Um dos mais célebres filmes do mestre japonês Kenji Mizoguchi, Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953), abriu esta semana o ciclo “Passado e Presente do Japão no Cinema” na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Um bom pretexto para revisitar este clássico, cuja segunda exibição no ciclo tem lugar amanhã.
No mesmo ano em que Mizoguchi realizou Ugetsu monogatari, Yasujiro Ozu filmava Tokyo monogatari (Viagem a Tóquio, 1953). Ambos contribuíram de forma significativa para um maior conhecimento e valorização do cinema japonês no “Ocidente”. Ugetsu deu a Mizoguchi o Leão de Prata no Festival de Veneza e continua a ser descrito até hoje como uma obra onde o “exótico” é potencialmente mais apelativo para audiências estrangeiras. Talvez. Mas duvidamos que a Mizoguchi interessasse muito tais coisas. Afinal, não há nada em Ugetsu que destoe das suas obras mais emblemáticas, e estas foram concebidas no e sobre o Japão, não para agradar a um público estrangeiro, ainda que este não tenha dificuldade em sentir-se fascinado pelo mundo de sonho (e pesadelo) de Ugetsu.
Ugetsu passa-se no século XVI, quando o Japão se encontrava em período de guerras civis. Numa aldeia japonesa, o ceramista Genjuro (Masayuki Mori) vive com a mulher Miyagi (Kinuyo Tanaka) e o filho. Consigo colabora Tobei (Eitaro Ozawa), que sonha deixar a sua vida de pobreza e ser samurai. A mulher, Ohama (Mitsuko Mito) critica-o pela ilusão de tal projecto e exorta-o a sentir-se satisfeito com o que tem. De forma idêntica, Miyagi também alerta o marido para os perigos da sua ânsia de lucro ao tentar aproveitar-se da situação de guerra para vender mais peças de cerâmica.
Os prenúncios e agoiros estão presentes desde o início. “Lucros feitos em tempos de guerra não duram”, diz alguém. Neste filme de ambições desmedidas, os castigos virão com serena crueldade, e se o filme termina no mesmo espaço físico em que começa (a cabana de Genjuro) e a paisagem transmite uma ideia de continuum, é certo que o destino deixa as suas irreparáveis marcas.
Tobei conseguirá ser samurai, mas a sua ascensão é inversamente proporcional ao percurso da mulher, violada por soldados e forçada a trabalhar como prostituta. Os empreendimentos de Genjuro não têm melhor fim. Embora consiga atrair a admiração de uma antiga aristocrata, Lady Wakasa (Machiko Kyo), com as suas peças e iniciar com ela uma relação de sensual idílio, perceberá que tal não passa de uma ilusão, já que Wakasa é um fantasma e a sua esplendorosa mansão nada é senão uma ruína. No entanto, enquanto Genjuro persegue tal quimera, a esposa dedicada que deixara para trás é cruelmente assassinada por um bando de assaltantes.
Nem o final apaziguador, com a voz doce do fantasma de Miyagi e a imutabilidade da paisagem rural, vem afastar por inteiro a(s) tragédia(s) do filme. Mizoguchi dá-nos a ver aqui, como tinha dado e daria noutras obras suas, os efeitos de conflitos e da violência em pessoas comuns. A mensagem é tão crítica como de serena resignação, como se todo o mal que é causado pela ambição dos homens fosse inescapável porque faz parte da sua natureza e o sofrer faz parte do destino humano. A visão terrífica do sofrimento e corrupção causado pela guerra não deve ter soado oca na época em que o filme foi feito, menos de dez anos depois do final da Segunda Guerra Mundial. Veja-se o significativo diálogo entre Tobei e Ohama quase no final. “A guerra deixou-nos loucos de ambição”, diz ele, ao que ela lhe responde: “Não deixes que o meu sofrimento tenha sido em vão. Reergue-te e trabalha com afinco”.
Também as preocupações de Mizoguchi com o sofrimento feminino não estão ausentes. Em Ugetsu não há vítimas maiores do que as três mulheres do filme: Miyagi, Ohama e Wakasa. As duas primeiras sentindo no corpo o preço da vã ambição dos maridos, a última condenada à solidão da eternidade por guerras de outros.
A narrativa de Ugetsu capta a atenção pelo seu tom de fábula, que se segue como se de uma história de encantar se tratasse. E, na verdade, é essa a base do filme, inspirada em dois contos do sobrenatural escritos no século XVIII por Akinari Ueda e publicados numa antologia intitulada precisamente Ugetsu monogatari (Contos da Lua e da Chuva). A música é outro elemento essencial em Ugetsu. Contudo, é o extraordinário trabalho visual do filme que o coloca entre os mais magistrais do cinema japonês. Com planos longos, mas não estáticos, que nos mostram o desenrolar da acção e integram as personagens nas paisagens que habitam.
Há momentos de particular esplendor neste filme a preto-e-branco que é tudo menos cinzento, tamanha a sua riqueza pictórica (veja-se algo aparentemente tão simples como os elaborados quimonos que surgem em alguns momentos do filme). É o caso da viagem de barco no rio, com Ohama a cantar enquanto rema, a água cristalina e a penumbra e nevoeiro transformando a cena numa das mais atmosféricas do filme, de tanta beleza como inquietude. Ou a ideia de sofrimento atroz retratada nas poses dos corpos de Miyagi a ser esfaqueada com o filho às costas ou de Ohama estendida no chão de boca vendada após ser violada pelos soldados, que são de uma força trágica aterradora. Ou ainda as cenas entre Genjuro e Wakasa na mansão desta, extraordinárias pela meticulosa mise en scène. Das sombras e luz aos gestos ritualísticos, tudo ali evoca um tempo preso ao passado. O momento em que Wakasa descobre os caracteres de exorcismo tatuados na pele de Genjuro e este confirma que esta é um fantasma é de uma tensão cortante, pelo horror e pela tristeza do estilhaçar daquele sonho de paraíso, cujo mais memorável reflexo é o plano que une a noite ao dia na cena de amor entre os dois.
Ugetsu monogatari é um dos filmes mais aclamados da história do cinema e não é difícil perceber porquê. A sua atmosfera de sonho só é possível no cinema, onde o mais horrível da experiência humana pode coexistir com o mais belo na mesma experiência visual.