Sobre The Hobbit: The Desolation of Smaug (O Hobbit: A Desolação de Smaug, 2013) de Peter Jackson paira uma dúvida muito própria destes dias de hoje e deste cinema para as massas que se vem fazendo, que é: onde pára o cinema e começa o videojogo? Já tinha aludido a isto no último intento shyamalano e o Carlos referiu-se nos mesmos modos ao filme de Cuáron. Ao contrário desses filmes onde o argumento parecia escrito à distância de cada tarefa [eram as horas do dia em After Earth (Depois da Terra, 2013) que obrigavam a personagem a cumprir cada um dos níveis em direcção ao boss final, ou as bolsas de oxigénio em constante decréscimo que fechavam cada episódio de Gravity (Gravidade, 2013)] mas a câmara se destacava pela eloquência – dos planos subjectivos ou dos planos sequência, respectivamente -, nesta mais recente aventura pela terra média de Peter Jackson a estética videojogo está, por sua vez, no próprio olhar do realizador.
O que este The Desolation of Smaug torna, mais do que nunca, evidente é a desmesurada confiança no material de partida por parte do realizador e a sua profunda preguiça. Explico-me: primeiro, Peter Jackson crê piamente na obra de J.R.R. Tolkien e, como tal, não se preocupa em dar dimensão às mitologias do romance, isto é, como numa série televisiva num serviço de urgências enchem-se os diálogos com palavras estranhas umas atrás das outras, como se isso, por si só, fosse suficiente para conferir um peso ao que é dito; segundo, dado o sucesso da anterior trilogia o melhor será mesmo capitalizá-lo ainda mais recuperando personagens e actores já (re)conhecidos e mais que isso fugir o menos possível da estrutura narrativa aventura-epopeia-com-guerra-entre-luz-e-trevas em pano de fundo; terceiro, há esta ideia de que os avanços técnicos valem por si e, como tal, o simples facto de se fazer o filme com uma dimensão a mais ou com 24 frames a mais (e combinando as duas coisas ficamos com 96 frames por segundo, já que cada olho tem que apanhar metade para se conseguir o efeito estereoscópico) é em si suficiente para fazer valer o filme [coisa que se tornou cada vez mais evidente no cinema de Jackson a partir do seu King Kong (2005)] – e tudo o resto fica em suspenso ou em piloto automático (são as câmaras esvoaçantes que andam em todas as direcções quando se filma ‘acção’ ou os mais descerebrados campos-contra-campos na sequências ‘dramáticas’) -; quarto, o texto de base pede um trabalho enorme de montagem paralela (já que as personagens aqui se contam às dúzias e estão todas em locais far far away umas das outras), o que pede um controlo sobre os ritmos de cada história e uma certa criatividade em saber coser toda a manta de retalhos, algo que Jackson nunca teve (seria bonito ver Altman a gerir tudo isto) e que se manifesta aqui num filme de duas horas e quarenta, moroso e cansativo; quinto, só mesmo por motivos comerciais é que se adaptam três livros a três filmes e um livro apenas a três filmes de novo, o que garante a este tomo do meio o triste fado de não ter nem princípio nem fim.
Mas regressando à questão do videojogo, o que se nota neste filme [mais do que no(s) anterior(es)] é esta compreensão visual de cada cena – a planificação, a duração dos planos – como um jogo de vídeo de onde se destacam a luta com o dragão na porção final do filme ou outras situações de batalha ou fuga que se assemelham muito àquilo que nos jogos se chamam as dungens (and dragons), isto é, há uma enorme criatura e para a poder vencer é necessário juntar esforços dos vários jogadores em torno de uma série de pequenas tarefas que combinadas permitem a utilização de uma super-arma capaz de derrear o bicho malvado – aqui são os 12 anões da branca de neve que têm que pôr em funcionamento as fornalhas da antiga cidade abandonada e assim atacarem o bicharoco (o tal Smaug) com uma mangueirada de ouro derretido (e de forma idêntica podíamos descrever a fuga em barris ao longo do rio como uma corrida de obstáculos à moda de um super mario, ou do telefónico Hugo, em que é preciso desviar para a esquerda e para a direita ou saltar por cima dos malvados sem fazer asneiras). O pior é mesmo a forma como Jackson não só compactua com isto como tem interesse em reproduzir fielmente esta estética, talvez no sentido de apelar (e agradar) a uma parte substancial do seu público que joga estes joguetes – note-se que a indústria dos videojogos há muito que ultrapassou a do cinema. Portanto, por motivos de bilheteira, Peter Jackson infecta o (seu) cinema destas influências visuais e narrativas que muito o perturbam e uniformizam (como se vem tornando cada vez mais evidente).
Termino no entanto com uma nota positiva. Há neste filme um regresso aos primeiros filmes de Jackson, nomeadamente Braindead (Morte Cerebral, 1992) e também Bad Taste (Carne Humana Precisa-se, 1987), onde o gosto pelo gore com dose extra de molho está igualmente presente, como se o realizador, apesar da maquinaria milionária e do gigantismo das produções, preservasse esse gosto juvenil de fazer filmes com os amigos e grandes quantidades de papa encarnada só que em vez de ser com um corta-relvas a matança é agora feita à espadeirada (e a papa virou efeito de computador).