Sempre achei maravilhoso o nome do produtor que lançou a carreira de Jean-Luc Godard e de outros colegas seus cineastas (colegas que são Demy, Rohmer, Rivette, entre outros). Georges de Beauregard – Georges Belo Olhar. Foi esse belo olhar que se lançou na aventura de fazer filmes e financiar aqueles que viam neles, precisamente, um lugar para confessar os seus próprios olhares e tudo o que transportavam neles. Os belos olhares são esses: aqueles que se estendem para além do campo da visão e que buscam a concretização do seu sentimento – numa paixão, no amor, na criação que se inspira (e nasce) dos sentimentos que vivem nas nossas almas. São os olhos que transportam esses sentimentos e o seu campo material, campo esse (como o campo do cinema) que só existe no encontro com um segundo olhar que lhe responda e que faça um movimento semelhante ao do amor: expandi-lo, redefini-lo, reconhecê-lo, abri-lo às portas dos sonhos que o nosso cérebro fabrica e que pulsam no movimento das veias.
Imaginando esse jovem Godard que tem então a sua primeira chance para reproduzir esse sonho na vida – como ver que essa paixão com que sonhava, afinal, tem também de se aplicar à vida material e concreta para poder existir -, imagino também a sua angústia. Como replicar o sonho na realidade? Como evitar a frustração de não vê-lo à altura desse primeiro sentimento que o levou a ele?
Esse é o desafio constante que temos nas nossas vidas. E porque o cinema vem dela, foge dela e regressa a ela para enriquecê-la ainda mais (é esse o movimento perpétuo), Godard sabe que, mergulhado nele, o filme fará também a sua viagem natural, porque é vida, e recorrerá à ficção para existir, porque é cinema. Godard espera apenas entrar nesse filme com todos os seus sentimentos, tanto os de felicidade como os de terrível angústia. E quando começa o primeiro dia em que se dedica à sua filmagem, o jovem realizador escreve ao produtor:
“É segunda-feira, caro Georges de Beauregard. É quase dia. A partida de cartas vai começar. Espero que ela lhe traga bastante dinheiro [oseille], uma palavra encantadora que já não se usa o suficiente. Queria agradecê-lo por confiar em mim. Peço-lhe desde já desculpa se, por acaso, estiver de mau humor no mês que se avizinha. Espero que o nosso filme seja de uma bela simplicidade, ou de uma simples beleza. Tenho muito medo. Estou muito emocionado. Está tudo bem. Escrevo-lho quase como se escrevesse aos meus pais e entrego-lhe, como na primeira jogada da partida que agora começa, a seguinte divisa de Guillaume Apollinaire: Tout terriblement, JLG.”
O ano que agora se avizinha será, com certeza, cheio de tudo – esse tudo que nenhum de nós pode prever. A única coisa que podemos fazer, tal como na entrada dessa filmagem para um filme que irá existir (e que ainda não vimos), é ser tout terriblement. Tenho muito medo. Estou muito emocionado. Está tudo bem. Ou como escrevia ainda Truffaut a Jean Cocteau, um pai espiritual (que olhar mais bonito existiu do que o olhar de Cocteau?), quando o convidava para apresentar um filme no seu recém-criado cineclube, esperando a sua resposta “avec un peu d’angoisse et beaucoup d’espoir”. Assim espero tudo aquilo que vier no próximo ano, assim o desejo para todos os que buscam esse belo olhar e desejem encontrar a vida nele.