O mais recente filme de Jia Zhangke, que agora se estreia nas salas portuguesas, vem de Cannes com um prémio para melhor argumento e começa, com o final do ano, a surgir nas várias listas das várias revistas e sites de referência. Esta atenção ao último filme do realizador prende-se grandemente com o facto de o filme representar uma mudança de estilo muito evidente na obra do realizador − muito evidente e muito surpreendente. A questão está em perceber se essa surpresa e essa mudança acrescentam, ou modificam, interesse aos interesses do realizador chinês.
Aquilo que mais tem prendido o olho é o facto de Jia ter seguido uma via mais estilizada para o seu filme, demorando-se em várias cenas de violência muito gráfica aos modos de um faroeste de bolonhesa − as pistolas e as caçadeiras saltam muitas vezes e esmigalham-se crânios à marretada com grande mestria e quantidade de salpicos. Se de facto o realizador junta a este recém descoberto gosto por sangue uma câmara que já não está sempre fixa ou presa em lentos travelings, mas que acompanha a pulso os personagens e se deleita na largueza dos enquadramentos, também se verifica que o empenho do realizador em continuar a “filmar os condenados”, aqueles que estão perdidos no turbilhão de mudança que é a China de hoje em dia, continua intacto.
Jia Zhangke vem retratando (“Não um photomaton, antes uma elaboração artesanal que contrapõe a melancolia ao ‘excesso de real’ da fotografia“) a China moderna de filme para filme nas suas mudanças, ou melhor, através daqueles que não são capazes de as acompanhar. Ele filma um parque de diversões onde o mundo está presente em figura de papelão [Shijie (O Mundo, 2004)], filma uma cidade por inundar antes da inauguração da Barragem das Três Gargantas [Sanxia haoren (Still Life – Natureza Morta, 2006)], filma um complexo industrial em destruição [Er shi si cheng ji (24 City, 2008)] ou a memória de uma cidade que já foi símbolo fervoroso do comunismo e agora é símbolo do seu oposto [Hai shang chuan qi (Histórias de Shanghai – Quem Me Dera Saber, 2010)]. Mas em cada espaço Jia filma pessoas às quais a memória não foi ainda demolida, arrasada, inundada, oprimida, como os locais onde moram ou trabalham. É sobre isto que Tian zhu ding (China – Um Toque de Pecado, 2013) fala, sobre uma série de gentes que defronte de uma “mudança de paradigma” não sabe onde ficar, se do lado de lá, se do lado de cá − onde o cá não é aqui e o lá é já o além.
Mas o que mais me interessa neste Tian zhu ding é a sua estrutura aleatória. Ao contrário de realizadores como Fernando Meirelles ou Alejandro González Iñárritu, que filmam histórias em rede como que dizendo que estamos todos ligados − e, pior, que no fundo somos todos iguais −, o que Jia optou por seguir foi algo próximo do surrealismo de Luis Buñuel em Le fantôme de la liberté (O Fantasma da Liberdade, 1974), isto é, a câmara filma ao sabor do vento mudando de personagem principal a cada meia hora, simplesmente porque alguém mais interessante passou por ali. Mas talvez o mais interessante seja perceber como o mesmo dispositivo serve propósitos tão diferentes aos dois realizadores: para Buñuel, mudar de personagem principal − como a criança que se distrai com o que passa e se perde na sua própria curiosidade − é um gesto de puro desafio, sendo que a estrutura lhe serve apenas para fazer pouco dela e com isso espantar-nos; ao passo que para Jia este prazer de seguir um e outro personagem que se cruzam com a sua câmara está mais próximo de um filme viral que procura seguir os efeitos de um epicentro nas suas várias repercussões.
Como falávamos há semanas, nas Conversas à Pala a propósito de Lang, o mal para o realizador austríaco é uma coisa pastosa que se pegava a quem dele se aproxima − when you fight scum you become scum −, e um dos seu herdeiros será certamente John Carpenter, já que no seu cinema o mal tem características de vírus [evidentemente em The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982) e em Ghosts of Mars (Fantasmas de Marte, de John Carpenter, 2001), mas também em The Fog (O Nevoeiro, 1980) ou noutros filmes] − coisa desconhecida ao tempo de Lang. Posto isto, estou em crer que, com esta mudança formal no cinema de Jia Zhangke, o realizador aproxima-se destes dois realizadores ao mostrar como a violência é uma coisa que se agarra às pessoas (basta passar por elas na rua, basta um toque de mãos, basta um presente), algo que fica muito bem expresso na primeira cena do filme, onde um homem é ameaçado com um machado e responde com uma pistola, e neste jogo de criança dás-me-um-murro-dou-te-um-pontapé as personagens que Jia encontra vão matando e morrendo.
Desta forma, parece-me que Jia consegue aqui representar algo muito mais lato que a expiação do povo chinês face ao actual estado de coisas (coisa que sempre conseguiu com os seus filmes anteriores), no sentido em que este discurso da violência é extra-nacional e próprio da humanidade e que todos nós somos assassinos em potência, aos quais ainda não chegou a provocação certa, o toque do pecado − mas, nada do “mambo-jambo da mundividência que quer a todo o custo unir os seres humanos na boa vontade ou na agrura“, a violência é aqui uma inevitabilidade, é uma tentativa frustrada de tentar encontrar um ponto de fuga num mundo cubista.