Não foi evidente para os primeiros espectadores de Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999) que este passou a ser um dos grandes filmes da história do cinema. Estivemos lá, no primeiro visionamento de imprensa, na sala grande do São Jorge (antes de ser baptizada de sala Manoel de Oliveira), e podemos dar testemunho da relativa indiferença de uns e do moderado entusiasmo de outros, que talvez não pressentissem o quanto o filme iria crescer dentro deles, e crescer também no interior de um imaginário colectivo no que ao cinema diz respeito, para se tornar no melhor de todos os filmes de Tom Cruise, no melhor de todos os filmes de Nicole Kidman, e também no melhor de todos os filmes de Stanley Kubrick.
Filme-testamento (in)voluntário (Kubrick não chegou a assistir à estreia), Eyes Wide Shut é inspirado na novela “Traumnovelle” de Arthur Schnitzler (1862-1931), vindo a assumir a condição do tipo de sonho que não devemos contar nem a nós próprios. Uma longa noite de encontros, de embaraços, de humilhações, de muitas dúvidas que o dia seguinte não garante poder fazer dissipar. É sobretudo um filme sobre os fantasmas da mente masculina, tanto mais largados ao seu equivocado bel-prazer quanto mais se tratar de indivíduos com dinheiro e poder. A festa iniciática que é peça central do filme é disso claro exemplo: quando as máscaras que se usam socialmente deixam de ser metáfora e se materializam no rosto para dar lugar ao semianonimato dos que servem sexo (elas, todas muito belas) e dos que por elas (todas, invariavelmente, modelos de beleza) são servidos.
Somos conduzidos pela personagem do médico William Harford (Tom Cruise) que se introduz a fundo num universo de que antes participara apenas superficialmente. Ele não pertence ali embora conheça várias daquelas pessoas. Deixa-se enredar levado por um ressentimento dirigido à mulher Alice (Nicole Kidman), que lhe confessara ter estado prestes a fugir com outro homem. William sempre vira Alice à luz do seu próprio desejo, e de certa forma aprisionara-a nessa fantasia. Qualquer comportamento que ela pudesse ter nunca se desviaria daquilo que os olhos de William podiam conceber, e que uma vez abertos à dúvida e à desconfiança não mais terão condições de regressar ao estado anterior, quando comodamente fechados (de adormecidos).
À festa orgiástica, a que se acede por meio da senha “Fidelio” (no que a raiz primitiva da palavra será mais significativa que a referência à ópera de Beethoven), poder-se-á opor o baile de Natal no começo do filme, onde é outra a música – versões jazzísticas muito easy listening de temas românticos do cancioneiro americano – mas o tema é já o mesmo, tal como sugerido pela valsa de Strauss (fétiche kubrickiano) que se sobrepõe ao genérico de abertura. 1, 2, 3, … 1, 2, 3, a circularidade da valsa que antecipa o cerco levado a cabo pelo aristocrata húngaro que dança no baile com Alice e profere as palavras abissais: “Don”t you think one of the charms of marriage is that it makes deception a necessity for both parties?”
E depois Eyes Wide Shut é um filme que, de todo este pesadelo que é a mente humana a criar alçapões alheios a partir dos que lhe são próprios, tira um último trunfo da maior lucidez, que corresponde à derradeira palavra que se ouve, saída da boca de Alice: “Fuck”, aquilo que o casal deve tratar de fazer o mais rápido possível para que o que aconteceu possa ficar arrumado no passado. Esse mistério maior que é o da intimidade entre dois corpos, que só raramente tem correspondência a um nível intelectual ou aos próprios sentimentos verbalizados, precisa da segurança do sexo que actualiza a ilusão da posse mais determinante para o homem, mas igualmente importante para grande parte das mulheres. Kubrick deixou-nos com um conselho muito sábio: o de canalizarmos as nossas energias para o sexo em vez de as desperdiçarmos em discussões que podendo não ser fúteis, serão inúteis de certeza.