Há algo de terrível no cinema dos manos Coen, um gosto tão abjecto como divertido em fazer os seus personagens sofrerem os maiores horrores. Não é, pois, por acaso que Adam Cook considera Michael Haneke como o vértice anguloso no triângulo formado pelos três cineastas mais cínicos da berra (e Von Trier seria o baricentro evidentemente). No entanto, é curioso observar que até os mais empedernidos, como o próprio Cook ou J. Hoberman, não conseguem deixar de encontrar neste último título dos realizadores de The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) um je ne sais quoi de candura ou mesmo – atrevo-me – sinceridade.
O que traz a este Inside Llewyn Davis (A Propósito de Llweyn Davis, 2013) essa mudança de tom (ou o seu atenuar) é uma série de mudanças naquilo que é o trabalho do duo – mudança essa que lhes está no sangue, veja-se a forma como de filme para filme experimentam géneros diferentes permitindo-se preservar um filão profundamente identificável a que se pode chamar, por falta de melhor termo, autorismo.
A mudança fundamental é, cá está, o género. O filme com músicas – e não nos confundamos com os filmes musicais – resultam quase sempre nas mãos de realizadores com alguma mestria e resultam com toda a mestria nas mãos de grandes realizadores. The Man I Love (1947) é talvez o mais belo filme de Raoul Walsh e decorre nos meios dos clubes de jazz e dos seus músicos e cantantes [e também podíamos falar do meu adorado The Revolt of Mamie Stover (1956)]; Sweet and Lowdown (1999) é dos filmes mais encantadores de Woody Allen (e dos mais esquecidos); Nashville (1975) é o epíteto do cinema de Altman – e porque não do cinema simplesmente – e podíamos continuar a escrever uma lista de filmes onde a diegese (até me doí escrever uma palavra destas) das músicas fica à porta. Onde a música vale apenas pelo seu poder emocional, pela forma como fragiliza os actores e os põe a nu frente à câmara e portanto também nus à nossa frente. Nesse gesto de oferenda que só a música consegue está o grande trufo de Inside Llewyn Davis – e talvez os irmãos tenham visto Carey Mulligan em Shame (2012) e se tenham apercebido dessa enorme actriz que encontra na música uma solidão tocante (e aqui, ainda que subaproveitada, repete a proeza).
Outro aspecto que salpica o filme dessa sinceridade incomum no conjunto das obras da parelha é o seu trabalho. A história que se conta adapta, muito livremente, as memórias (publicadas recentemente) de Dave Van Ronk – figura um tanto ou quanto esquecida e pai artístico de Dylan (figura sempre pressentida e só audível já no final do filme) – de onde se retiraram algumas músicas, como seja aquela que abre o filme Hang Me, Oh Hang Me, e até a capa do seu álbum Inside Dave Von Ronk. Mas além de Ronk, o que surpreende é como o registo de época é aqui levado a um rigor de mimetismo que reconstitui figuras já esquecidas da música folk americana no início dos anos 60 – de onde se destacam um Tom Paxton que aqui se chama Troy Nelson (Stark Sands) ou Jim Nesbitt que aqui é Jim Berkey (Justin Timberlake). De modo semelhante àquilo que Allen fez com Midnight in Paris (Meia-Noite em Paris, 2011) joga-se neste filme uma espécie de Trivial Pursuit cinematográfico onde os realizadores nos apresentam figuras da cultura popular e o divertimento (e graça) encontra-se em tentar descobrir, antes que se torne demasiado óbvio, de quem se trata. E tal como os cartoonescos Man Ray e Buñuel de Allen, aqui as figuras secundárias são também, quase sempre, pouco mais que bonecos divertidos (e tipicamente Coen – olhe-se o saxofonista voodoo heroinómano de John Goodman).
Outro aspecto que torna este filme mais tocante que qualquer um dos outros filmes dos realizadores é o seu protagonista, Oscar Isacc, talvez pela forma como se atira de cabeça a cada música que interpreta – e o título original é premonitório nesse aspecto -, de facto as coisas vêem de dentro de Llweyn e fazem-no com essa candura inesperada que a câmara nunca perturba (as cenas musicais são quase sempre filmadas em simples travelings à frente e quase sempre preservando a duração das interpretações dos actores-cantores). O filme enche-se pois com esta figura dramática que seca o cinismo natural do manos e nos faz olhar sem lamechices para esse peso insuportável da tralha que acumulamos ao longo da vida (a certa altura a sua personagem implora a um intercomunicador que o deixam poisar as suas coisas que já está farto de as carregar). E é aqui que se encontra o cerne do filme, no facto de retratar (ainda que com alguma maldade) essa maleita universal de termos que viver com as merdas que vamos juntando, com essa tralha que já foi a coisa mais valiosa do mundo e que agora só arrastamos por receio de nos esquecermos do que ela significou.
(E claro, toda a gente se derrete com gatinhos – e ainda mais em planos subjectivos – e com a fotografia xaroposa de Bruno Delbonnel, director de fotografia de Jean-Pierre Jeunet e do último Sokurov).