Ao terceiro filme realizado na América, nos estúdios da Paramount, Fritz Lang haveria de realizar aquele que é, senão o mais optimista, um dos mais optimistas filmes da sua carreira. Talvez por isso tenha sido um dos que Lang mais frequentemente renegou em vida, não estivéssemos nós a falar do Senhor “há homens maus e homens muito maus; por conveniência de expressão dizemos que os primeiros são «bons»”. Igualmente mal tratado pela crítica, You and Me (Sozinho na Vida, 1938) é um dos seus filmes menos vistos, o que explica, em parte – como sempre –, a injustiça de algumas apreciações menos simpáticas.
Apesar de vir na sequência de Fury (Fúria, 1935) e We Only Live Once (Só Vivemos Uma Vez, 1937), You and Me denota um Lang ainda impressionado, para o bem e para o mal, com a América que encontrou no seu prolífico exílio. Com efeito, na primeiríssima sequência do filme, que corresponde ao primeiro dos três (pouco ortodoxos) momentos musicais do filme (cortesia de Kurt Weill), ouvimos o narrador exclamar, em off, “You cannot get something for nothing!”, proclamação que serve de intróito a uma sequência fabulosa sobre o poder do dinheiro. Com montagem aceleradíssima (metáfora visual para a “aceleração” multiplicadora do dinheiro, própria do capitalismo), essa sequência constitui uma breve lição oral e visual, em estilo publicitário, sobre como o dinheiro pode (quase) tudo (o narrador diz que pode mesmo tudo, beleza e cultura incluídas) e a voracidade e obsessão (pelo consumo, pelos bens materiais) que ele desperta nos homens.
Mas se o consumismo “lícito”, digamos assim, é um dos lados da moeda, o seu revés logo se revela: se, para se ter tudo, tudo se tem de comprar, quem não tem dinheiro para comprar, terá que… roubar. Capitalismo/consumismo e crime de mão dada, portanto, a princípio de modo insinuante (as pistolas que surgem, nessa sequência, como um dos bens para cuja posse o dinheiro é essencial); depois, às claras, na cena – imediatamente a seguir à referida sequência – em que Helen (belíssima Sylvia Sidney, como é hábito), funcionária nos armazéns Morris, surpreende uma cliente roubando uma peça de roupa. Dinheiro e ganância, capitalismo e crime: estas são, assim, algumas das linhas com que se cose a teia moral de You and Me, as mesmas, afinal, de um género – o noir – que, neste filme de Lang, coabita, estranha mas graciosamente (meta-se nisto o subjectivismo que se quiser), com outros géneros pouco prováveis (drama social, melodrama, screwball comedy e mesmo o musical). Noir que, também do ponto de vista plástico, emerge por via da sensação de alienação urbana que perpassa o filme, e que, aqui como noutros filmes de Lang, é obtida, por efeito de paradoxo, através da filmagem das personagens em locais isolados dentro da grande metrópole e separadas da massa humana (como círculos concêntricos autónomos “dentro” do círculo maior), que nunca vemos (com excepção da cena no clube a que o casal vai dançar) – M (Matou, 1931) é um exemplo magistral da utilização deste recurso para simbolizar esta atomização social.
Retomando a ideia do (inusitado) optimismo languiano, ele está patente, desde logo, na personagem do progressista Jerome Morris, dono dos armazéns com o mesmo nome, cuja filosofia passa por empregar antigos presos, de modo a reencaminhá-los no “bom caminho” [há sempre algo de impositivo nesta atitude normalizante/normativizante, como se de uma “cura” a aplicar a um “doente” se tratasse, o que explica, em parte, o abandono, ao longo do século passado, das teorias jurídico-penais ligadas à chamada prevenção especial positiva, porque não respeitadoras da liberdade auto-determinante do homem e contrárias ao imperativo kantiano deste como um fim em si mesmo – A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971), de Stanley Kubrick, é uma boa introdução fílmica a estas questões]. Morris encarna, se quisermos, um “lado bom” do capitalismo que Lang, à época, entreviu no seu exílio americano, mas que, posteriormente, mais velho e mais céptico, disse só existir nos contos de fadas. A única regra definida por este patrão crente na bondade do homem (um alter ego “impossível” de Lang, se quisermos) é a de que os funcionários ex-presos não podem saber do passado criminal uns dos outros, vindo a ser justamente esta imposição o rastilho de uma série de mentiras e mal entendidos entre Helen e Joe (George Raft, de uma expressividade facial directamente importada do mudo), um casal de ex-presos a trabalhar nos armazéns Morris, ambos em liberdade condicional, ambos sentindo o peso estigmatizador do passado e ambos digerindo mal a culpa associada ao mesmo (tema, de resto, por demais tratado na filmografia de Lang).
Ao contrário de Joe, que, desde o início, sente a necessidade de lhe contar o seu “verdadeiro” passado como forma de remissão dos seus pecados (confissão na qual, paradoxalmente, Helen tem um papel deveras pedagógico), numa “operação” confessional de claro recorte judaico-cristão, Helen mantém-no em segredo, levando uma vida dupla geradora de gags onde o drama e a comédia gravitam em simultâneo. É o caso da cena em que Helen “divide” o seu apartamento em dois (mise en scène de tirar a respiração), numa parte decorrendo a sua vida “real” (onde recebe o guarda prisional responsável pelo seu acompanhamento durante o período de liberdade condicional), e, na outra, a sua vida camaleónica (onde Joe a aguarda, já desconfiado de algumas incongruências no seu comportamento).
Mas optimismo, também, na auto-determinação que Lang concede às suas personagens, libertas de fatalismos insuperáveis (tipicamente languianos) e só dependendo de si mesmas para trilharem o seu caminho, no qual parece existir sempre uma segunda oportunidade. É assim com o armazém onde todos têm uma nova chance de encarreirar na vida e, também, por exemplo, com a decisão de Joe, logo no início do filme, em partir rumo à Califórnia, plano que só aborta porque ele e Helen decidem, nessa mesma noite, casar (uma oportunidade a ceder o lugar a outra).
E, faltava dizê-lo, porque nuclear, optimismo no amor, enquanto forma de reconciliação do indivíduo consigo mesmo – o que não é coisa pouca… – e, no filme de Lang, com a própria sociedade, a este respeito se podendo perspectivar Joe e Helen como um casal nos antípodas de Bonnie and Clyde (o amor une-os na fuga ao crime, não na sua prática). Neste particular, You and Me imortalizou, entre outros momentos (a lua-de-mel “gastronómica”, por exemplo), dois absolutamente deliciosos – aquele que dá nome ao filme e, sobretudo, essa inesquecível sequência de onde sobressai uma subliminar mas vigorosa mensagem de que o amor se sobrepõe aos impulsos meramente carnais: nas escadas rolantes dos armazéns, numa conversa aparentemente – só aparentemente – banal sobre ténis entre Joe e uma cliente atrevida (atente-se na polissemia quase infinita do diálogo e, especialmente, do verbo “to play”…) – que é, a bem dizer, todo um convite sexual –, Joe rapidamente se desliga e, concentrado no olhar de Helen, que sobe em sentido inverso, faz pousar, muito discretamente, a sua mão sobre a dela (só por esta sequência, só por este hands touch, Lang merecia um epíteto semelhante ao de Lubitsch…). Enfim, e para pouparmos nas palavras – embora, para bom cinéfilo, uma imagem não baste, faltando-lhe o movimento… –, é tudo de uma economia de meios, de um estilo (no autêntico sentido do termo, que dispensa “efeitos especiais” e adornos supérfluos), de uma delicadeza, que – para acompanhar, só por momentos, o espírito pessimista de Lang – já não se vê hoje em dia.
Mas – há sempre uma pedra no caminho dos que querem renascer – não casar é, precisamente, uma das condições para continuar em liberdade condicional e aspirar à futura liberdade plena (há, aliás, um brilhante fundido que sobrepõe o casal abraçado com o “DO NOT MARRY” constante do livrete prisional que Joe e Helen transportam consigo). Estranho preceito, este, contra o qual, porém, o amor de Helen e Joe se rebela, daí resultando a necessidade de o ocultarem de todos, com excepção do curioso casal Levine, imigrantes vizinhos de Helen que lhe arrendam o apartamento e que, sem o saberem, colaboram na manutenção das aparências, em gags de uma incomensurável ternura (sem prejuízo das alfinetadas do filme ao seu puritanismo sexual).
Contudo, mesmo casados, a aura do passado e da culpa não deixa de pairar sobre o ar, ou melhor, sobre Helen: aos poucos, fruto de sucessivos equívocos, Joe vai apercebendo-se de que Helen esconde algo e a descoberta da verdade deixá-lo-á profundamente abalado (como se ela fosse a sua última hipótese de acreditar numa vida “decente”). O filme vive, portanto, nesta tensão permanente entre o bright side e o dark side da vida (tópico clássico na psicologia dos gangsters “sensíveis” de muito noir), a este último acabando Joe, em desespero, por voltar, em nova demonstração do amor como determinante irresistível na pacificação ou turbulência do espírito do indivíduo. Assim, num ímpeto furioso, Joe junta-se aos seus colegas de trabalho (e ex-companheiros de prisão) para assaltar, durante a noite, o armazém do velho Morris (golpada que os gangsters acertam no underground da cidade, cujo desenho urbanístico potencia o binómio superfície-legalidade/subsolo-crime, talqualmente acontecia já em M, como escrevemos noutras paragens – Diversitates, Vol. 4, n.º 2, 2012). Os discípulos rebelando-se contra o Mestre.
Se foi Lang que disse, a propósito de The Women in the Window (Suprema Decisão, 1944), que rejeitou um final trágico para o filme porque lhe parecia “demasiado pessimista uma tragédia para nada, apenas ditada por um destino implacável”, o mesmo raciocínio se poderia transpor para You and Me, com a particularidade do happy end ser, aqui, ditado – literalmente – pela contabilidade “de mercearia” a que Helen recorre para explicar, a giz e num quadro de lousa – o tom professoral paredes meias com o maternal sai reforçado pelo local onde a cena decorre, uma divisão de brinquedos para crianças, com isso se infantilizando (humanizando, hoc sensu) a figura do gangster –, a Joe e aos seus comparsas que o crime… não compensa (o que não deixa de entrar em contradição, repare-se, com a cena, no início do filme, em que a cliente é apanhada a roubar uma peça de roupa e acaba por sair por cima com a benevolência da própria Helen). Crime doesn’t pay, love… does it.