Vi esta primeira longa de ficção do cineasta (e crítico) brasileiro Kleber Mendonça Filho na minha viagem à Polónia. Em jeito de aperitivo para esta crítica que agora produzo, retomo esta espécie de sinopse que esbocei: “No filme de Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor (2012), um edifício de ruídos é construído à medida que vamos conhecendo um bairro de classe média-alta do Recife. Os condomínios fechados, os arranha-céus, as muralhas de segurança erigidas à volta… Nada comunica com o exterior, mas também nada nem ninguém evitará que os ruídos circulem de um apartamento para o outro, tal qual a bola do menino pobre que vai parar ao pátio da menina rica”. Sugiro, então, que (re)entremos neste condomínio.
O jogo coral é intenso aqui: uma acção reverbera noutra como os sons, diegéticos e extra-diegéticos, se vão, em sentido quase literal, “edificando”. Esta ideia de construção está desde logo plasmada no movimento da câmara, no encadeamento da montagem, nos vários detalhes das pequenas narrativas que despreocupadamente se vão desenrolando, sem procurarem explorar a ansiedade do espectador – apesar de uma certa tensão latente, ao contrário de um Iñarritu não há aqui nenhum trauma ou evento trágico que liga todas as personagens entre si, nem tão-pouco o filme assentará a sua estrutura naquele que poderá ser considerado o seu principal ou único twist dramático.
Posto isto, temos aqui um cineasta que pensa audio/visualmente o espaço que serve de palco rotativo ao encadeamento das histórias; não só ao registo da vida de um bairro (= ecossistema) suburbano no Recife mas, antes de mais, à construção de imagens e sons que funcionam, elas mesmas, numa vizinhança imperfeita, sempre “em construção”. É também, obviamente, um retrato social de classes com a mordacidade e um sentido de humor – e terror! – muito próprios, mas decididamente não é aí ou só aí que O Som ao Redor se revela um refrescante naco de cinema. Kleber Mendonça Filho trabalha as personagens ao mesmo tempo que à volta e dentro delas (nessas extraordinárias curtas-metragens, pelo menos uma delas particularmente carpenteriana, que são os seus sonhos!) cria uma atmosfera de sentidos (sons, movimentos, cores) no lugar de colar os cacos todos através de uma espalhafatosa “grande narrativa” que justifique e melodramatize tudo o que é dado a ver (à la Iñarritu).
O uso da elipse perto do fim – em torno do desenlace do romance que abre o filme – é um exemplo de como a ânsia de mostrar e ao mesmo tempo justificar ou explorar a realidade sentimental destas personagens pode ser dominada e, com isso e pela surpresa, nos “provocar” mais e mais coisas. Esta brilhante primeira longa de ficção de Kleber Mendonça Filho pede para ser vista várias vezes. É que o prazer da descoberta deste ou daquele detalhe parece não se ficar apenas pelo primeiro visionamento. Durante algum tempo, receei que este excelente filme não viesse a merecer uma distribuição comercial em Portugal. Felizmente, a distribuidora Nitrato Filmes (sobre a qual o João Lameira já tinha escrito aqui) desfez a espera, exibindo o filme em permanência no Cinema City Alvalade em Lisboa e promovendo sessões únicas numa digressão pelo norte do país (há pouco tempo Paulo Branco dava conta de que esta pode ser a via do futuro para a distribuição do cinema). Um aplauso para a sua vontade de inovar e resistir num mercado difícil. Que estes “sons edificantes” cheguem às redondezas de todos.