O que escrever, em finais de 2013, sobre um dos filmes mais conhecidos e reconhecidos da história do cinema, de que tanta gente sabe diálogos inteiros de cor, de que citações erradas dos mesmos se tornaram mais famosas do que as correctas (“play it again, Sam” deu origem a uma peça de e a um filme “de” Woody Allen)? O que escrever, setenta e um anos depois da estreia desta obra paradigmática da época dourada de Hollywood, um quase sinónimo de clássico? Aliás, de que adianta escrever, quando há homenagens tão bonitas como esta canção dos Roxy Music e paródias tão deliciosas como este desenho animado dos Looney Tunes? Mas pagam-me para isso, por isso vai ter de ser. Espera aí…
Em boa verdade, Casablanca (1942) ainda tem muito por onde pegar. Para começar, o próprio estatuto de clássico. Logo nos primeiros minutos da longa saga The Story of Film: An Odyssey, Mark Cousins usa o filme como exemplo do que é considerado incorrectamente um clássico e é antes uma obra Romântica, contrapondo-o com Nagaya shinshiroku (The Record of a Tenement Gentleman, 1947), que seria verdadeiramente Clássico. Mesmo que tal resulte de uma trapalhada de definições, uma vez que o norte-irlandês confunde o estilo Clássico com o significado de clássico como obra-prima, põe o cinéfilo a pensar por que razão Casablanca raramente encima listas de melhores de sempre (ou anda sequer por lá) feitas por outros cinéfilos (estou a pensar mais em listas de críticos e realizadores, mas avante, que para a frente é o caminho). Terá a ver com essa condição de paradigma do cinema clássico norte-americano (lá vou eu ainda confundir mais a coisa) – baseado num argumento muito bem escrito (uma fala memorável por minuto), realizado em estúdio por um tarefeiro (Curtiz nunca atingiu a condição de Autor), com actores contratados aos outros Estúdios -, sem conseguir (ou tentar) ultrapassá-la, ao contrário de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), mais ou menos da mesma altura?
Indo mais longe, Casablanca será sequer um “grande filme”? Não fica claramente a perder para To Have and Have Not (Ter ou Não Ter, 1944), realizado pelo Autor Howard Hawks, com que partilha o falso cínico Humphrey Bogart (se num diz “I stick my neck out for no one”, no outro responde “minding my own business” a quem lhe pergunta por simpatias políticas), o estiolar da “neutralidade” americana na Segunda Grande Guerra, uma grande história de amor (que, no filme de Hawks, extravasou para a “vida real”)? Falácias à parte – uma resposta afirmativa à segunda questão não implica necessariamente uma resposta afirmativa à primeira -, o crítico dá-se conta da necessidade de defender o filme. Dando de caras, de novo, com a dificuldade em escrever sobre ele, aborda alguns pontos que lhe parecem interessantes.
Como a cidade marroquina reconstruída (imaginada) num estúdio norte-americano, como a própria Hollywood dessa época, Casablanca é um filme de refugiados e, como tal, agrega o que de melhor havia em todo o mundo. Limito-me aos intérpretes: Peter Lorre e Conrad Veidt, dois dos actores alemães mais emblemáticos nas décadas anteriores; Marcel Dalio, o francês que protagonizara há uns meros três anos o melhor filme de todos os tempos, num papel secundaríssimo; Ingrid Bergman, a lindíssima e altíssima sueca de Hitchcock e Rossellini, e Claude Rains, o baixíssimo e magnífico inglês, o grande secundário da Warner Bros. (ao lado de Errol Flynn, Bogart e de quem o quisesse apanhar); o também inglês Sydney Greenstreet, o mais melífluo dos malvados, que, com Lorre, foi importado directamente de The Maltese Falcon (A Relíquia Macabra, 1941) para ajudar Bogart a lembrar-se dos negrumes do filme de gangsters que começava a tornar-se noir: o nova-iorquino Humphrey Bogart, que vinha da outra costa e se embebedava para esquecer-se de que estava na Califórnia (estou a inventar); Paul Henreid, oriundo da terra dos canastrões (é inequivocamente o ponto fraco do filme, embora na personagem do imaculado, altruísta, compreensivo, corajoso e inteligente membro da Resistência, que sozinho combate o Terceiro Reich, já esteja parte do problema).
Os primeiros trinta minutos de Casablanca, desde que a música arabizante sobre o mapa de África se converte na Marselhesa ao momento em que Rick (re)vê Ilsa pela primeira vez, são alucinantes: as negociatas sussurradas nas ruas e nos cafés; os olhos descaídos de Peter Lorre; o ladrãozeco que adverte as suas vítimas dos perigos dos carteiristas; as vidas perdidas no limbo de uma terra de ninguém (nem é nazi nem deixa de o ser) à espera do avião para Lisboa; a guerra como o grande nivelador social – os banqueiros viram empregados de mesa, os aventureiros, proprietários de bares; o plano-sinédoque do cigarro na mão ao rosto de Bogart; a desenvoltura com que este gere o seu estabelecimento, sempre calmo e concentrado, sem paciência para aturar palermas. Custa a acreditar que o argumento foi escrito a não-sei-quantas mãos, tal a solidez da introdução a este “novo mundo”.
Basta a chegada de Ilsa para desequilibrar Rick, que quebra uns quantos princípios numa noite só: bebe de mais, mais do que os clientes (torna-se o seu melhor cliente), senta-se à mesa com eles, embebeda-se, ouve canções que jurou jamais ouvir, tem uma sessão de auto-comiseração, perde-se na rememoração de um idílio parisiense, é amargo com uma mulher, em vez de lhe mostrar uma cruel indiferença como de costume. É a maior dor de corno da história do cinema. Até o próprio filme fica fora dos eixos, inseguro, sem saber por onde ir, que decisão tomar. Resta ainda qualquer coisa da primeira meia hora (“What watch? Ten watch. Such much?”), mas, a partir daí, Casablanca está nublado pela memória de outro filme-cidade de que o espectador apenas vê uma cenas e que nunca existiu: Paris (1940). O espectador como que fica de fora, fazendo jus à sua condição, sem poder reentrar na história. Tudo balança e parece que vai partir.
Lá tem o herói de salvar o dia e o filme: Humphrey Bogart, esse grande sentimentalão, pensa por ele, por Ilsa e por nós todos. Com o rosto fechado, o sorriso sarcástico e o cigarro na mão (e uns esgares a denunciá-lo), larga o desprezo e tudo o resto que lhe é querido e entrega-se definitivamente ao mundo. O supremo sacrifício.