Albert Serra é o homem do momento no cinema espanhol. Venceu o Festival de Locarno com Història de la meva mort (História da Minha Morte, 2013), fusão surrealizante das memórias de Casanova e da figura do Conde Drácula, e o sucesso dá combustível às suas palavras incendiárias. Enfant terrible, desconcertante. Quase nada fica de fora da mira desta espécie de duplo catalão de Fassbinder. Nesta conversa com o Carlos Natálio e o Luís Mendonça, feita aquando da sua presença em Lisboa no decorrer da mais recente edição do Lisbon & Estoril Film Festival, quase nada é intocável: os actores profissionais, o cinema burguês, o cinema lésbico de Kechiche, o próprio cinema espanhol.
Luís Mendonça – És um cineasta que ainda parece acreditar numa dimensão artesanal do cinema. Os teus filmes são filmados com orçamento curto e a tua equipa constituída por amigos e habitantes da tua aldeia, Girona, na Catalunha. Ao mesmo tempo, desde o início que filmas em digital. Concordas com algumas opiniões que vêem no digital o desaparecimento do lado material do cinema?
Albert Serra – A palavra artesanal não me agrada muito. O meu enfoque é mais ambicioso do ponto de vista estético, mais formalista ou mesmo mais experimental (palavra que também não me agrada muito). Artesanal faz-me pensar naqueles que fazem sempre o mesmo. Eu usei o digital porque me servia a mim, mas é-me indiferente o suporte que cada um usa. Não tenho preconceitos em relação a isso. Foi curioso. Quando comecei a filmar em digital muita gente dizia que era um sacrilégio e agora já todos o usam… Já quase ninguém filma em 35 mm. Nem nos EUA, muito menos na Europa. Mesmo o Straub e outros estão a filmar os últimos filmes em digital também… Mas em relação ao digital há algo que me deixa algumas dúvidas: é a projecção em DCP (Digital Cinema Package), a projecção digital. Porque, neste caso, como não há uma máquina a mover-se também não há tempo, não tens o sentido do tempo que corresponde ao movimento da película. De certa maneira estás como se estivesses em casa a ver televisão. Estou um pouco contra isto, é como ir ver televisão numa tela grande. Perdeu-se a sensação de que se estava a partilhar algo, com a película que te marcava, a ti e aos outros espectadores que iam à sessão. A sensação de estarmos todos no mesmo tempo que é o do movimento da película. Isso perdeu-se. E com essa mudança a percepção no cinema tornar-se mais superficial. É como ver televisão, não há movimento, não há tempo, há uma imagem sintética. Além disso, a qualidade é muito pior. Um pouco como aconteceu com o CD e o vinil. Por mais qualidade que tenha o CD nunca chega à capacidade do vinil, é a diferença entre digital e analógico. Além destas questões da falta de movimento e tempo os filmes são eles próprios muito mais aborrecidos. Eu, se a projecção é em DCP quase nunca vou, prefiro ver em casa, no computador ou na televisão. É o mesmo. No cinema a única diferença é que a tela é maior…
LM – Tarantino dizia que a projecção digital era como ver televisão em público…
AS – Sim, por isso. Não acho estranho que hoje as pessoas não vão tanto ao cinema, porque o que te oferecem já tens em casa. Eu acho que o 35 mm, como formato de rodagem, mas sobretudo como projecção vai voltar. Acontecerá um pouco como o que sucedeu com o vinil. Quase que desapareceu e depois, pouco a pouco… Claro que não voltará a ser como dantes. Mas muitas salas que agora venderam o projector de 35 para pôr o DCP, dentro de dez, quinze anos vão comprar outra máquina para projectar naquele formato.
Carlos Natálio – Uma coisa meio vintage…
AS – Vintage não direi. Mas será uma experiência diferente. Não é a mesma coisa ouvir um vinil ou um CD. O ritual muda, é mais bonito, tens a capa…
LM – E nessa altura pensas filmar em 35mm?
AS – Não, nunca. Isso é impossível por causa do meu trabalho com os actores. Se não existisse digital nunca me tinha ocorrido ser realizador. Primeiro, porque queria fazê-lo sozinho, à minha maneira. Não quero técnicos. Há uma coisa divertida; agora para este filme usámos câmaras Alexa, câmaras digitais mas com lentes de cinema, e muito semelhante às câmaras 35 na maneira de rodar. Não gostava muito da ideia mas deixei-me convencer pelo director de fotografia. As câmaras eram maiores, com ópticas mais pesadas. As câmaras pequenas digitais têm muita profundidade de campo, mas aqui era preciso alguém para fazer e medir o foco. Ao observar este tipo [o assistente de imagem] dei-me conta de que o que ele gostava, o que lhe dava mais prazer na vida era medir, sacar da fita métrica e medir a distância entre a câmara e o que ia ser filmado. E para ele era-lhe igual se o filme era bom ou mau. Ou se estivesse numa equipa de inúteis, desgraçados, desfrutava quase igual. É aqui que aplicaria a palavra artesanal, no seu pior sentido. Toda esta gente a quem apenas lhe interessa este aspecto. Assim, quando mudei de câmaras tive de despedi-los. No início da rodagem, passados oitos, dez dias disse a estas pessoas, como ao tal senhor que media o foco, que tinham de ir. Porque a mim não me interessava o ambiente psicológico que estas pessoas criavam na rodagem. Não têm paixão pelo filme. Porque a sua paixão é pela fita métrica, não pelo filme. Além disso, não estavam imersos no tema do filme. Quanto mais técnica é uma pessoa mais ela separa a técnica do filme. E depois há a questão da concentração. Quando estão a medir o foco podem falar de qualquer coisa e quebram a concentração de um foco muito mais criativo. Neste caso temos de estar super concentrados, não podemos ter conversas banais durante o trabalho. A questão da imersão não é um tópico, é a verdade. Todas estas pessoas, que são artesãos, no pior sentido da palavra, não contribuem para esta concentração.
CN – Tens interesse por narrativas que são do conhecimento geral (como D. Quixote, os Três Reis Magos ou a figura de Casanova) e isso parece libertar-te das estruturas normais do storytelling. Sentes algum tipo de responsabilidade a lidar com estas histórias?
AS – Responsabilidade não. Sempre soube que não ia ser julgado por ter feito uma boa ou má adaptação de D. Quixote, mas sim que as pessoas iam ver se fiz um bom ou mau filme. Pode até acontecer estarmos perante um bom filme e uma má adaptação, ou o contrário. Por isso o meu ponto de partida é a liberdade total, não tenho nenhum problema com isso.
CN – E vês a narrativa como um fardo?
AS – Tema complexo o da narrativa e que me interessa muito. O cinema para mim sempre teve um lado transgressivo, sair da vida quotidiana, fazer algo mais divertido. Fazer o que te apetece, coisas que estão para além da vida real. Isso implicaria logo que nunca podia ser muito fiel às histórias. Para introduzir um pouco de loucura não podes estar obcecado em adaptar tudo perfeitamente senão ficas como o gajo da fita métrica e dos focos, mas a tua obsessão será a adaptação. Por isso, no início via a narrativa um pouco como um fardo porque me queria divertir. Pouco a pouco fui-me divertindo com outras coisas, introduzindo outros matizes. Por exemplo, neste filme a narrativa tem um pouco mais de papel. Talvez não lhe dê mais importância, uso-a é para os meus fins, para enriquecer, adicionar coisas. A narrativa como uma camada mais de sentido.
CN – Nesse sentido achas que o teu cinema é mais de abundância (“fullness”) ou de escassez (“emptiness”)?
AS – Isso é o método. Mas o que interessa é o resultado. O método cada um fabrica o seu. A graça deste filme [Història de la meva mort] é que se juntam coisas e a graça dos meus outros filmes é que houve um certo esvaziamento, sim. Mas aqui como resultado final, não como método. Não tenho nenhum sistema. Com cada actor faço coisas diferentes, cada filme é um mundo. Eu não quero fazer carreira no cinema. Para mim cada coisa tem o seu sentido no momento presente. Não tenho nenhuma visão sobre o meu próprio trabalho, a minha obra, carreira ou evolução. Procuro esquecer isso e concentrar-me no presente da cada coisa. Mas depois é verdade que alguns filmes não são tão minimalistas. Mas o que interessa é que cada momento é único.
CN – Em relação aos actores, trabalhas com não-profissionais e preferes a improvisação. Isso significa que não acreditas num cinema para lá da improvisação? Que não há nenhum tipo de verdade para lá dessa improvisação?
AS – Eu não procuro nenhuma verdade, eu não quero saber dela. Eu procuro é beleza. Eu nem sequer sei o que é essa verdade. Mesmo na representação de cinema não há nenhum tipo de verdade. Isso não me interessa. O que gosto é do lado performativo da verdade do momento. Todos os filmes são mais ou menos um certificado documental da verdade do momento, da verdade de um actor a montar uma actuação. Também há essa leitura possível no filme. Por exemplo, Humphrey Bogart é Rick no Casablanca (1942) mas ao mesmo tempo, quando vês o filme, se o Bogart a fazer de Rick faz um gesto qualquer, isso fica registado como algo do domínio do documentário. Cada filme, em certo sentido, é um documentário sobre a rodagem do próprio filme. Portanto a verdade está sempre aí. Nesse sentido documental. Só creio nesta verdade. Por isso, estou muito mais do lado da busca de uma beleza formal. E sobre o tema dos actores… Para mim é uma desgraça tão grande que existam estas pessoas no mundo. Era preciso liquidá-los. Vocês aqui tiveram ditadura, não? E ninguém os liquidou… Só mataram políticos e inocentes e nunca ninguém se encarregou dos actores… [risos]
LM – Donde vem essa aversão pelos actores?
AS – Não sei… Talvez seja apenas explicado pela psicanálise, pois no meu caso é algo muito forte. Na minha vida nunca conheci um bom actor, são todos idiotas. É gente muito egocêntrica. Polanski dizia que os actores são as pessoas mais idiotas do mundo. E falava do Travolta como um profundo idiota. E não me estranha que ele diga isso. Se te pagam 12 milhões de dólares para fazer de idiota durante duas semanas não é de estranhar que fiques louco. Acho que isso também me podia acontecer. Mas isto é noutro nível. Não fazem nada estas pessoas. É a única profissão do mundo em que uma pessoa que nunca o fez pode fazê-lo melhor do que alguém que o fez toda a vida. Sobretudo em cinema, no teatro a história é outra. Por isso significa que os actores não fazem nada, tudo é feito pelo realizador.
CN – Na relação com os não-actores, o Bresson, com os seus modelos, trabalhava através da exaustão, fazia-os repetir as falas tantas vezes até que estes se despissem de uma psicologia. Como é que geres esta questão da psicologia mesmo trabalhando com actores não profissionais?
AS – Eu não filmo personagens, nem actores. Eu filmo pessoas. Há um processo de metamorfose que é muito físico. Um actor profissional apodera-se de uma personagem através de um processo intelectual e manipula depois o físico. No meu caso é o inverso. Como eles não sabem do filme, como corre, eles vão fisicamente aproximando-se da personagem, com as roupas, com as palavras que lhes digo para usar, com a passagem do tempo… A metamorfose física é o que vem primeiro, essa captação é física. Não há nenhum trabalho intelectual. Mas depois, quando vês o filme, miraculosamente parece que assistimos a uma transformação e empossamento espiritual. E tens a sensação de que, apesar de serem pessoas que não percebem de cinema, vê-se essa dimensão espiritual, e é a personagem que assimila essa transformação da pessoa, não o inverso. Quando a interiorização do actor é intelectual, esse processo acho-o sempre falso.
LM – Ontem, depois da exibição do Història de la meva mort (História da Minha Morte, 2013), falavas do actor Lluis Serrat e da sua inocência. Ele trabalhou em todos os teus filmes. Mostras-lhe os filmes depois?
AS – Sim, claro, quando se apresentam os filmes em festivais ele muitas vezes vem. É muito inocente. No último filme tem uma personagem mais complexa, mas a inocência deste processo de interpretação está intacta, é igual. É algo mágico. Não o consigo explicar. Ou melhor explico apenas porque ele é muito bom. Penso que se fizer mais quatro, cinco filmes vai acabar por ser dos melhores da história do cinema. Por exemplo, dentro de cinquenta anos ninguém se vai lembrar de La vie d’Adèle: chapitre 1 & 2 (A Vida de Adèle: Capítulos 1 & 2, 2013). Ou o Entre les murs (A Turma, 2008) [de Laurent Cantet]. Alguém se lembra desse filme? E só passaram cinco anos. Dentro de cinquenta anos toda a gente ainda vai querer ver Lluis Serrat no grande ecrã, ver como age, o seu novo filme, como fez a sua nova personagem. Pelo contrário, ninguém vai querer ver La vie d’Adèle nunca mais. Trata-se de uma questão de pureza e ela é uma coisa insaciável, inesgotável, interminável. Não tem fundo porque nunca se pode ser o máximo da pureza. Há sempre um mistério ali.
CN – Parece haver uma ideia comum nos teus vários filmes que é a noção de travessia. O que é que te fascina nessa ideia?
AS – Travessia sim, mas quase sempre a pé. Acho que porque há um lado material, físico. Vem dessa fisicalidade de que falava a propósito dos actores. Neste último filme há mais interiores mas tento tratá-los de forma igual, quase como exteriores. Com pequenos elementos mas muito importantes,, como comer, ler, etc. Como se o interior estivesse ele bastante vivo e a interacção com o que os rodeia fosse muito física, corporal. Mais do que travessia acho que há nos meus filmes um movimento das pessoas com a natureza e a transformação numa personagem nova. Desta interacção saem coisas interessantes. Eu gosto de filmar com um fundo histórico porque é sempre mais divertido, os actores usam roupas antigas… Assim como pô-los no meio da natureza, onde faz muito calor ou muito frio. É sempre mais divertido. Muito mais do que pô-los aqui num bar, sentados com uma cerveja. Nesse caso também faremos algo mas é diferente. O contacto com o décor, que neste caso seria a natureza, tem de ter uma dramaturgia, alguma graça. Tem de haver um drama no contacto físico com o que rodeia os actores. E voltando à questão dos actores profissionais, essa gente não tem contacto físico com o que os rodeia, são sempre “eu”, “eu”, “eu”… O que tenho “eu” que dizer? O que tenho “eu” que fazer? Tão cansativo… O que importa isso? Não conseguem conectar-se de forma natural com o que os rodeia. E há outra coisa que nunca se fala e que parece um tema esquecido. Vou dizê-lo aqui. Há uma ética no acto de utilizar actores não-profissionais. Imagina que eu digo agora que o Franco era muito boa pessoa e vem este realizador de La vie d’Adèle [Abdellatif Kechiche] e diz “não, não, eu sou de esquerda” e as pessoas começam a dizer que o Albert Serra é um idiota. Porque eu digo bem do Franco e o outro é de esquerda… Sim, mas o Albert utiliza actores não-profissionais! E o outro utiliza umas gajas milionárias, onde tudo tem a ver com o dinheiro e com as empresas mais corruptas. E isso resulta que eticamente ele seria melhor que eu… Quer dizer, eu também sou de esquerda, note-se, não sou franquista. [risos] Antes havia uma posição mais firme, como por exemplo com Pasolini ou Vittorio De Sica. Uma aproximação à realidade muito mais honesta, com todos os seus elementos. E buscavam uma beleza também onde antes não se tinha buscado. Encontrar actores e beleza nas pessoas da rua. Isto contém uma ética. E agora quem faz isto? Antes havia muito isto, mas e agora? Quem? Straub, o único? Pedro Costa? Mas fez esse filme com a Jeanne Balibar… Por exemplo, o Lisandro Alonso vai fazer um filme com o Viggo Mortensen… Quem é que sobra eticamente sério, incorruptível? Ninguém fala disto, porque é tido como não importante, que o que conta é o resultado… Mas eu penso que se trata de um compromisso ético que nada tem a ver com o resultado final do filme. No caso de La vie d’Adèle por acaso o resultado é mau… (e podia ser um bom filme mesmo sendo rodado com actores profissionais). Mas sobre esse lado ético, numa entrevista de 40 minutos, se falas um minuto de ética não está mal. Eu sou incorruptível. A mim dá-me igual quem venha… E sabem porque usam eles actores profissionais? Sobretudo os que trabalharam antes com actores não-profissionais. A maioria pelo menos… Querem que vos diga? Por dinheiro. Para financiar o filme. Em Cannes filmes com actores não profissionais não lhes interessa tanto, são mais difíceis de vender. É cada vez mais difícil financiar filmes com actores não-profissionais. Toda a autenticidade e ética desta gente perdeu-se por motivos… muito obscuros.
CN – O que dizes faz-me lembrar uma expressão que li numa entrevista tua que achei muito curiosa. Tu disseste que os teus filmes eram “unfuckable”. Que eram ou completamente bons ou totalmente maus, lixo ou obras-primas. Achas que no caso da recepção dos espectadores aos teus filmes é mais uma questão de gostar ou não gostar ou antes uma questão de acreditar ou não neles?
AS – Acho que é uma questão de julgamento estético. Agrada-me que as pessoas o julguem como bons ou maus. Eu faço os filmes para me divertir, com um toque subversivo, etc. Mas ao mesmo tempo tem de ser bom. Se fosse só diversão não precisava de fazer filmes. Quanto à expressão “unfuckable” havia um ponto interessante. Os meus filmes têm algo de performativo. Muitas coisas que surgem no ecrã são vistas pela primeira vez, nunca foram pensadas para ser assim na rodagem. A composição não estava pensada, etc. Como é muito performance, não podes compará-la com muitas coisas e é difícil de julgar. Não podes equiparar o que vês com um hipotético argumento, com uma ideia de rodagem ou intenção que eu pudesse ter. É difícil imaginar a minha intenção, como era o argumento, ou a rodagem… Em certos filmes tu consegues antever intenções, se podia ser melhor ou pior. Assim, de um ponto de vista de um julgamento é mais fácil descamar o filme, analisá-lo, porque se pode comparar com um ideal e ver nessas discrepâncias possíveis erros. Aqui é muito difícil imaginar um hipotético e comparar com o que quer que seja. Mas, ao mesmo tempo, acho que é interessante que se tente analisar e aprofundar o que os filmes são. A minha expressão era um exagero, mas era nesse sentido de faltarem pontos de comparação. Com uma performance ficamos com o todo, é uma vivência e às vezes é mais importante a experiência que tudo o resto.
LM – Disseste também que os teus filmes não têm nada a ver com as preocupações de hoje em dia. É esse o desafio do teu cinema, tornar-se absolutamente não contemporâneo?
AS – Pretensiosamente quero que os meus filmes sejam um pouco não-burgueses. Sem conteúdo burguês. Já o temos demasiado na vida e nas novelas… Era um objectivo meu. Eu formei-me mais na relação com a música, vanguardas e nelas havia também essa aspiração de fazer cinema não-burguês. Não necessariamente com um conteúdo político reivindicativo como La vie d’Adèle, com as lésbicas e não sei quê… Para quem é que se faz este filme? Que problema havia com as lésbicas? Um amigo disse que tinha estado com uma amiga lésbica que tinha gostado muito do filme, que se tinha identificado e disse: “assim sabeis o que fazemos”. Porque foi o primeiro filme a mostrar o sexo lésbico desta forma. “Assim sabeis como somos, o que fazemos”, disse ela. Eu disse-lhe: “A mim não me surpreendeu nada, não há lá nada que eu não tivesse imaginado antes”. Que cena sexual viram que nunca tivessem imaginado antes? Viste alguma? Eu não… Eu já as tinha na cabeça. Não me ensinou nada novo… Por isso pergunto, para quem faz este filme? Para as pessoas que já o sabem? Uma coisa burguesa… Uma pequena reivindicação. Mas alguém que não tivesse imaginado já isto? Quem é esse idiota? Não quero criticar tanto, mas procuro imagens que nos façam sonhar um pouco, que não procurem a identificação. A diferença entre o cinema e outras artes é que as pessoas vão reconhecer coisas. Numa exposição de arte as pessoas querem ser surpreendidas, e mesmo no teatro queremos comover-nos. No cinema as pessoas encontram prazer na identificação ou reconhecimento. Se numa exposição de pintura vês coisas que reconheces não te vai interessar. Aborreces-te. Queres ver coisas novas. No cinema é o contrário, se te mostram coisas novas as pessoas aborrecem-se. Qualquer espectador.
CN – Os espectadores ficam também inquietos quando lhes mostram alguma coisa que não compreendem, que não estão à espera.
AS – Exacto. Este filme não é como os anteriores. Nos outros havia uma coisa mais atmosférica, mais conceptual. Aqui sentem-se coisas, impulsos diferentes que não se conseguem explicar. Podes processar o que sentes mas talvez não chegues a entendê-lo.
CN – E há uma necessidade de fazer um cinema contra o espectador?
AS – Sim, é como uma espécie de vazio. O espectador sente coisas mas fica como que estéril, pois não as consegue interpretar, aplicar…Não consegue fazer a união entre o que sentiu e o que pensou. Em França, por exemplo, os espectadores saem muito frios. Estupefactos, mas frios. Sentiram algo mas não podem assimilar… Parece que o filme está mal feito.
LM – Sobre a questão da cinefilia, consideras-te hoje mais cinéfilo do que antes, ou não?
AS – Hoje já quase não vejo filmes. Antes via muitos, era bastante cinéfilo. Vi muitos mas nunca me influenciaram. Havia esse background mas as pessoas que me influenciavam mais eram as pessoas que não podem criar influência. Como o Buñuel, Dali, Carmelo Bene, Straub. Sobre as influências é complicado. Quem se pode dizer que Buñuel influenciou? Ninguém. Bom, talvez Antonioni. E quem é que o influenciou, ao Buñuel? Ninguém também… Eu sempre aspirei a que os meus filmes também fossem um pouco assim. Não copiar de ninguém nem que ninguém os possa copiar. Mundos únicos, filmes únicos, não se parecerem com nada. Quando começo um filme tento esquecer todas as influências, toda a cinefilia… E também, como espectador, interessa-me menos o cinema hoje. É tudo mais aborrecido, também porque perdi uma certa ilusão sobre o colectivo, a projecção… O cinema já não é assim tão importante para o nosso imaginário. Mas gosto muito de ler sobre cinema, tento estar a par vendo coisas nos festivais. Por exemplo, estou muito curioso sobre L’Inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013), gostava de o ver. Mas em geral não tenho tanto interesse. Eu dediquei-me ao cinema mas queria inicialmente ser escritor. Mas percebi que era muito duro, muito solitário. E, além disso, em Espanha havia muito bons escritores. Só que em relação ao cinema… É muito mais divertido para quem como eu queria como mudar de vida. E ainda para mais todos os cineastas em Espanha são bastante maus. E era fácil fazer algo bom. E demonstrei que tinha razão. Fi-lo sozinho, com câmaras digitais, com amigos e fiz o melhor dos filmes a partir da “merda”, dos restos. E fui o melhor cineasta de Espanha. E de forma fácil e rápida. Acho que é mesmo uma vergonha para os outros espanhóis que se dedicam ao cinema. Eu, com as piores câmaras, com os “piores” actores, sem nunca ter estudado cinema e em dois ou três anos, modéstia à parte, sou o cineasta espanhol mais importante. O mais conhecido no mundo, o mais respeitado. Não há mais ninguém. Quer dizer, há outros mas são todos muito maus. Aposto que isto aqui em Portugal não seria tão fácil de fazer.
LM – Mas tiveste a colaboração do Adolfo Arrieta. Revês-te na obra dele?
AS – Sim, gosto. Respeito-o muito mas pertence ao passado. Quando o conheci só tinha visto um filme seu. Nos créditos do Història de la meva mort podemos ler “com a colaboração de Adolfo Arrieta”. Isto porque na montagem final acabaram por não surgir as cenas que filmei com ele. Não porque não fossem boas, mas apenas porque era uma personagem nova, tornava tudo mais caótico e abstracto e preferi deixá-las de fora.
CN – Há uma frase de que gosto muito no Honor de caballería (Honra de Cavalaria, 2006) em que o D. Quixote diz ao Sancho que ele está sempre a dormir e que nem consegue ver os caracóis. Achas que nós andamos todos a dormir?
AS – Pode ser. Mas o cinema é isso. A sua função é ensinar-nos umas belezas ocultas que não podemos ver na nossa vida quotidiana. Ter uma percepção do espaço e do tempo muito mais intensa do que a que temos na nossa vida quotidiana. No dia-a-dia temos uma percepção superficial e o cinema pode intensificá-la e ajudar-nos, nesse sentido, a acordar. Além disso, o cinema é muito mais orgânico do que a pintura, por exemplo, ou a literatura, que é mais abstracta. O cinema é muito físico. E a beleza do cinema é que pode descobrir estas belezas e fá-lo para as classes populares.