A trilogia The Hunger Games (ou tetralogia, uma vez que o terceiro tomo será dividido em dois filmes, uma manobra já conhecida) pode ser vista como mais uma lucrativa adaptação de romances para adolescentes/jovens adultos, à maneira de Twilight e Harry Potter. Parece evidente que a Lionsgate, ao investir o que tinha e não tinha em The Hunger Games (The Hunger Games – Os Jogos da Fome, 2012), baseado no primeiro dos muito bem sucedidos livros de Suzanne Collins, pretendia preencher o vazio deixado pelo fim dessas séries. O êxito do filme veio dar razão ao investimento.
No entanto, apesar de os resultados corresponderem ao pretendido, havia algo diferente em The Hunger Games. Não que fosse exactamente um blockbuster de autor – pelo menos, não da maneira que se diz que os Batman de Christopher Nolan o são -, até porque Gary Ross, realizador do interessantíssimo Pleseantville (Viagem ao Passado, 1998) e do apreciável Seabiscuit (Nascido para Ganhar, 2003), não tem o peso do cineasta anglo-americano, não obstante se sentissem os cunhos pessoais de Ross e do co-argumentista Billy Ray [autor dos não menos estimáveis Shattered Glass (Verdade ou Mentira, 2003) e Breach (Quebra de Confiança, 2007) e, tal como Ross, um realizador subvalorizado e mal empregado, quando não desempregado]. Ou um blockbuster indie (porque tal seria um contra-senso) mas, por via dos cineastas citados, do músico T Bone Burnett, supervisor da banda sonora, e dos actores secundários (os sempre excelentes Stanley Tucci, Toby Jones, Donald Sutherland), arrisco a escrever que era um blockbuster adulto (outro perfeito contra-senso que, por uma vez, faz sentido).
O filme de Ross (e o livro de Collins, presume-se) tinha uma componente política que não era meramente decorativa, ainda que a decoração fosse bastante política. O cenário distópico de Panem dividia-se entre os 12 distritos, cinzentos, proletários, muito pobres, e o Capitol, o centro do império que os dominava, magnificente, colorido, estridente, frívolo, como se fora uma criação do Jean-Paul Gaultier dos anos 90 (se bem que o estilista famoso envolvido era Alexander McQueen). Depois, boa parte de The Hunger Games passava-se num reality show mortal, em que os concorrentes, antes de lutarem até à morte, eram embelezados e entrevistados por um Tucci deliciosamente histriónico e coscuvilheiro, uma espécie de Teresa Guilherme retro-futurista; o entretenimento que ligava todos os cidadãos (à televisão), o zénite da “sociedade do espectáculo”, lembrando o magnífico episódio Fifteen Million Credits da série Black Mirror, escrita pelo crítico e argumentista inglês Charlie Brooker, embora não tivesse a mesma sagacidade de perceber que até a dissidência pode ser um produto apetecível – a revolução de The Hunger Games é baseada numa figura salvadora, redentora, um Cristo reencarnado no corpo roliço de Jennifer Lawrence (onde é que já vi isto, Neo?). Até pensadores marxistas, como Mark Fisher, engraçaram com o filme, vendo nele um ataque ao colonialismo e na ameaça de suicídio dos protagonistas a representação do único gesto libertador que um sistema totalitário permite.
É pena, por isso, que The Hunger Games: Catching Fire (The Hunger Games – Em Chamas, 2013), o Empire Strikes Back (O Império Contra-Ataca, 1980) desta tri-tetralogia (é o filme do meio, a preparação para o confronto final), se “normalize” um pouco: desaparecem Ross – substituído por Francis Lawrence, realizador de vídeos de música e blockbusters mais convencionais -, Ray – se bem que Simon Beaufoy e Michael de Bruyn, que escrevem o argumento, também venham de filmes mais pequenos -, e Burnett – deixando a música estridente de James Newton Howard conquistar a banda sonora, entrando por territórios que lhe deviam estar interditos. Por outro lado, o entusiasmo (isto é entretenimento, afinal) reduz-se – os jogos propriamente ditos duram apenas uma hora – e a “emoção” ganha terreno – o resto do filme (que tem quase duas horas e meia) é preenchido com abraços, lágrimas, beijinhos, conversas motivacionais, abraços, lágrimas, beijinhos, conversas importantes, abraços, lágrimas e beijinhos (o aumento da lamechice, claro, é assinalado pelo crescendo da música de Newton Howard). Contudo, nem tudo se vai: Lawrence mantém a estética de Gary Ross; a vertente política torna-se mais evidente – acendem-se focos de rebelião (além do vestido de Katniss, é o próprio mundo que pega fogo), a que a protagonista e o espectador apenas têm acesso através de imagens gravadas (a revolução será televisionada); a qualidade do elenco, ao qual se juntam Philip Seymour Hoffman, Jeffrey Wright (dois dos maiores actores dos últimos vinte anos), Amanda Plummer e Jena Malone, não diminui (apesar dos papéis, às vezes, serem ridiculamente diminutos: Toby Jones aparece numa única cena).
The Hunger Games: Catching Fire é pior que o seu predecessor, será menos adulto talvez, mais conforme à vontade de vender bilhetes. Ainda assim, os melhores blockbusters de 2013 (dos últimos anos?) encontram-se nesta tri-tetralogia e em Pacific Rim (Batalha do Pacífico, 2013) de Guillermo del Toro, pois têm uma óbvia vantagem sobre todos os outros: entretêm verdadeiramente o espectador.