Podemos levar os problemas da programação cinematográfica na televisão até ao absurdo de, por exemplo, nos perguntarmos se o anúncio ao óleo para fritar que “manda para intervalo” um filme da história do cinema se relaciona com o objecto “interrompido”. Serge Daney distinguia os conceitos de montagem e de “insertagem”, num dos pontos que para si separavam águas entre o que era “do cinema” e “da televisão”. Esta última insere imagens sobre um vazio que urge preencher pela simples razão de que a máquina da televisão, como o teatro para Shakespeare, “must go on”. A lógica desta “insertagem” pode ser pouca, mas a cadeia imparável de imagens inevitavelmente estabelece relações, algumas delas de cariz jornalístico. Todos conhecemos o hábito de fazer da programação de cinema uma extensão das notícias – e, logo, parte integrante de um certo “alinhamento” de jornal. Nesta crónica Civic TV actualizo esta ideia com dois exemplos extraídos da programação cinematográfica de Outubro.
Quando Mandela é internado, lá temos Invictus (2009) a passar na antena. Quando Whitney Houston desapareceu passaram The Bodyguard (O Guarda-costas, 1992). Quando a tragédia do 11 de Setembro faz anos, temos à cabeça o filme de Oliver Stone com Nicolas Cage. Este gesto de pôr em diálogo o cinema com a actualidade pressupõe, de facto, uma política de programação, nem que ad hoc, que consagra o universo do cinema como “contentor extra” de informação. Também era Serge Daney que dizia que o cinema, ao contrário da televisão, chegava sempre atrasado aos acontecimentos. Talvez nalguns casos tenha chegado cedo demais, ido tomar um café, lido o jornal, dado um passeio no campo e, nessa volta, se tenha perdido nos seus próprios pensamentos e esquecido o primeiro encontro. Depois a “actualidade”, farta de esperar, acaba por se estampar com ele, mais ou menos inesperadamente. No caso de filmes como Mad Max Beyond Thunderdome (Mad Max Além da Cúpula do Trovão, 1985) e Beyond Rangoon (Rangoon, 1995) temos dois exemplos distintos de cruzamento com a actualidade: o primeiro filme, que passou no canal Hollywood, parece decalcar (lá está, “antes do tempo”) uma pequena estória bizarra que andou a circular nos jornais por estes dias; o segundo filme, que passou na RTP1, dá “fundo informativo” a uma notícia que teve passagem relativamente discreta na agenda mediática nacional. Os dois estão “alinhados”, voluntária ou involuntariamente, com esta ideia de que na televisão a agenda mediática ou jornalística tende a sobrepor-se a qualquer princípio de proposta estética ou cultural.
Na RTP1, o espectador atento já se deve interrogar, desde logo, por que passam aquele filme àquela hora. O que motivou, da actualidade jornalística, aquela reposição? É como se perguntasse a si mesmo sobre o que terá motivado essa passagem excluindo à partida a primeira causa de todos os filmes: o “seu cinema”. No passado mês de Outubro, Aung San Suu Kyi recebeu o prémio Sakharov de Liberdade de Consciência que lhe fora atribuído há 23 anos, quando a sua luta por uma Birmânia democrática terminou numa condenação a prisão domiciliária que duraria 15 anos e no massacre de milhares de birmaneses. O filme que passa em cima daquele acontecimento é Beyond Rangoon, uma espécie de libelo político sobre o martírio de Aung San Suu Kyi e os fatídicos dias que antecederam as eleições de Maio de 1990, que deram a vitória ao seu partido, a Liga Nacional pela Democracia, mas cujos resultados não seriam aceites pelo partido do poder, o qual reagiria com a detenção da líder democrática. O inglês John Boorman filma a aventura de uma turista norte-americana, Laura Bowmann (boa interpretação de Patricia Arquette), que é colhida pelos acontecimentos da História quando o que procurava em Rangum era um remédio para o seu espírito, ferido indelevelmente pela morte brutal do seu filho pequeno e marido. Na então capital da Birmânia, Bowmann vai encontrar um exemplo maior de coragem na líder Aung San Suu Kyi, mas também naqueles que se batem pela causa democrática, nomeadamente o professor U Aung Ko. É com ele que Laura encetará uma fuga pela selva birmanesa até pisarem solo tailandês.
Boorman filma Beyond Rangoon como uma espécie de filme político “para turista ver” ou, dito de outra maneira, como um filme turístico despertador de consciências. Por um lado, temos a aventura, no fio da navalha, de Laura pela terra selvagem da Birmânia, rumo a uma ideia de liberdade. Por outro lado, de facto, essa ideia de liberdade só se efectivará se Laura, durante essa travessia, se reencontrar consigo mesma e, como diz a certa altura o fantasma do seu filho desaparecido, “deixar partir” as más memórias. É um típico e insípido dispositivo hollywoodesco de “confronto entre conflitos”: um conflito íntimo com um conflito da História. Se Boorman queria que o primeiro servisse de background ao segundo, o resultado, no seu esquematismo retórico, acaba por ditar o contrário: a causa birmanesa está sempre a ser secundarizada pelo drama pessoal da protagonista. Daney escrevia que Out of Africa (África Minha, 1985) era como que uma espécie de cinema a fazer publicidade sobre si mesmo – na sua capacidade para gerar imagens exóticas e irresistíveis das planícies africanas. Neste filme de Boorman, realizador já aqui muito longe do seus melhores títulos (como Point Blank, Hell in the Pacific e Deliverance), temos o exemplo de uma obra que procura fazer da História palco de publicidade televisiva. Dir-me-ão que há qualquer coisa da “timidez” do cinema de estúdio clássico, que Boorman não busca falsas densidades nem mesmo “imagens-postal” de encher o olho e quase se limita a contar uma história humana com boa moral e politicamente sentida. Isso é tudo verdade, tal como também me parece que, apesar de tudo, a relação entre Laura e U Aung Ko tem aquela dose de honestidade “sem programa” que falta a muito cinema contemporâneo. Posto isto, Beyond Rangoon não evita ser, pelo seu esquematismo naïve, um pedaço de cinema não se publicitando a si mesmo, mas fazendo de um acontecimento traumático da história birmanesa um anúncio publicitário à sua heroína-santa Aung San Suu Kyi que, aqui e ali, interrompe (como o óleo para fritar…) o “verdadeiro drama” do filme: aquele que aflige o íntimo profundo da turista norte-americana.
Outro filme que passou no nosso pequeno ecrã e que dialoga com a actualidade noticiosa, desta feita de modo menos literal e – o que importa pouco – voluntário, é Mad Max Beyond Thunderdome ou, simplesmente, Mad Max 3. Ao longo de Outubro, o canal Hollywood passou a famosa trilogia protagonizada por Mel Gibson em cópias radiosas, que foram recentemente lançadas no mercado (inter)nacional em Blu-ray. (Para 2014 está anunciado o reboot da saga, com Tom Hardy no papel principal e de novo com George Miller na realização: Mad Max: Fury Road.) Guardava uma memória muito baça de ter visto na minha infância partes destes três filmes de George Miller. Recordava vagamente a paisagem vermelha infernal, as velocidades furiosas atingidas em estradas desérticas, os carros conduzidos por gangues diabólicos gerados por um qualquer acidente pós-apocalíptico, o ódio sem travões de um jovem Mel Gibson (que como realizador irá empregar a mesma economia de palavras e o mesmo excesso estilístico que dá corpo, um corpo rude…, à violência). Olhando para trás – e agora pude conferir isso – Mad Max parecia-me um western distópico onde os fortes eram substituídos por cidades-Estado com aparência de sucatas e os cidadãos se vestiam como índios/aborígenes punks pós-nucleares. O primeiro filme da trilogia é uma história de vingança longe ainda deste “sentido de apocalipse” que está presente no segundo, de longe o melhor dos três (com uma sequência final de perseguição, “estrada fora”, absolutamente brilhante), e no terceiro, aquele que motiva parte desta crónica.
Se já disse que há claramente uma “estética do lixo” (ou da sucata, para ser mais preciso) que vai sendo trabalhada ao longo desta saga, Mad Max 3 é o que mais cola à sua pele esse sentido de trashyness. No forte/cidade-Estado sucateiro deste filme temos Tina Turner a fazer da “mãe das mães” dessa comunidade perdida no deserto. Dá pelo nome de Aunty Entity e exerce o poder com a tirania própria a uma Junta Militar birmanesa, mas encontra oposição subterraneamente por parte do mais improvável dos seres: “The Master” e “The Blaster”. Falei no singular, sei disso, só que, de facto, estes dois são “um”: um anão (por sinal, interpretado por um dos freaks de Tod Browning, Angelo Rossitto) às costas do gigante. Ou melhor, o primeiro é “o cérebro”, o segundo “um brutamontes”; o primeiro supervisiona o que o segundo guarda pela força: o bem mais precioso que faz a comunidade subsistir no meio do nada, num mundo onde a guerra grassa por causa da falta de fontes energéticas, à cabeça o petróleo. Numa palavra, o “master” desenvolve e o “blaster” protege uma fonte alternativa feita à base de merda de porco. Aunty Entity receia por uma revolução à la Metropolis (Metrópolis, 1927) que, das profundezas, promova estes dois – que são um – a novo líder da cidade. Mad Max será o peão neste jogo de poder que tem a “merda” como principal objecto de disputa – e é aí que gostava de me ficar, porque o filme não produz muito mais do que… merda, precisamente.
Numa notícia publicada no mês de Outubro, lia-se que, eureka!, havia sido descoberta uma forma altamente económica de produção biocombustível: não propriamente merda de porco, mas, mais mad que o próprio Mad Max, arrotos de vaca. No jornal Público, explica-se o sentido de “imaginar” uma vaca a carregar uma mochila às costas com um tubo ligado a uma dos seus quatro estômagos: “A retenção e o aproveitamento dos gases, em particular do metano, produzido pelas vacas, foram testados pelos investigadores do Instituto Nacional de Tecnologia Agro-pecuária (INTA), para reduzir a emissão de gases com efeito de estufa e contribuir para a produção de biocombustível, uma fonte de energia alternativa aos combustíveis fósseis”. A ideia, que de facto é “de mestre”, já estava contida em potência no filme, que de facto é “uma merda”, de George Miller e George Ogilvie. Em vez de gases de vaca – é disso que estamos a falar na notícia – temos o “extra” solidificado de porco – que não chega a ter cheiro num filme todo ele 100% inodoro como é Mad Max Beyond Thunderdome. O fascínio de Miller por porquitos que se tornavam biocombustíveis de entretenimento fílmico para toda a família explica o porquê do realizador australiano ter passado, no espaço de uma década, do cenário dantesco de Mad Max ao farmville cor-de-rosa de Babe (Um Porquinho Chamado Babe, 1995), filme que produziu e que lhe valeu em 1996 a nomeação para sete Óscares, entre eles, o Óscar de Melhor Filme [que, por sinal, acabou ganho por Braveheart (O Desafio do Guerreiro, 1995) de Mel Gibson]. A história desta passagem suína de Miller é hoje considerada por muitos como uma das mais bem educadas mas menos “verdes” bufas que Hollywood libertou. Todos os cuidados são poucos agora que se perfila no horizonte um Mad Max 4.