Nos idos anos 60 Mário Cesariny era vigiado pela polícia internacional e de defesa do estado por “suspeita de vagabundagem” que era um desses eufemismos que o Estado Novo se especializou a construir. Cesariny era homossexual e era-o assumidamente num altura em que a alma lusa estava purgada, por santa madre igreja e pelo sebastiânico Presidente do Concelho, dessas maleitas que afectam os fracos de espírito. Cesariny foi várias vezes detido e várias vezes interrogado. Contava ele que numa dessas vezes os polícias o sentaram numa sala de interrogatório e o questionaram sobre a sua sexualidade, ele assentiu que sim, que era homossexual. Muito contentes com a cooperação, perguntaram-lhe se era seu hábito frequentar uns certos cinemas de má fama, de novo o poeta-pintor assentiu que sim, que frequentava esses espaços. Os polícias alegravam-se por verem confirmadas as suas suspeitas, diziam-lhe depois que, no entanto, o motivo daquele interrogatório era outro, sobre a vida de Mário Cesariny já eles sabiam que bastasse, queriam que ele lhes indicasse outros como ele, queriam saber com quem se encontrava nas matinés pornográficas. Cesariny terá olhado para os guardas com alguma surpresa e terá respondido: sabem, aquilo está sempre tão escuro que eu nem sempre lhes vejo o rosto e muito menos lhes conheço o nome.
Tais sessões não terão decorrido no Cinema Paraíso, que por essa altura ainda era Ideal e por isso mesmo livre dessas práticas, também não terá sido no Olympia – hoje o Teatro Politeama de Filipe La Féria – que por essa altura passava o dito cinema popular (Welles, Fords, Hawks, Walsh, enfim, cinema para as massas) e que só com a abolição da censura depois da revolução é que se dedicou a títulos como Viva Vanessa, Toda Nua – nem no Cine-bolso ou no Animatógrafo. Não quero entrar numa onda de romantismo nostálgico sobre cinemas perdidos pelo simples facto de que tal coisa soaria sempre a falso, já que nunca cheguei a conhecer a maioria desses espaços nas suas originais actividades e no máximo traduzir-se-ia na reprodução coçada do lamento geral dos que tiveram esse privilégio.
Mas quero falar sim dos recentes fechos e aberturas de cinemas em Lisboa (e fico-me pela capital por ser o que conheço melhor). No início do ano Lisboa ficou sem as duas salas do Cinema Londres – a falência da Socorama, detentora da marca Castello Lopes Cinemas, levou ao encerramento de 49 salas, entre elas as duas referidas, a maioria das quais foi reaberta por outro exibidor, a Cineplace, propriedade do Grupo Orient, que exibe cinema no nordeste do Brasil e em Luanda, e há semanas fecharam as duas salas ainda abertas do Cinema King – desta vez o motivo do fecho deste cinema detido por Paulo Branco prendeu-se com a subida do custo de aluguer do espaço. Por sua vez, reabriram há dias duas das quatro salas do Cinema Saldanha-Residence – fechadas em 2011 – com um novo exibidor, GreatCinema, e com o nome @Cinema, assim como se anunciou a reconversão do Cinema Paraíso num novo e recauchutado Cinema Ideal (a abrir na Primavera de 2014).
Temos aqui presentes, nestas movimentações do mercado da exibição, dois factores fundamentais para compreender aquilo que é o comércio do cinema como negócio rentável e aquilo que é o negócio do cinema como obrigação moral – quando as duas coisas não se confundem.
A decadência do King e do Londres era evidente para aqueles que os puderam visitar nos seus últimos anos e isso deveu-se a uma incapacidade de os seus detentores actualizarem o seu público (que era maioritariamente envelhecido) e de evitarem o declínio das instalações (veja-se o caso do Quarteto cujo desfecho foi muito semelhante). E não será com certeza a maldição da Avenida de Roma que causou tais desenlaces, já que uns metros acima abriu há poucos anos o Cinema City Alvalade que vem vingando principalmente pelas múltiplas actividades que organiza e dá a organizar, nomeadamente ciclos, festivais de cinema, exibições especiais, etc.
Não é pois inesperado que, ao reabrir as salas da Castello Lopes, o Grupo Oriente tenha escolhido apenas aquelas que se localizavam em centros comerciais – todos da Sonae Sierra, do Algarve às ilhas – e tenha deixado o Londres de fora do cabaz. Também não é com surpresa que lemos a reportagem do Público sobre as novas salas @Cinema e ouvimos os exibidores afirmarem “Só trabalhamos com blockbusters – o nosso target é muito específico, jovem e os jovens querem é ver este tipo de filmes” [o tipo de filmes que agrada a 80% dos espectadores] e que, a par de um novo sistema de som ‘spectacular’, vem um preço low cost, vêm os sponsors (a Vodafone e companhias de refrigerantes – parceria semelhante à da Yorn com os cinemas UCI ou com o MOTELx e à qual se deveu o grande crescimento de público da mostra) ou ainda uma bilheteira de tablet em riste “pelas praias ou pelas festas populares” – tudo com vista a atrair o público-alvo de 15 a 35 anos (o grosso dos espectadores de cinema).
O cinema é por natureza objecto de comércio e felizmente que os exibidores encontram (novas) formas de mostrar cinema e no entremeio lucrarem com isso, no entanto vem-se tornando cada vez mais evidente que para obter esse lucro os responsáveis viram-se cada vez mais para modelos de cinema tipificados cuja fórmula assegura um retorno garantido. De ano para ano sentimos que aquilo que se arrisca é cada vez menos (mesmo por parte das distribuidoras independentes) e objectos mais ousados ou irregulares ficam meses na prateleira à espera de uma estreia acabando por cair no mercado do DVD ou VOD meses ou anos depois da sua distribuição internacional [penso no caso de Killer Joe (2011), recém disponibilizado no videoclube da MEO].
Daí que o apoio estatal à exibição de cinema de origens menos conhecidas ou de cinematografias menos divulgadas seja fundamental para garantir uma diversidade para o espectador – já que a dimensão do mercado nacional, por muito bem explorado que possa ser, é demasiado reduzida para garantir, nem que seja, o acertar das contas. Esse apoio vem sendo feito à distribuição, permitindo a proliferação de vários concorrentes independentes (como abordei aqui). No entanto, no que respeita à exibição, essa diversidade ainda não foi conseguida – por ser avultado o investimento de abrir e manter uma sala (ou várias).
É pois com alegria e receio que olho para este novo Cinema Ideal, isto porque por um lado as palavras de Pedro Borges (produtor e distribuidor da Midas, co-recuperadora do espaço) são todas acertadas, há de facto uma “obrigação” [moral] em recuperar este espaço, há de facto a necessidade de contrariar o cinema com “cheiro a pipocas” e de recuperar os cinemas de bairro e no centro, por outro lado estou descrente no sucesso do projecto. Há que começar por notar que o Teatro do Bairro começou por exibir cinema regularmente aquando da sua re-abertura (a pouco metros do Ideal) para o passar a fazer em ciclos e festivais e para o deixar de fazer de todo; segundo, crer na criação de um público de bairro numa zona onde vive muito pouca gente é no mínimo utópico e supor que os “jovens” juntarão às saídas à noite no Bairro Alto ou na Bica um programa cultural no Cinema Ideal é, isso mesmo, idealista – ainda para mais quando percebemos que a intenção dos programadores de dar especial atenção ao cinema português [o filme que estreará a remodelação será Se eu Fosse Ladrão, Roubava, a derradeira obra de Paulo Rocha] vem em contra-ciclo àquilo que é o gosto das massas.
Arrisco-me pois a dizer que os responsáveis pelo Cinema Ideal, tal como Mário Cesariny, entraram num cinema paraíso e sentaram-se ao colo de alguém cujo rosto e nome ainda não conhecem.