Começando pelo título, The Story of Film: An Odyssey assenta em alguns equívocos. Uma visão tão pessoal – ou, sendo mais cínico, uma agenda tão evidente – dificilmente poderia resultar num “the story of film”, meramente num “a story of film” (já lá irei). Um dos outros, o que permite que eu escreva sobre esta obra, é que, por muito que Mark Cousins afaste a câmara dos entrevistados e se recuse a colocar oráculos com os seus nomes, como confirma na entrevista que concedeu ao Luís Mendonça, isto não é cinema. Apesar de ter sido exibido em sala em cinematecas e sessões especiais (como as que tiveram lugar no Cinema City Alvalade entre o fim de Novembro e o início de Dezembro), The Story of Film foi produzido para a televisão e dividido em quinze episódios pensados como tal. Assim, contra o próprio autor (mas, creio, a favor do próprio projecto), é identificável como uma série de televisão.
Não haverá algo de propriamente errado em fazer uma série de televisão sobre a história de cinema, nem com esta em específico, por esse facto. De resto, por ocasião do centenário do cinema, realizaram-se muitas e algumas muito boas. Por exemplo, A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, em que Martin Scorsese, como o título indica, atravessa o cinema americano do período a que se circunscreve – desde o seu início ao momento em que começou a filmar -, quase escrevendo uma autobiografia enquanto espectador de cinema, pouco preocupado em abarcar tudo, atendo-se aos realizadores e filmes que lhe são mais próximos ou que não mereceram o destaque devido em selecções do género (segundo o próprio). Ou seja, o que se estranha é a necessidade de “ser” ou “fazer diferente” de Cousins que o leva a renegar a essência do seu projecto. E que talvez origine a indefinição do mesmo.
Ao contrário de Scorsese, Mark Cousins segue a história do cinema cronologicamente, desde a invenção – partilhada por Thomas Edison e os irmãos Lumiére – até à última revolução, o digital, com um pé na vontade de contar tudo (“the story”), incluindo os habituais excluídos – as mulheres realizadoras e todos os realizadores fora do eixo Europa-Estados Unidos, principalmente de África (para o norte-irlandês, a história do cinema convencional é racista e sexista) -, e outro pé na de mostrar qual foi o percurso da inovação do cinema, numa escolha particularmente subjectiva (“a story”). É óbvio que qualquer história pressupõe escolhas e exclusões, mas é difícil aceitar o relevo que a cinematografia britânica tem se o objectivo era dar a conhecer novos cinemas ou o certo desprezo a que são votados a Nouvelle Vague e Jean-Luc Godard (respectivamente, o movimento mais revolucionário desta história e o cineasta mais influente da segunda metade do século XX) se a intenção era dar conta da evolução do cinema.
A agenda política muito carregada – além de pretender fazer uma história não-sexista e não-racista do cinema (o que leva a algumas sobrevalorizações, como se tivesse de preencher certas “quotas”), Cousins equivale Hollywood ao capitalismo (“a shinny bubble” a ser combatida por todos os rebeldes “internacionais”, quer estes queiram pertencer à “revolução” ou não) e diverte-se a arranjar influência noutras cinematografias para os filmes norte-americanos (mas nunca o contrário, o que se revela muitas vezes cansativo e noutras simplesmente incorrecto) – motiva, pelo menos, a discussão. O que se pode considerar um ponto positivo, visto que a história do cinema, como qualquer história, corre o risco de se cristalizar.
Por outro lado, afirmações discutíveis (mais no sentido de “um tanto ridículas”) não faltam à narração de The Story of Film (é o próprio Mark Cousins que se encarrega dela, transformando o seu forte sotaque, muito melífluo, num dos protagonistas desta série): “Fellini é o cineasta mais influente depois de Hitchcock e Chaplin”; “Ken Russell é o Fellini britânico”; “o final de Taxi Driver (1976) é devedor do cinema de Bertolucci e [Vittorio] Storaro”; “Bernardo Bertolucci foi o realizador mais importante do seu tempo”; “os silêncios de C’era una volta il West (Aconteceu no Oeste, 1968) são neo-realistas”; e por aí fora. Esse lado provocador de Cousins não é especialmente bem conseguido, este não é capaz de um pensamento regenerador ou sequer muito inventivo. Pelo contrário, cai amiúde em facilidades do género “o cinema de Fellini é como o circo e o cinema de Bergman é como o teatro”.
Contudo, para lá da óbvia – é, de facto, uma maneira (boa ou má, aqui não interessa) de conhecer (mais) cinema(s), embora não seja necessariamente para neófitos, antes para aqueles que já tenham algumas bases (como se costuma dizer) -, The Story of Film tem qualidades. Ao contrário do título, que provoca algumas reticências, o subtítulo, An Odyssey, é certeiro: Cousins percorre o mundo, da Ásia a África, da América à Europa, atrás dos realizadores e filmes de que quer falar, sempre acompanhado da sua câmara de filmar digital (vai-se percebendo que tem mais de cineasta do que crítico ou pensador), que serve não só para registar os locais e os objectos que fizeram a história do cinema (estúdios, ruas, câmaras) e diminuir o número de imagens de arquivo (que o espectador já está farto de conhecer de outros documentários) como para emular os planos e enquadramentos dos realizadores ou cinematografias em mãos. Pode questionar-se o que Mark Cousins diz, mas este nunca é genérico ou vago, usa sempre de exemplos demonstrativos, pegando em imagens específicas dos filmes que está a tratar, para as suas teorias (mesmo que estas resultem estapafúrdias). Depois, acerta também na escolha dos seus convidados, geralmente bem mais interessantes do que ele – Paul Schrader, Kyoko Kagawa (actriz de Ozu e Mizoguchi), Stanley Donen, Tsui Hark, Abbas Kiarostami, Claudia Cardinale, Wim Wenders, Amitabh Bachchan (o actor mais famoso do mundo, segundo Cousins), Bernardo Bertolucci [que fala de um postal de Mao que lhe foi dado por Godard em jeito de reprimenda por Il conformista (O Conformista, 1970)], Gus Van Sant (que se apresenta de meias) -, e sabe dar-lhes tempo de antena.
The Story of Film não é de deitar fora (especialmente se lhe derem a caixa da Midas pelo Natal – é de mau tom atirar prendas ao lixo), ainda que não dê azo a grandes entusiasmos, como se verifica nesta conversa patrocinada pelo À pala de Walsh, entre João Mário Grilo, Maria João Madeira (que traduziu a versão portuguesa), Luís Mendonça e este que vos escreve.