dos filmes do ciclo que, nas sessões onde estive, provocaram uma genuína reacção da parte da plateia. Os aplausos que se seguiram aos seus singelos 14 minutos de projecção não foram aplausos “de circo”, porque não houve nenhum malabarismo ou qualquer espectáculo para celebrar. O filme de Ingmar Bergman é secreto, de uma intimidade quase incomunicável, tão profundo como só o maior dos amores pode ser. E tudo gira – até o nosso mundo, por isso, aplaudimos – em torno do rosto da sua mãe, desde a sua derradeira fotografia de passaporte até às suas fotos de infância. Os espectadores aplaudiram Karins Ansikte não pelas suas fotos mas pela graciosidade do olhar que invisivelmente se inclina sobre todas e cada uma delas. Olhar de filho sem mãe, olhar de filho para quem a mãe não pode desaparecer. As fotografias assinalam essa presença – sob a forma de um amor demasiado grande para ser dito – e essa ausência – no rosto de Karin que, dolorosa e (e)ternamente, já só é fotografia.
Ainda no registo da tal memória privada, e desta feita mais moving de mover do que moving de co-mover, sobressaiu em mim a passagem de To Sang Fotostudio (1997) e The Camera: Je or Camera: I (1977). Os dois registam a pose e o exercício de poder entre retratado e retratista. O primeiro, documentário muito divertido de Johan van der Keuken, mostra como retratar alguém fotograficamente é um exercício de moldagem/modelagem do corpo. To Sang quer dar aos fregueses da sua loja de fotografias uma boa imagem de si mesmo dando àqueles a melhor imagem possível de si mesmos. To Sang não só lhes diz como se devem “colocar” perante a câmara, como age sobre os seus fregueses, corrigindo a postura com as próprias mãos antes de tirar a fotografia. Ele age sobre os seus fregueses como um escultor sobre a matéria, isto é, modela-os moldando a posição do seu corpo directamente com as mãos e, muitas vezes – para desconcerto do cidadão pagante -, sem pedir licença.
A obra bilingue da franco-americana Babette Mangolte foi uma das boas surpresas deste ciclo. The Camera: Je or Camera: I está dividido em duas partes (exceptuando o epílogo). Na primeira metade, ensaia-se uma reflexão sobre o rosto como paisagem de trabalho da fotógrafa retratista, que nunca vemos – todo o filme é rodado em plano subjectivo. Na segunda parte, a paisagem muda (mas não é muda), ainda que o exercício reflexivo ou dialógico se revele quase idêntico: a fotógrafa move-se no espaço urbano, recolhendo as diferentes “expressões” da cidade. A certa altura, a fotógrafa diz sobre a paisagem o que antes dissera sobre a imagem do seu modelo humano: “boa”, “isso mesmo”… Não é apenas trivia acrescentar que, nesta segunda parte, surge, num cameo delicioso, uma novíssima Chantal Akerman. Ela, sem jeito, deixa-se fotografar pelo tal “eu” bilingue do título, que tanto fotografa: “clic, clic, clic”. Este não é um dado “trivial”, porque The Camera: Je or Camera: I lembra nessa parte News From Home (1977), brilhante travelogue sentimental de Chantal Akerman em que a câmara (também je ou já um je belga aculturado pelo I norte-americano?) se deixa perder na cidade de Nova Iorque como que mimando na sua acção o típico fotógrafo de rua, esse “«voyeurista» errante que”, (d)escreveu Susan Sontag em Ensaios sobre Fotografia, “descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos”.
Um filme que merece um destaque “à parte” no âmbito destas revelações públicas da memória privada é Les Années Déclic (1984) do fotojornalista Raymond Depardon. Para mim, este foi um reencontro, já que tinha visto este filme há uns anos e, por sinal, exactamente na mesma sala. Foi, portanto, como reabrir um álbum antigo de fotografias que, ainda que não me possam pertencer, nunca senti tanto como “também minhas”. Em cada fotografia da vida de Depardon eu encontrava um “isto-foi” da minha própria experiência de já ter visto antes, no mesmo local, aquelas imagens. Um déjà vu eminentemente fotográfico. Algo próximo da relação que estabelecemos com fotografias antigas de nós mesmos: eu era assim e agora sou assado – ninguém sai igual depois deste reencontro de si agora com as imagens de si outrora, que no caso de um fotógrafo tão auto-absorvente como Depardon são próximas das imagens que fotografou… naquela altura… quando era assim… Há sempre uma “analogia” ou uma síntese “analógica” entre o “eu” na ou da fotografia e o “eu” que, agora, a observa. O facto de Depardon comentar cada fotografia inclinado sobre ela e em diálogo directo com a câmara de filmar, isto é, com o espectador, mostra em que medida o “eu” se projecta e se “implica”. Esta relação transformadora com o real representado (que Barthes, por sinal, chama analogon) também está na própria matéria deste filme autobiográfico – auto de “quem fui, quem sou” e de “quem fotografei, o que fotografei, o que reproduzi analogicamente através das minhas máquinas de fotografar”. Percebemos, no fim, que Les Années Déclic é um filme de homenagem a quem gerou Depardon, também analogicamente, mas apenas com a ajuda da natureza: os seus pais.
O primeiro cartão profissional de Departon dizia chasseur d’images, algo que literalmente quer dizer “caçador de imagens”. Os fotógrafos e cineastas primitivos usavam as suas câmaras – que já se pareciam perigosamente com armas de fogo, vide o “fuzil fotográfico” de Marey – para, carregando num botão, caçarem uma imagem. Fotografar era uma forma de caçar e, logo, de coleccionar imagens do mundo, vide as vistas dos Lumière. Hoje fotografar é uma arte, uma “escrita” de luz que, no momento justo, o fotógrafo-artista transcreve para a película. Chris Marker permanece um fotógrafo-caçador tal como Agnès Varda e Miroslav Tichý são fotógrafos-coleccionadores. Os três estiveram na retrospectiva de Rossin. Marker abre Si J’avais quatre dromadaires (1966) com a frase, que aqui parafraseio, “a fotografia é como a caça, mas o clique em vez de matar, imortaliza”. O que nos mostra é a imortalização em cinema das fotografias de viagens que antologizou, entre 1954 e 1964, numa série de pequenos photo books intitulados Petite Planète. Esta harmonização de imagens dos quatro cantos do globo tem tudo a ver com viagem e com movimento. Contudo, como acontece no seu famoso La jetée (1962) – ou, posteriormente, em Salut les Cubains (1963) de Agnès Varda – o movimento está apenas na sucessão de centenas de fotografias. Movimentam-se stills, mas sucessivamente os stills são, ainda (still em inglês), fotografias. Em Ulysse (1982), a “respigadora” Varda procura reconstituir, passo a passo, pegada a pegada, a “razão de ser” de uma fotografia sua. A teoria da predestinação fotográfica, ou a convicção de que tudo nela “tem de ter um sentido não-casual”, cairá por terra e é este flop ontológico que Varda põe em jogo.
Outra espécie de armadilha ontológica foi montada pelo (ou em torno do) fotógrafo checo Miroslav Tichý (1926 – 2011). Worldstar (2007) é um documentário insípido que não mereceria este destaque caso não tivesse como objecto um dos poucos fotógrafos “artísticos” que Rossin escolheu para esta retrospectiva – e caso este fotógrafo “artístico” não fosse tão particular. Então, porquê as aspas em “artístico”? Porque Tichý é descoberto e colocado sob as luzes da ribalta já no final da sua vida, quando parecia estar irremediavelmente condenado ao esquecimento. Entre os anos 60 e 80 produziu, com câmaras arcaicas produzidas por si, milhares de fotografias indiscretas “tiradas” (still = steal) a mulheres da sua cidade natal, Kyjov. Quando Tichý é achado, já com cerca de 80 anos, nada mais resta que um homem alcoólico desdentado, com cabelos e barba selvagens, vivendo orgulhosamente numa casa cheia de lixo e insectos. Transformado a contragosto numa “estrela mundial”, Tichý permaneceu desligado da sociedade. Nas poucas entrevistas que deu – e este filme é precioso porque o podemos ver e ouvir – deixou algumas importantes reflexões aos “iniciantes” na arte, como por exemplo: “se quer ser artista, tem de fazer algo pior que qualquer pessoa no mundo” ou, revelando o seu segredo, “em primeiro lugar, tem de arranjar uma câmara má”. Quando neste filme de Natasa von Kopp os curadores do museu de Berlim passam o catálogo da sua exposição a Tichý, este pega nele e, com toda a indiferença do mundo, joga-o fora: “não me interessa nada disto”, “nada me interessa”, “Deus não existe”, “toda a realidade é uma ilusão”, “o amor nunca existiu”… o nihilismo de Tichý, mais do que a colecção de fotografias carcomidas de mulheres apanhadas pela sua câmara homemade, é a grande “sopa da pedra” deste documentário que se desejaria (ainda) mais pobre e menos compostozinho.
Falei de registos da memória pública e da memória privada, mas falta ainda falar da memória morta, isto é, do arquivo. Em dois filmes muito especialmente se detecta este gesto de “escavação” que faz subir à superfície imagens de um passado fantasmagórico ou mítico. De Gevoelige Plaat (The Sensitive Plate, 1976) recupera milhares de negativos de vidro “desenterrados” de uma colecção do estúdio de retratos Merckelbach, em Amesterdão, com rostos dos anos 1920 até aos anos 1950. O rosto é aqui usado, como escreve Margarida Medeiros em Fotografia e Narcisismo, enquanto “elemento de especulação sobre a interioridade” ou como “uma espécie de frontispício da alma”. Durante 60 minutos, olham-nos nos olhos homens e mulheres de diferentes épocas, de expressão congelada, como se o rigor fotográfico fosse um rigor mortis e como se, de facto, citando Sontag, “todas as fotografias fossem um memento mori”. Mais “aventureira” e mítica é a descoberta posta em filme das fotografias que o aeronauta sueco Solomon Andrée tirou na sua expedição falhada ao Pólo Norte, em 1897. The Idea of North (1995) faz-nos viajar em imagens de uma tripulação de fantasmas – Andrée e a sua equipa acabariam por desaparecer para sempre durante essa viagem, apenas deixando atrás de si, como pegadas na neve, as fotografias que, nesta “ideia de norte” (ou nesta “ideia de morte”), se descongelam. Como uma recordação (memento) de uma morte anunciada, os aeronautas pioneiros do passado enviam “postais fotográficos” nos quais o único tema possível é o enigma do seu não-retorno. Postais que, hoje, porventura se “recortarão” da paisagem tumular que os fez desaparecer, imitando, assim, o mais louco filme da retrospectiva, Kurashi Ato (Vestige of Life, 2009), que não podia ficar no silêncio destas palavras e cujo título conclui o que mais intensamente a fotografia acabou por ser ao longo deste ciclo: vestígio de vida.