O que liga a série de filmes da Pantera Cor-de-Rosa, Blind Date (Encontro Inesquecível, 1987) e Switch (Na Pele de Uma Loira, 1991) entre si? O realizador Blake Edwards? Certo. Mas, neste mês de cinema no pequeno ecrã, acrescento esta resposta, na ordem certa: Fox Movies, AXN White e Hollywood. Será perda de tempo procurar descortinar concertações ou conspirações cinéfilas em pleno mercado dos “canais cabo”, até porque as comédias de Blake Edwards têm tanto de oportuno quanto de acidental. Elas são, por norma, como escreve João Palhares aqui, comprimidas no tempo e no espaço e, como escreve Ricardo Vieira Lisboa aqui, Edwards é um às a “re-coreografar” os seus gags físicos e a sua comédia de equívocos. Nada equívoca foi a passagem destes filmes de Edwards na antena portuguesa, uma boa maneira de celebrar o primeiro mês de 2014.
Com as citações que aqui convoquei, o leitor já percebeu que falar de Edwards é falar em casa e, como todos sabem, “a casa ganha sempre”. Por falar em casa, torna-se obrigatório deixar claro, desde já, em que medida o cinema de Edwards é também uma proposta de arquitectura, uma arquitectura slapstick que se alicerça, retomando os walshianos Ricardo Vieira Lisboa e João Palhares, na repetição e na concentração. Alguns dirão que pecará por insuficiente, mas para mim a imagem-síntese do seu cinema é aquela do inspector Jacques Clouseau a ser surpreendido pelo seu assistente chinês Cato, com golpes de caraté que testam e atestam o grau de alerta do famoso inspector-chefe da Sûreté. A surpresa existe em A Shot in the Dark (Um Tiro às Escuras, 1964), mas a partir daí produzem-se, até ao absurdo (importante e rara categoria na comédia americana moderna), as mais estrambólicas variações desse embate, que chega a perdurar fantasmaticamente para lá da própria existência física do patrão, interpretado pelo “one and only” (já lá vamos…) Peter Sellers.
A cena de Revenge of the Pink Panther (A Vingança da Pantera Cor-de-Rosa, 1976) em que, num apartamento abaixo, Cato serra um círculo à volta dos pés de Clouseau ilustra bem como, primeiro, o gag de Edwards é arquitectural e, segundo, como sem sair do mesmo sítio (e só assim o círculo cerca) o humor ainda é possível no cinema de Edwards, ou melhor, mais do que possível, é irresistível! O espectador que acompanhou a maratona da Pantera Cor-de-Rosa na Fox Movies [da qual ficou a faltar, por questões relacionadas com direitos de exibição, o terceiro filme da série realizado por Edwards, The Return of the Pink Panther (O Regresso da Pantera Cor-de-Rosa, 1975)] entenderá as palavras de Jacques Lourcelles, no seu magnífico Dictionnaire du Cinéma, referentes ao primeiro – e, a meu ver, mais brilhante – filme da empreitada: “Em The Pink Panther (A Pantera Cor-de-Rosa, 1963), Blake Edwards mistura em boa dose e com grande sofisticação visual, especialmente na utilização do espaço, a comédia de situações, o slapstick, os desenhos animados, o vaudeville e o o non-sense mais delirante”.
Este é o ADN de Blake Edwards ou “Blakie”, nome afectuoso dado pela sua mulher e musa de uma vida, Julie Andrews, por causa do seu muito particular sentido de humor, exercitado tanto no cinema como na vida. Este “lado negro ou negrinho” está presente, desde logo, na radicalização que o seu cinema opera – e as sequelas de The Pink Panther serão paradigmáticas deste gesto – no dispositivo burlesco, fazendo com que, cito Andrew Sarris em The American Cinema, “as suas maiores gargalhadas nasçam de piadas demasiado cruéis para a maioria dos filmes de horror”. Enquanto no slapstick de Charles Chaplin, Harold Lloyd e Laurel & Hardy a violência é reduzida a um efeito de comicidade quase infantil, as personagens de Edwards raramente saem ilesas das suas desastrosas trapalhices. Dito de outra maneira, um tijolo da Keystone não deixaria ninguém sem marcas num filme de Edwards.
Aliás, a partir sensivelmente do terceiro filme da série, nada parece interessar mais que a gráfica re-encenação do desastre burlesco e a exploração cómica dos efeitos de um verdadeiro festival “cartoonesco” de violência [próximo da saga do Coiote e Bip Bip, que surge de relance numa televisão que aparece, ecrã dentro de outro ecrã, no muito evitável Son of the Pink Panther (O Filho da Pantera Cor-de-Rosa, 1993)]. A marca disso, uma marca incontornável, é a visão consecutiva de corpos engessados dos pés à cabeça. O espectador deleita-se com o infortúnio do inspector Dreyfus (interpretado por Herbert Lom, em lições de overacting algo enjoativo), cada vez mais consumido pelo seu exasperante ódio por Clouseau, e ri-se, perdido, das trapalhices e afectações do “maior detective de toda a França” (o facto de Sellers ser inglês não terá “ajudado” a suavizar toda a zombaria anti-francófona).
Em Trail of the Pink Panther (Na Pista da Pantera, 1982), Clouseau, trocando a língua como se tornara seu hábito – o burlesco contamina a própria linguagem, que vira performance -, pergunta ao empregado do hotel se tem uma “massagem” para si. Ora, a “massagem” da série de filmes da Pantera Cor-de-Rosa começa por atacar um mundo feito de aparências. Veja-se como no primeiro filme nada nem ninguém parece estar no seu devido lugar, ao ponto de no baile de máscaras não se perceber quem é quem, como se de facto ninguém sobrevivesse, identitariamente, à masquerade final. Este alto grau de solubilidade do mundo em sociedade encontra na obsessão de Edwards por “coisas em estado líquido” a metáfora visual perfeita. Líquido como a água, líquido como o vinho.
Se pensarmos em filmes como Days of Wine and Roses (Escravos do Vício, 1962), The Party (A Festa, 1968), os vários tomos da Pantera Cor-de-Rosa e outro título que passou na nossa televisão este mês, Blind Date, ficamos conversados quanto à potência mais ou menos simbólica que uma piscina, uma garrafa de gin ou um copo de champagne pode ganhar. Como acontece naquele “encontro cego” entre Kim Basinger e Bruce Willis, se o maldito líquido for ingerido por uma mulher os efeitos podem ser catastróficos! Atenção, não se ria demasiado, porque, no fim, o risco é grande de nada devir mais ridículo do que… você, o espectador passivo na sala escura. “A gargalhada pára mesmo antes de se tornar derisão”, repara Jacques Lourcelles a propósito de Micki + Maude (Micki e Maude, 1984), mas a observação vale para todo o Edwards. A “massagem” satírica tem (apesar do seu estado líquido) a sua dureza, independentemente da comédia física nos embriagar com algumas gargalhadas descomprometidas. No melhor Blake Edwards, uma questão como a solubilidade ou insolubidade social é tratada com um sentido trágico-cómico desarmante, que, no limite, nos põe em sentido.
As festas, microcosmos dessa tragédia/comédia social que é a vida, serão o espaço onde a tal “massagem” de Edwards, com os pés, “à tailandesa”, nos quebra as costas. “Porque é difícil ‘ser eu’ no Mundo”, escreve João Palhares a propósito de The Party no texto acima linkado, “é difícil vencer um mundo que se alimenta de primeiras impressões e aparências. É muito difícil. Somos todos excepções mas alimentamos a regra, o uniforme e o standard“. André Bazin falava do “descompasso” de Chaplin na relação com o mundo, sobretudo no contacto com os objectos mais corriqueiros da Cultura. Ora, Edwards trabalha sobre esse descompasso – dinamita-o! – no meio dos encontros sociais (cegos ou não cegos) e das festas mais pomposas (nesse sentido ou em todos os sentidos, David Thomson, no seu A New Biographical Dictionary of Film, está erradíssimo – quase meté dó – quando reduz um filme como The Party a um mero veículo para os “undisciplined talents” de Peter Sellers…).
Ser obrigado a ser “outra coisa” para ser “alguém” aos olhos de certa pessoa ou grupo de pessoas – é a isto que as personagens resistem de forma aparentemente inocente e é esta a primeira base do típico “switch” chez Blake Edwards. Em filmes como Victor Victoria (Victor/Victoria, 1982) ou, outro destaque deste mês no pequeno ecrã, Switch, alguém vê-se forçado a ser outro “género” de pessoa (um homem e uma mulher, respectivamente) para sobreviver neste nosso mundo faz-de-conta. Contudo, o transformismo não tem de ser sexual, como se constata na série da Pantera Cor-de-Rosa. Em Trail of the Pink Panther, filme realizado após a morte de Sellers mas ainda insistindo na sua presença através de um malabarismo desastrado digno de um… Clouseau; dizia, nesse filme é feita uma homenagem a Sellers que começa, desde logo, com a (in)feliz dedicatória: “To Peter Sellers, the one and only Clouseau”.
O humor sardónico de Edwards vai ao ponto de se torcer por completo a dita frase no tomo seguinte do franchise (ou frenchise, melhor dizendo). Quando Clouseau é prontamente substituído por Roger Moore, em Curse of the Pink Panther (A Maldição da Pantera Cor-de-Rosa, 1983), rodado ao mesmo tempo que Trail… (até aqui vai a falta de vergonha!), fica ainda mais claro que o “one and only” era Sellers. Sellers é insubstítuível, já Clouseau ou a ideia-Clouseau pode ser re(a)plicada funcionalmente num outro corpo. Ricardo Vieira Lisboa nota (no texto acima citado) que esta conclusão, esta sinuosa (tres)leitura de si mesmo, está contida logo no momento seguinte à dedicatória, no proverbial e sempre fabuloso cartoon da Pantera: “Logo aqui a dedicatória implode, já que a pantera toma o lugar do inspector desaparecido vestindo a sua indumentária característica”.
A ideia-Clouseau é, em certa medida, aquela que enforma o melhor Blake Edwards: o choque trágico, patético, entre o “eu” e “o outro”, entre o “original” e o(s) seu(s) duplo(s) (pouco ou muito pouco originais), entre, como se lê no Dictionnaire mondial du Cinéma – sim, estou numa de citar dicionários hoje… -, os “desejos individuais e os aspectos caóticos do ambiente social”. A ideia-Clouseau dita, assim, que a sátira não é o filme, está no filme, isto é, habita-o e anima um ou mais corpos; são os heróis (heróis acidentais? Cego e desajeitado heroísmo?) que geram “a sátira” através de um comportamento descompassado ou, se o leitor preferir o termo, “terrorista”, que faz abalar todas as estruturas sociais e, por isso, nesta casa cinematográfica, falaremos sempre em gags arquitecturais. Não há décor que sobreviva, não há meio/ambiente que aguente a exposição grotesca da sua própria farsa – o “meio é a massagem”, como escreveu, outrossim com boas doses de auto-ironia, Marshall McLuhan. Os heróis ou anti-heróis de Edwards são refractários até em sentido tatiesco [o Tati de Playtime (Play Time – Vida Moderna, 1967)]: eles reflectem a imagem desacertada da nossa vida em sociedade e essa imagem traz consigo uma mensagem, perdão, uma “massagem” que, se não estivermos sob um rigoroso estado de alerta, poderá acabar por nos quebrar a espinha. Cato style.