Crítico de cinema, historiador, ensaísta, biógrafo de realizadores, David Thomson é sobretudo conhecido pelo pessoalíssimo e mastodôntico A Biographical Dictionary of Film, lançado em 1975 e, entretanto, revisto e aumentado em cinco reedições subsequentes (Thomson está a preparar a sexta). Depois de uma confusão de Davids, João Lameira e Luís Mendonça lá encontraram o email certo (graças à amabilidade de David Thompson, que já deve estar habituado a estas trocas causadas por um simples “p”) e enviaram-lhe algumas perguntas, as quais tiveram as seguintes respostas. A versão original da entrevista (em inglês) pode ser lida aqui.
Escreve sobre cinema como quem fala de um amor não correspondido ou talvez um amor perdido. Tem algum ressentimento em relação ao cinema?
Sim, no sentido em que viver com o cinema (ou viver em salas de cinema) é sentir o enorme peso do desejo ao mesmo tempo que se está habituado a que esse desejo seja inexoravelmente satisfeito – como numa relação ou num casamento. Será que isto cria ressentimento? Bem, às vezes, acompanhado por uma pulsão homicida. Mas a frustração também pode ser uma boa fonte de comédia. Eu reconheço-me na personagem do Fernando Rey no Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto de Desejo, 1977), humilhado a toda a hora e, ainda assim, levado e excitado pela dança. E se a vida se torna uma espécie de tortura com a Bouquet e a Molina, bem, talvez a única solução seja juntar Deneuve, Kidman e a Barbara Stanwyck ao harém. Como já tenho 72 anos, dou-me conta da maneira como desaproveitei a vida, embora isso me deixe mais divertido do que amargurado. Todos temos de cometer erros terríveis. Vem com a descoberta de um meio de expressão sublime ou de uma mulher perfeita – Grace Kelly consegue transformar-se na Thelma Ritter [em Rear Window (Janela Indiscreta, 1954)]. Mas será que Ritter poderia transformar-se na Grace Kelly?
Parece ter uma relação de amor-ódio com alguns realizadores. Mesmo que admire Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) e outros filmes de Orson Welles, Rosebud: The Story of Orson Welles, a sua biografia do realizador americano, é quase um ataque pessoal.
Desde cedo, intuí a estupidez na teoria de autor – de se pensar que algumas pessoas nunca erram. Acredito que o génio mais formidável se pode enganar. Quem faz filmes são pessoas de carne e osso, com dúvidas, e muitas vezes metem a pata na poça. Fico um pouco espantado com essa ideia de que Rosebud é um ataque pessoal ao Orson, embora consiga perceber o que quer dizer se acha que era impossível que ele fizesse algo errado. Suspeito que ele teve uma oportunidade ínfima de acertar – fazendo um espectáculo de si mesmo. Welles é a pessoa mais intrigante e impressionante que tivemos no cinema – embora ele se espraie noutras direcções, muito mais do que outros realizadores. Aceito o seu aviso, de que era um escorpião: sem escrúpulos, cruel, caprichoso, indiferente aos outros, incapaz de relações duradouras, mau marido, péssimo pai, às vezes traidor, um mentiroso e uma fraude. Não consegue ver o seu sorriso e ouvi-lo dizer: “Claro!”? E não são as relações de amor-ódio as mais importantes? Pais, amantes, deuses, políticos, os nossos filhos. Só os cães demonstram uma nobreza infalível.
Mesmo com os seus realizadores preferidos é possível encontrar um certo ressentimento. No seu último livro, The Big Picture: The Story of the Movies, vira-se contra Howard Hawks por este o ter feito acreditar que uma relação entre um homem e uma mulher poderia ser uma troca constante de comentários espirituosos.
Eu apaixonei-me por Hawks durante uma retrospectiva no National Film Theatre em Londres em 1961. Admirei-o por tantas coisas: a raiva, a inteligência que perpassa em tudo o que fez, a admiração pelas mulheres, pela coragem, pelo dever e o medo de falhar. Adorei particularmente a simplicidade clássica do seu estilo. Tenho a certeza isso me fez comportar de uma maneira hawksiana, que era vulgar, ridícula, um estorvo para quem estava comigo. Com o passar do tempo (e isto culmina com The Big Screen e o curso que leccionei sobre Hawks em Stanford em 2012), comecei a ver Hawks sob outra luz (o que também teve a ver com o facto de ter conhecido Slim Hawks). Portanto, vejo-o cada vez mais como um impostor e um mitómano e olho os seus filmes com um crescente cepticismo – como se ele me tivesse ensinado a fumar, a jogar e a ser promíscuo (devo acrescentar que isto se passa na minha cabeça e não na minha vida). Ele ainda é o meu companheiro, embora veja agora que o melhor da sua obra são as comédias. É como um pai inconstante de quem tenho de tomar conta.
Esta capacidade de despertar sentimentos tão fortes em si não contradiz a sua asserção de que o cinema perdeu o poder sobre o espectador? Ou será apenas nos espectadores mais jovens que detecta essa indiferença?
Sim, ainda sou toxicodependente dessa droga. Ainda vejo o Chelsea (na televisão), embora já não tenha vontade de correr atrás da bola. Tenho pena que o cinema já não seja a arte das massas (quando mais não seja pelos meus filhos), mas isso aconteceu e não só aceitei o facto como fico feliz pelos novos caminhos e ponho-me a imaginar – por exemplo, a curta-metragem Three, two (2013) de Sarah-Violet Bliss, vista no último Festival de Telluride, um único plano de um minuto digno de Lubitsch.
Acredita que a diminuição da dimensão da imagem – do grande ecrã para os tablets – e mudança do cinema como experiência colectiva para uma individual, assim como o déficit de atenção são os principais culpados desse desinteresse?
Essa mudança começou a dar-se nos anos 50, com a televisão, ou quando nos demos conta de que a experiência do cinema era afectada pela tecnologia. Perdeu-se muito, mas ganha-se sempre qualquer coisa. Portanto, o nostálgico tem de manter os olhos no futuro.
Ao mesmo tempo que escreve sobre o fim do cinema ainda vive na Califórnia, onde está há mais de trinta anos para estar junto dele.
Há outras razões para se viver na Califórnia – a comunhão com a natureza (o mar, as montanhas, o deserto), a luz e o ar. Passeio o meu cão todos os dias à beira-mar e isso para mim diz tanto como viver ao pé de Hollywood. Mas, repare, vivo em São Francisco, não em Los Angeles. Ainda assim, tem sido bom viver perto do sítio, tem-me permitido estudar a história local e conhecer os veteranos. Também tem sido importante viver perto da indústria e verificar o quanto ela molda o nosso cinema.
De onde vem o fascínio pelo sórdido, pela “história secreta do cinema”, com aquilo que fica para lá do ecrã – as vidas privadas, as histórias dos estúdios?
Há tantos filmes e histórias que nos dizem, olhem, temos um segredo, venham e descubram-no. E eu respondo a isso. Sou um Lubistch satisfeito por saber que a duquesa tem mau hálito – sem ser moralista e sem desaprovar. Preferia dar-lhe struffoli de Esterhazy até a sua boca ficar tão doce que a pudesse beijar. Adoro conhecer a maneira como um Hawks vivia. Fico triste e assustado ao pensar em Welles sentado num pequeno jardim ao lado de um monte de beatas de charutos. Da mesma maneira que adoro especular sobre o que acontece às personagens depois do filme acabar ou o que poderia ter acontecido se o argumento tivesse seguido por outros rumos.
Quando escreve sobre actores e realizadores – vivos ou mortos – dá tanta credibilidade a factos como a boatos, a opiniões sobre a obra como a especulações sobre a sua vida privada. Não será injusto para estes?
Fascinante argumento. Eu vejo os actores como protótipos de celebridades, pessoas cuja “verdadeira” natureza se perde na imensidão de personagens que representam. Eu sinto a injustiça com que olham a minha escuridão e dizem: “Não sou deslumbrante? Não gostas de mim?” Mas depois acrescentam: “Não me toques!” São seres imaginários, sujeitos a outro tipo de indagação; eles ensinaram-nos a perceber que todos representamos a toda a hora. Se algum ficar magoado pelo que escrevi, sou capaz de sentir pena. Mas não acontece muitas vezes. Por exemplo, o radialista americano do programa Fresh Air perguntou à Catherine Deneuve se ela não tinha ficado ofendida pelo que eu tinha escrito no A Biographical Dictionary of Film acerca da sobreposição da “inocência” da sua imagem enquanto jovem actriz ao interesse por uma certa depravação nos papéis que escolheu. O entrevistador queria que ela dissesse qualquer como “Que coisa horrível de se dizer!”. Mas ela concordou com a citação, ficou pensativa. Há um Buñuel em toda a gente.
Vê-se a si mesmo como apenas um crítico? A crítica interessa-lhe de algum modo?
Suponho que sou um crítico, às vezes. Já fui contratado para escrever críticas. Mas considero o modelo limitado. Gosto de encontrar maneiras mais imaginativas de escrever sobre a experiência de ver filmes. Gosto de provocar discordância – quando muitos críticos precisam de pensar que têm razão.
Escreve sobre cinema para exorcizar os fantasmas criados por ele?
Diria que escrevo para me aproximar dos fantasmas mais do que para os exorcizar. Acho que a minha festa favorita é uma séance.
Há diversos dicionários sobre cinema, o Dictionnaire Des Cinéastes de Georges Sadoul, o Dictionnaire du cinéma: les films de Jacques Lourcelles e, claro, o seu. Ao mesmo tempo, ainda existe alguma relutância e resistência em aceitá-los como trabalhos teóricos e críticos importantes, como se fossem objectos intermédios. Encontrou esse preconceito quando lançou o seu Dictionary ou quando lançou as revisões?
O Dictionary incomodou muita gente só por causa do seu formato – e fico feliz ao dizer que o livro ainda é chocante, impossível, é tanto ficção ou um livro de memórias como uma obra de referência. Por outro lado, incontáveis pessoas vieram dizer-me que o Dictionary mudou as suas vidas e as ajudou a perceber a natureza do cinema. O que eu gosto mais do livro é que, ao mesmo tempo que introduz o cinema às pessoas, pretende preservar a qualidade literária. Essa é a condição bipolar da minha existência.
Como é que acabou a fazer algo tão megalómano como escrever um dicionário (auto)biográfico sobre cinema? Para mais, quando sabe que será inevitavelmente um trabalho eternamente inacabado.
Essa megalomania tinha de sair por algum lado – ser bipolar faz parte de mim. Suponho que tenho um amor borgiano pelo inacabado. Até quando puder, continuarei a trabalhar no Dictionary (estou a braços com a sexta edição) mas insisto em fazer outras coisas. Por exemplo, estou agora a escrever livros sobre cabelos e assassínios (Hair and Murder).