Porventura, será preciso contextualizar a importância de Vidas Secas (1963) para a história do cinema brasileiro e, decorrentemente, mundial. Se Rio 40 Graus (1955) havia lançado o Cinema Novo brasileiro, fortemente influenciado pelo neo-realismo italiano, e o nome do realizador Nelson Pereira dos Santos, a consagração (tanto do novo cinema brasileiro como de Pereira dos Santos) surgiria com esta adaptação do livro homónimo de Graciliano Ramos, escritor ligado ao Partido Comunista do Brasil, que descrevia a pobreza de uma família nordestina à procura de uma esperança no meio de um deserto demasiadamente literal para que nele crescesse alguma.
O filme de Nelson Pereira dos Santos, que é mais devedor da corrente literária do neo-realismo do que propriamente do seu correspondente cinematográfico − só no fim, aliás, na epígrafe final, há a indicação de que aquela família poderá ir para a cidade grande juntar-se ao proletariado ou a (in)actividades menos honrosas (como uma espécie de prequela da desgraça que a sobrepopulação dos grandes centros urbanos provocaria no futuro) −, é tão seco como as vidas das personagens: diálogos esparsos, escassa psicologia, poucas explicações, acções contidas, planos longos a documentar as provações.
Vidas Secas começa e acaba com uma caminhada. Na primeira, a meio de uma seca que mata tudo à volta, animais e plantas, Fabiano (ingénuo e meio pateta, pronto a ver o melhor em tudo) e a mulher, Vitória (sabida e orgulhosa, a sonhar com camas de couros), andam à procura de um sítio onde pousar, acompanhados pelos filhos traquinas, muitos novos para trabalhar, e uma cadela, Baleia, pau para toda a obra. Encontram uma casa vazia e um fazendeiro pouco amigável que lhes dá trabalho (ou explora, segundo a perspectiva) na lida do gado (Fabiano é vaqueiro, o cowboy do Nordeste brasileiro, sem o glamour e a qualidade de vida do congénere norte-americano).
As coisas correm menos mal, o que para a família, habituada ao desastre, é o mesmo que prosperar. Tratam logo de arranjar uns fatos domingueiros e uns sapatos apertados para irem à festa da povoação. No entanto, como num film noir, o destino é o destino e as coisas voltam a descambar: reaparece a seca, o sol abrasador e impiedoso (que sobreexpõe o próprio filme), os abutres em volta dos cadáveres do gado que morre de fome e sede. Regressam, sobretudo, o desemprego e a falta de habitação. E lá fecha o filme com uma caminhada tão desoladora como a primeira e com prognósticos tão positivos.
Nelson Pereira dos Santos, que assina também a adaptação de Vidas Secas, nunca põe na boca ou nos pensamentos das personagens qualquer palavra ou consciência revolucionária, apesar da opressão do patrão, da polícia, do sistema que se perpetua. Fala-se apenas de um inferno na terra, cujos motivos são sempre outros: o tempo, os abutres, o azar. A dada altura, parece que os anos de humilhações e as agruras da vida vão explodir em violência ou até mesmo rebelião, mas a revolta acaba por se revelar em pequenos actos de crueldade. Existem, quando muito, uns pequenos assomos de rebeldia. Fabiano responde mal ao fazendeiro, pensa vingar-se do polícia que o maltratou e o mandou para a prisão sem razão, talvez até juntar-se a uns pistoleiros que passam por ali − mas depressa amocha, preferindo virar-se contra o papagaio que nem fala, os abutres, o filho inquisitivo ou a fiel cadela Baleia, que, na morte (o momento culminante de Vidas Secas), até tem direito a planos subjectivos, personagem de corpo inteiro.
O sonho de Vitória é deixar de ser bicho, “virar gente”, no entanto, como Pereira dos Santos mostra ao espectador, tal não será possível enquanto ela e Fabiano (assim como todos os outros como eles) não perceberem que, a continuar assim, estão condenados a repetirem o mesmo percurso uma e outra vez. Por mais que caminhem, nunca irão encontrar outra coisa.