La double vie de Véronique (A Dupla Vida de Veronique, 1991) parece um estudo, ou um daqueles esboços que vemos em museus sobre versões anteriores da mesma obra. Como que um ensaio, é um preâmbulo ao que Kieslowski alcançaria nos seus filmes seguintes, na trilogia Trois couleurs: Bleu (Azul, 1993), Blanc (Branco, 1994) e Rouge (Vermelho, 1994). Longe do cinema imaculado dessa trilogia, mas muito próximo dos jogos de metáforas e símbolos desses filmes, deixa antever muitos dos elementos que Kieslowski utilizaria mais tarde, ao mesmo tempo que sinaliza um vislumbre de um cinema de emoções.
O filme, que começa com um plano invertido de um céu nocturno, em que as luzes longínquas e desfocadas da cidade substituem-se às estrelas, evoca desde logo a noção de um universo paralelo. La double vie de Véronique conta a história de duas personagens, que poderiam ser a mesma, interpretadas aqui pela mesma actriz, Irène Jacob: Véronique é francesa, e Wéronika é polaca. Será através dos pontos de contacto entre a vida de cada uma, tal como as diferenças mais e menos subtis, que Kieslowski avançará a narrativa. Se a personagem polaca, que marca a primeira parte do filme, é mais emotiva e ingénua, cede às tentações e age sobre os impulsos, ou seja, é a versão dionisíaca, a personagem francesa, que aparece na segunda parte do filme, é mais racional, contemplativa e cuidadosa, como uma versão apolínea.
As diferenças que formam a base das escolhas diferentes destas duas personagens ao longo do filme são sublinhadas por Kieslowski, para justificar os seus diferentes destinos. Mas ao mesmo tempo, Kieslowski é suficientemente enigmático, através dos seus jogos de sugestões e simbolismos, para nunca ficar demasiadamente claro se se trata realmente de duas vidas paralelas, ou de vidas alternativas da mesma personagem, duas diferentes possibilidades de existência. Aliás, é possível até interpretar a segunda parte do filme como uma resposta à primeira, e ver nas acções da segunda versão como que uma segunda vida, um reajustamento depois de conhecer o que acontece à primeira versão.
O encanto do filme, essa falta de respostas, é ao mesmo tempo o seu ponto fraco, pela ambiguidade que exige do espectador uma interpretação subjectiva. Kieslowski procura transcender as limitações de uma narrativa linear, recorrendo a uma sucessão de pistas abstractas, não para chegar a uma conclusão lógica, mas antes a um mapa emocional – só que acaba sempre por voltar à necessidade de uma narrativa base. Essas pistas, gestos e sons, objectos e imagens, permitem no entanto um prenúncio de uma ideia de filme-poema, sensorial.
O filme apoia-se fortemente em dois elementos, que surgem também na trilogia posterior com grande importância. A música e, mais especificamente, as diferentes formas que a música pode assumir dentro de um filme são aqui claramente exemplificadas: quer como pano de fundo em várias cenas, quer com o tema central que surge repetido ao longo do filme, quer como som único que segura a cena, quer mesmo como um factor decisivo na história das duas personagens, a música domina a encenação. O outro elemento é a presença de Irène Jacob e a sua dupla interpretação, que coloca a actriz como elemento central da criação artística.
Sobre o som, a música e a importância da actriz, há uma sequência que exemplifica com claridade o contributo de cada um. Véronique, a personagem francesa, recebe um envelope com uma cassete de uma gravação enviada por um desconhecido. Primeiro vemos Véronique enquanto ouve a gravação, uma sequência de sons enigmáticos e captados por alguém na rua, enquanto esta deitada na cama imagina as suas possibilidades e significados. Depois, assistimos a Véronique na rua, a perseguir as pistas deixadas pela gravação, enquanto ouvimos outra vez os sons agora associados a imagens, até ela chegar ao tal desconhecido. A relação de simbiose do realizador com o espectador – por depender do significado que este atribui aos símbolos – é aqui expandida à relação de simbiose do realizador para com a sua actriz, por depender das suas expressões faciais para aludir a sentimentos.
Há um plano vertiginoso de 360 graus, sensivelmente a meio do filme, em que a câmara dança à volta de Wéronika, porque esta acaba de ver Véronique ao longe, e este encontro de poucos segundos vai abalar o seu mundo. Da mesma forma, La double vie de Véronique dança à volta da história de uma e de outra, e Kieslowski, através de símbolos e diferentes sentimentos, apela a que na nossa interpretação do filme, acreditemos que estamos próximos da nossa própria realidade – esta é a ilusão do filme, a ilusão de Kieslowski.