Quando vi Le passé (O Passado, 2013), tinha-me ficado na retina (como não?) o tal plano do vidro traseiro do carro com Ahmad (o ex-marido) e Marie (a ex-esposa) a olharem para trás para tentar descortinar em que raio tinham acabado de embater. Se olhar para trás é olhar para o passado, e é isso que vai acontecer a partir daí, o pára-brisas que varre o título inicial prolonga o simbolismo ao nível da motricidade. O carro avança ou recua (é o presente) e há uma linha que separa… (não, não é isso), dizia, há uma linha horizontal que vai acompanhado o movimento em profundidade. Esse movimento uniforme, cadente das varetas é o que procede à limpeza constante e que vai removendo os detritos (é o passado) que o constante avanço, o viver constante do presente, deixa. Na verdade, essa limpeza (física, emocional) é o que permite o carro avançar. É o que permite o ser humano viver. Agora, hoje.
Nesta tarefa de remoção, Ahmad vem de Teerão a Paris para assinar os papéis de divórcio (embora seja mais uma celebração, com uma espécie de “eu pronuncio-vos ex-marido e ex-mulher”) e instala-se na casa de Marie, onde esta vive com os seus filhos de um casamento anterior e ainda Samir (o seu novo companheiro) e o seu filho, o pequeno Fouad. Se no seu filme anterior Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação, 2011) a separação do casal protagonista era uma forma de Farhadi reflectir sobre essa nova figura da separação de uma sociedade iraniana toda ela cosida por dogmas religiosos, aqui essa filiação nacional está muito mais diluída. Está no prato que Ahmad cozinha para os filhos de Marie ou quando falam sobre a beleza das mulheres iranianas (sem barba). A identidade de Le passé é por isso toda ela interior, em que as feridas emocionais não conhecem país, apenas distância e proximidade entre pessoas.
Desta feita, o filme inscreve-se numa tradição rohmeriana de drama tenso entre pessoas [penso também naquele título que fez chorar muito boa gente nos anos 80 nas televisões portuguesas Kramer vs. Kramer (Kramer contra Kramer, 1979) de Robert Benton] e a partição das emoções, desfolhada por camadas: os homens digladiam-se pela posse do território, da casa, um pinta as paredes com uma tinta nova que, mal chega Ahmad, se espalha pelo chão, entornada (a pintar desordenada, o chão) e o outro arranja o lava-loiças; a adolescente não quer que a mãe mude constantemente de homens; as crianças enquanto são, elas próprias, objectos de exercício do poder masculino (a cena das prendas) querem estar no mesmo espaço, sem alterações. Ahmad é a personagem “santa”, sempre calmo, pronto a falar e a resolver os problemas, que se converte, sobretudo perto do final, em que parece haver um lado procedimental de apuramento de culpas (algo que já vem do cinema anterior de Farhadi), em inspector dos sentimentos alheios. Marie, a fabulosa actriz Bérénice Bejo (venceu o prémio para melhor interpretação este ano em Cannes), é o centro da desordenação (e da conquista), explodindo de cena em cena.
Mais do que o apuramento de responsabilidades e de quem ama quem, interessa ver como Farhadi filma o enrodilhar da coisa. Ahmad é o veículo do esclarecimento, mas é também a causa da perturbação: sente-se injustiçado pelo facto de Marie o ter feito dormir no mesmo quarto do filho do seu novo homem , ele sente o presente como uma pseudo-vingança pelo passado em que deixou aquela família, em que esteve deprimido e já não lhe apetecia viver. Também Farhadi, não pode, não consegue, filmar tudo isto de forma asséptica. As discussões, encontros de gente dorida e desorientada sucedem-se com um notável sentido de ritmo e com uma maravilhosa direcção de actores. O que se pergunta é algo semelhante ao que João Bénard da Costa inquiria acerca da representação de Ingrid Bergman e Liv Ullmann em Höstsonaten (Sonata de Outono, 1978) de Ingmar Bergman. Mas onde acabavam aquela Charlotte e aquela Eva, aquela mãe e aquela filha, em duelo, e onde começavam as actrizes com sentimentos próprios inculcados de separação e ausência de que o filme tratava? Le passé não vai tão longe pois Farhadi adiciona à claustrofobia emocional dos quartos (onde filma sempre as suas “sonatas”), a essa “casa assombrada” pelos fantasmas do passado, o thriller sentimental. A queda das máscaras surge assim contaminada pelo mistério físico. Mas não nos enganemos, o cinema realista de tradição francesa, o esquematismo do argumento surgem aqui como misleading pois todo o caminho deste iraniano, pela primeira vez a filmar fora do Irão, numa Paris irreconhecível (apagada da cultura), é percorrer esse trajecto da materialidade do espaço de confronto emocional ao toque ascético das mãos e da fragrância. Eu cheiro-te, tu cheiras-me. Eu toco-te, tu tocas-me. E é tudo.
Nesse sublime percurso, Farhadi filma e gere a frieza, o silêncio, as lágrimas, o amor, como poucos no cinema contemporâneo. Obra-prima a fechar o ano de 2013.