Custar-nos-ia não começar este texto pelo próprio começo (belíssimo) de Cronaca di un amore (Escândalo de Amor, 1950), a primeira longa de ficção do Mestre Michelangelo Antonioni (que, coisa rara, faz alguns cameos no filme). Depois de uma série de planos sobre a cidade de Milão, várias fotografias de uma (lindíssima) mulher vão desfilando aos olhos de Carloni (o detective particular interpretado por Gino Rossi) e aos nossos, mulher, essa, que será alvo da investigação deste detective, metáfora para a verdadeira investigação, esta de carácter psicológico, sobre uma mulher, que, aqui como noutros filmes, é o móbil de Antonioni (se, como se diz, os filmes de um realizador são sempre variações do mesmo filme, também poderemos dizer que todas as mulheres dos filmes de Antonioni são uma variação da protagonista de Cronaca). É também pelo contraponto que essas fotografias antigas (onde se vê uma mulher fresca, sorridente, feliz) fazem com a vida presente de quem nelas figura (uma mulher entediada, infeliz, amargurada) que perceberemos como (o peso do) Passado e Presente embaterão violentamente em Cronaca.
É Joy (de “alegria”, coisa irónica, porque rarefeita neste filme), a modelo e amante do vendedor de carros amigo de Guido, que, numa frase, define o mundo movediço e arrebatador sobre o qual se move Cronaca. Citando o melancólico poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827) a partir de algo que não logramos perceber exactamente o que é (chega mesmo a parecer um desses pacotinhos de açúcar com ditos bonitos de algibeira), Joy exclama, meio sonhadora, meio desolada: “Tudo é amor… o universo não é nada senão amor” (ao que o amante, por ela interpelado sobre quem é Foscolo, responde, cretinamente, que é simplesmente um tipo sem nada na cabeça). Desta citazione interessa-nos retirar, sobretudo, a ideia de como, em Cronaca, tudo e todos vivem sob o espectro do amor e das suas dramáticas implicações, sobretudo o autêntico “triângulo das Bermudas” formado por Enrico Fontana (Ferdinando Sarmi), um rico industrial de Milão casado com Paola-antes-Molon-agora-Fontana-também (fatalíssima Lucia Bosé, a tal das fotografias), uma “alpinista social” de origens humildes que mantém um relacionamento amoroso oculto com o seu amor de juventude, Guido (Massimo Girotti, com cartas dadas em filmes de outros monstros do cinema italiano, casos de Rossellini ou Visconti).
E é logo a partir desta preponderância absolutamente nuclear do amor como “tema” que chegamos à “questão neo-realista”: não é novidade para ninguém que Antonioni, o “maverick” do neo-realismo (como já lhe chamaram), nunca embarcou em cartilhas ou em cinematografias “de programa” [por essa razão é que Zabriskie Point (1970), um filme sobre os ares de 60, poderá ser visto, num certo sentido, como um filme “conservador”, sem que isso o diminua de forma alguma], o que lhe granjeou detractores em igual proporção à autonomia e ao aprofundamento que foi fazendo da sua (superior) arte até ao último filme, sem prejuízo de pontuais incursões no género neo-realista, de que o documentário Gente del Po (1947) e outros filmes da década de 50 serão bons, mas sempre matizados e idiossincráticos, exemplos. Compreende-se, por isso, que, nos anos 50, década por excelência, de par com a de 40, do neo-realismo italiano, um filme como Cronaca, indiciador claro – para nosso deleite – da psicologia “ennuiniana” característica de toda a obra de Antonioni, não caísse nada bem no estômago da crítica (neo-realista e esquerdista, et pour cause) e mesmo do meio autoral italiano. Para não perdermos muito mais tempo nisto, assinale-se apenas que foi o próprio Antonioni [um acérrimo defensor de Ossessione (Obsessão, 1943), outro “desvio” à cartilha neorealista parido pelo aristocrata Visconti] quem, em resposta a estas questões, afirmou que, depois de Ladri di biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948), de Vittorio De Sica, depois do “problema da bicicleta”, o que lhe interessava era “olhar para dentro do homem a quem roubaram a bicicleta e ver quais são os seus pensamentos”.
É verdade que Cronaca apresenta algumas notas neo-realistas, não no sentido purista (de militância, de denúncia), mas no da persistência dos jogos de contrastes que “localizam” (ambientam) as relações (amorosas, sociais). Ou seja, o que eventualmente de neo-realista o filme tem – e mesmo nisto temos dúvidas de que esse carimbo seja o mais adequado – não está tanto, por exemplo, nos “temas” ou no protagonismo dado pela câmara às personagens (o operariado, os esquecidos, etc.), quanto na cronaca (precisamente) das relações entre pessoas situadas em pólos socialmente opostos: o amor entre a Paola rica e o Guido pobre; o Guido pobre que tenta vender um Maserati ao marido de Paola; a relação fria entre a amiga de Paola, mulher pobre e oriunda da Itália rural que por lá se manteve (numa casa a gelar de frio), e Paola, a escaladora que percebeu para onde (Milão)/ por onde (casamento) se tinha que mexer e hoje arrebata vestidos por 300.000 liras. O que de mais “denunciante” Cronaca eventualmente comporta é uma certa visão – inocente, diga-se – do amor burguês (Enrico/Paola) como falso, artificial, por oposição ao amor “humilde” e “genuíno” de Paola/Guido. De resto, o retrato da burguesia (o seu tédio, vazio, insatisfação, enfim, temas antonionianos clássicos) não constitui fundamento bastante para se poder taxar o filme de “neo-realista” – assim fosse e toda a trilogia da incomunicabilidade [L’Avventura (A Aventura, 1960), La Notte (A Noite, 1961) e L’Eclisse (O Eclipse, 1962)] seria… neo-realista, consideração que o mais elementar bom senso recusa. Aliás, em Cronaca, acontece até que mesmo os mais pobres são já também observados de um ponto de vista eminentemente psicológico (o tal interior do homem a quem roubaram a bicicleta), como acontece quando uma personagem diz, muito fatalista (o Destino é coisa que pesa neste filme, como veremos), que “esperar” é o que todas as pessoas fazem – esperar pela morte, impasse existencialista que não escolhe classes sociais. Ou quando afirma, relativamente ao seu casamento, que, enfim, só Deus sabe por que razão se mantém (a crítica ao casamento enquanto convenção hipócrita está lá, mas não enquanto símbolo estigmatizante de uma classe social em exclusivo, i.é, a burguesia).
Falávamos num “triângulo das Bermudas”. Será, porém, um quarto invisível elemento que, involuntariamente, esticará este triângulo até à forma de um quadrado (ou, se quisermos, trata-se da sucessão de um triângulo do “presente” a um triângulo do “passado”), com essa particularidade de ser um elemento perfeitamente ausente durante todo o filme. Trata-se de Giovanna – à data, a namorada de Guido e melhor amiga de Paola, quando os três ainda viviam no mesmo lugarejo –, cuja morte trágica foi presenciada – e participada, ao menos por omissão (Guido interroga-se expressamente se essa conduta omissiva também pode ser considerada um… crime) – pelos – já então amantes – Paola e Guidos, segredo e culpa que ambos carregam desde então (tentando sempre, em linguagem hitchcockiana, permutá-la para o outro, como o formidável plano-sequência da ponte o ilustra bem). Aliás, a revelação da forma como a morte de Giovanna ocorreu – num acordo tácito entre os amantes em não a evitarem, numa sugestão de que a “telepatia” entre pessoas que se amam funciona não apenas para expressar sentimentos profundos, mas, também, para, por exemplo, “deixar” alguém morrer – é um dos grandes trunfos do storytelling de Cronaca, na medida em que, ao apenas revelar gradualmente como tudo, de facto, aconteceu, vai mantendo a ambiguidade e a confusão, subtraindo ao espectador a possibilidade – cómoda – de emitir imediatamente um juízo moral sobre os dois amantes. Não deixa de ser curioso que a morte de Giovanna tenha ocorrido num elevador (elevador que se repete mais à frente, assim se fazendo a ponte entre o crime do passado e aquele que os amantes pretendem agora levar a cabo, como perspicazmente escreveu Manuel S. Fonseca n’As Folhas da Cinemateca), objecto dotado de uma simbologia infinita num filme em que todos querem subir na vida, mesmo que isso signifique casar com alguém que lhe dá vómitos (como diz Paola a certa altura).
Mas como o destino dos segredos é serem revelados (como a certa altura se ouve no filme – aliás, não serão os segredos partilhados uma contradição nos termos?), será a partir do momento em que Fontana solicita a Carloni que investigue sobre o passado de Paola que se entreabre uma verdadeira caixa de pandora, de resultados imprevisíveis, obrigando os amantes a reviverem o seu tumultuoso passado (o passado como coisa viscosa sempre pronta a contaminar o presente, como o passé do último filme de Ashgar Farhadi) e a tentarem uma derradeira fuga para a frente. É nesta fuga (o plano de assassínio de Enrico), bem como na morte de Giovanna, que o Amor rima com Crime (assim se expurgando o ideal do amor como coisa pura, limpa, cândida) e, sobretudo, com uma certa ideia de que, nas relações amorosas, at the end of the day, há sempre alguém que precisa de ser posto fora (get rid of), de que há sempre alguém que sai (é) ferido – às vezes… de morte. É nesta dimensão tétrica, acompanhada do tom policial incutido pela investigação levada a cabo pelo detective, que o filme ganha contornos noir e Guido e Paola se transfiguram numa espécie de pré-Bonnie and Clyde, no sentido em que o crime (ali “patrimonial”, aqui passional) alimenta e é essencial para o seu amor, inclusivamente para a possibilidade de estarem fisicamente juntos – foi assim com a morte de Giovanna e também o seria com o marido de Paola, não se desse o caso de o Destino trocar as voltas aos homens (quando Guido se prepara para disparar sobre Enrico, este despista-se mortalmente de carro).
Mas as valências da primeira obra (rectius, da primeira longa de ficção) de Antonioni não se ficam por aqui. Vendo Cronaca é impossível não pensar no que de revelador o filme possui relativamente à obra que Antonioni viria a esculpir (o verbo não é inocente numa filmografia em que a forma do espaço é quase tudo) nos anos seguintes, obra, anote-se, invulgarmente equilibrada para um autor com tantos filmes [o filme mais “ao lado” será Al di là delle nuvole (Para Além das Nuvens, 1995), que, não deixando de ter uns quantos bons apontamentos, foi filmado numa altura em que Antonioni, já debilitadíssimo, pouco dedo tinha nas escolhas). Se o magnífico L’ Avventura (1960) é considerado o marco pioneiro do cinema moderno pela secundarização da narrativa em prol da proeminência da Imagem (se bem que haja um tanto de contraditório nisto – se não é a Imagem que confere uma linguagem autónoma ao Cinema, há-de ser o quê?…), da criação de uma atmosfera e do foco no interior das personagens, Cronaca, realizado dez anos antes, prenuncia já essa modernidade. Com efeito, mau grado a existência de uma linha narrativa clara, pressente-se a primazia de um cinema eminentemente “visual” e a atenção concedida pela câmara ao estado interior das personagens, à sua sensação de alienação e tédio (o famoso ennui antoniano). Vêem-se já, por isso, os planos e a coreografia performática dos actores tipicamente antonionianos [veja-se este exemplo de escola onde a linha dos olhares fragmenta o espaço, como acontecia em To The Wonder (A Essência do Amor, 2012, de Terrence Malick], com a disposição do espaço e a própria fisicalidade dos actores a potenciarem a construção de geometrias e formas que, nos posteriores filmes de Antonioni, viriam a ser complementadas pela relevância conferida à arquitectura do espaço público (as fachadas e avenidas largas que abrem Cronaca, “confirmadas”, por exemplo, em L’Eclisse). Vê-se já, também, o estado psicológico das personagens a contaminar a paisagem e vice-versa, como é disso paradigmática a cena em que Guido e Paola esperam, num carro parado numa estrada a perder de vista, no meio do nada, por Enrico, que vai experimentar o Maserati (embora seja um presente para a mulher, é ele que o experimenta): é a largueza e a nudez do espaço (no caso, rural, tal como na cena da ponte a que já nos referimos) a apequenar os homens a braços com as suas perturbações [com semelhanças, por exemplo, com a grande “estrada” verde do final de La Notte ou a via sacra de Aldo em Il Grido (O Grito, 1957)]; é a cinza desolada do céu a acentuar a angústia dos dois amantes que, sofrega mas desesperadamente, se beijam em segredo. Não resistimos: logo no início do filme, na cena do reencontro, sob um cerrado nevoeiro, de Guido e Paola, como não pensar no nevoeiro de Il Deserto Rosso (O Deserto Vermelho, 1964) ou de Identificazione di una donna (Identificação de Uma Mulher, 1982)?
Escândalo de amor. Parece-nos, por uma vez, que a tradução do original se revelou, se bem que não fiel, muitíssimo justa, sendo um destes casos em que, fazendo mais jus ao filme do que o próprio original, permite entreabrir outras portas interpretativas. É que o escândalo, aqui, é não só o do amor em si mesmo (enquanto coisa “escandalosa”, i.é, absoluta, arrebatadora, catártica), mas, outrossim, das suas concretas reverberações – escândalo, portanto, social (o amor entre ricos e pobres) e moral (à parte o facto de Paola ser casada, avulta, sobretudo, a morte de Giovanna como fantasma punitivo desse amour fou). Numa primeira longa a todos os títulos notável, apenas uma dúvida não se nos desprende do espírito: por que motivo Guido, com Enrico morto (e sem mão criminosa), com esse obstáculo superado, abandona Paola no final e parte novamente à deriva?