Depois de filmar Dom Roberto (1962), a concepção do Cinema transfigura-se para Ernesto de Sousa. Influenciado pelos radicalismos que, sem fronteiras, agitam a intervenção artística nos anos 60, encara Almada, Um Nome de Guerra (1969) como um projecto para lá do Cinema. Aproximando-se dos estudos que cruzam artes plásticas e audiovisuais do Grupo Fluxus, um dos mais influentes movimentos de vanguarda da segunda metade do séxulo XX, é pioneiro ao trazer para Portugal o conceito de ‘‘Anticinema’’.
1. ALMADA, UM NOME DE GUERRA (1969)
Trata-se de uma revisão crítica da cultura e arte portuguesas, com base numa das mais extraordinárias das suas personalidades primeiras, o romancista, poeta, pintor e ensaísta Almada Negreiros. (…) É um filme com o Almada e não um filme sobre o Almada. Diríamos melhor: com o nome do Almada, porque efectivamente se trata de “Um Nome de Guerra” (Ernesto de Sousa).
Filme-inquérito. Filme-processo. Filme-acção. Obra aberta. Cinema expandido. Anticinema. Variam os modos de categorizar esta ambiciosa obra mixed-media que, em 1969, tanto avança no pensamento acerca dos fundamentos do Cinema. Tal como Dom Roberto, Almada, Um Nome de Guerra é financiado com capital particular, fora do circuito tradicional da produção de cinema em Portugal. O propósito experimental deste projecto e o espírito underground em que se envolve, rimam com a natureza multidisciplinar de uma obra onde o filme, as artes gráficas, a poesia, a música e a pintura se reúnem para propor um ‘cinema expandido’, integrando o filme num circuito paralelo onde a experiência é enriquecida com outras possibilidades sinestésicas. Múltiplas projecções simultâneas de slides, a voz de Almada, a música de Jorge Peixinho, e filmes em 35mm e 16mm compõem esta intervenção, que absorve dispositivos artísticos previamente utilizados por Ernesto noutros estudos mixed-media, nomeadamente em Nós Não Estamos Algures (1969) e Luiz Vaz 73 (1975). É, nas palavras do seu autor, um filme que pretende ‘‘provocar um processo’’ e continuar-se como uma obra em acrescento incessante, como um convite em aberto a que seja infinitamente reinterpretada por todas as vozes que nela desejem participar.
A propósito do início do ciclo Almada 120 anos, a Cinemateca Portuguesa recebeu em Novembro de 2013 a mais actual das reinterpretações de Almada, Um Nome de Guerra. Acontecimento raro, uma vez que esta obra, cuja produção se iniciou em 1969, estrear-se-ia somente em 1983 na Fundación Juan March, em Madrid, e seria depois exibida em Setembro de 1984 na Fundação Gulbenkian.
Caderno de notas para ALMADA UM NOME DE GUERRA, filmado por Ana Reis, Marta Galvão Lucas e Susana Martins | Junho 2012
1.1. ERNESTO DE SOUSA, UM HOMEM E OS SEUS MANIFESTOS
Artista, téorico, crítico de arte, Ernesto iniciou em meados dos anos 40 uma obra vasta e prolífica, parte da qual permanece até hoje inédita. Os seus cadernos de apontamentos, lugares de actualização permanente ao longo de décadas, são montras da inquietação constante em que Ernesto se movia, e da vocação expansiva de um espírito com um profundo sentido de reordenação de si mesmo, sempre em busca de aprofundar os seus enunciados. A Almada, Um Nome de Guerra corresponde um desses cadernos, onde o estudo laboriosamente se foi acrescentando à medida das mutações da própria obra. Nesta linha de reflexão acerca da revitalização do filme enquanto arte integrada num ‘‘campo expandido’’, encontramos uma outra obra nunca publicada: o manifesto ANTICINEMA, de 1971.
1.1.1. ALMADA, UM NOME DE GUERRA É UM MANIFESTO
É uma experiência de projecção simultânea – a música acontece na sala – e a projecção tem sete ecrãs. Dois a três, conforme os casos, de imagem fixa. E isto permitirá que o filme seja uma espécie de meditação que se passa ao público. E este deixa de ser público, passa a ser participante. Poderá escolher, por exemplo, ter uma atitude diferente de outra, poderá interessar-se mais por umas imagens do que por outras, etc. (Ernesto de Sousa, 1970).
Almada, Um Nome de Guerra desde o momento da sua concepção até à sua apresentação, constitui um autêntico manifesto artístico, quer na longevidade do processo, quer na capacidade de absorção de outros projectos de Ernesto, numa reciclagem que lhe era cara, quer na importância de que se revestia Almada para Ernesto (Mariana Pinto dos Santos, Vanguardas e Outras Loas).
A partir da reconfiguração do cinema, Ernesto de Sousa assume a responsabilidade de um projecto geral de revisão crítica da arte portuguesa, prometendo combater o “infantilismo pseudo-neo-romântico de amor pelo cinema” que ele considerava viver-se em Portugal. Com este ‘manifesto prático’, importará ‘‘uma atitude de anticinema que não é original mas é necessária”, diz, demonstrando a necessidade da anti-especialização e da contaminação entre as artes.
Para dar um exemplo só: o amor pelo cinema e o desprezo pelo teatro, tão comum entre os nossos «jovens» cineastas. Depois de Brecht, e da sua repercussão, apaixonante e discutível, na obra de um Godard; depois dos happenings e do Action Theatre; depois de toda a revolução e meditação propostas pelos dadaístas e neo-dadaístas, e propostas também, num outro meridiano, pela Bauhaus e sua geração; depois de toda esta evidência de uma alteração necessária da nossa relação objectiva com o mundo… (Ernesto de Sousa).
1.1.2. ANTICINEMA – UM MANIFESTO INÉDITO
ANTICINEMA
escrevo este artigo revoltado cada vez me é mais difícil escrever tudo o que obcessivamente e urgentemente
(peço ao leitor que complete as frases como muito bem entender
E a pontuação também
isto não é modéstia é convite a uma outra forma de trabalho colectivo leitura operativa e a culpa é nossa se o leitor preguiçoso) (….)
MAS UMA ARTE COLECTIVA UMA ARTE DE PARTICIPAÇÃO
ARTE ABERTA OU ANTI-ARTE (é o mesmo)
por exemplo o cinema
destruir reconstruir ?)
destruir o cinema
não não como acto gratuito
nem como provocação
(hoje a provocação é uma técnica) (…)
Excerto de ANTICINEMA, Ernesto de Sousa, 1961.
Interpretar o texto ANTICINEMA (pode ser lido na íntegra aqui ) seria desvirtuá-lo. Neste manifesto, onde as frases incompletas convidam o leitor a ser co-autor, num projecto de ‘‘leitura operativa’’, chega já pela forma o princípio que aproxima Ernesto de uma reavaliação integral da experiência cinematográfica, e que prevê modificações nos níveis de criação, exibição e visionamento.
1. 2. ERNESTO DE SOUSA E ALMADA
Uma obra deve ser apenas começada (Almada Negreiros).
Almada é o meu indispensável contemporâneo (Ernesto de Sousa).
Almada Negreiros é, para Ernesto de Sousa, uma referência permanente. Considerando-o um autor central na renovação das vanguardas em Portugal, encontrar-se-á com o seu lastro de dissidência como não se encontrou com nenhum outro artista português da sua geração. Na ambição de Ernesto de prolongar a figura em que se revê, não cessa de perseguir a acção constante, à semelhança de Almada, em busca de ‘‘ser absolutamente moderno’’.
Assim, a postura de Ernesto enquanto artista situa-se num lugar de estranheza: se está de olhos postos na segunda geração das vanguardas e na cena internacional, permanentemente disposto a pôr em teste todos os esquematismos e convenções, busca, ao mesmo tempo, dar continuidade a modelos do seu mestre Almada, artista em que nenhum dos seus contemporâneos se revê.
Almada, Um Nome de Guerra surge então como a materialização deste encontro de gerações. Uma plataforma mixed-media onde a obra e a figura de Almada se actualizam pela forma conceptual. É afinal de Ernesto de Sousa que se fala, e da vitalidade da sua permanente atitude de dissidência, “”não-alinhada”” e alheia a sistematizações.
Observar a obra observando-se a si próprios (Marta Traquino, A Construção do Lugar pela Arte Contemporânea).
1.3. “EXPANDED CINEMA”
Através do cinema sensorial o indivíduo procura exprimir um fenómeno total – a sua própria consciência (Gene Youngblood, Expanded Cinema).
Ao longo da sua carreira, a obra de Ernesto de Sousa é o elo de contiguidade entre Portugal e o panorama estrangeiro. Apesar de ter sido, à época, acusado de seguidismo pela crítica de arte, o contributo da sua (in)formação permanente sobre a experiência internacional seria decisivo até junto de outros artistas portugueses. A participação cívica de Ernesto é indissociável desta partilha. A redacção da revista Imagem e a actividade cineclubista são contributos fundamentais para a formação cultural de uma geração que, num país tolhido pela ditadura, tanto beneficiará da sua permanente pesquisa, viagens, referências e contactos.
Estamos em Portugal, nos fins da década de 60. Tardio, o Cinema Novo só agora arranca com expressão, e, com ele, um fôlego de juventude e um experimentalismo inspirado pela nouvelle vague concentram-se na tão necessária revitalização do cinema português. De onde surge então o radicalismo desconstrutor da abordagem de Ernesto de Sousa em ANTICINEMA (1971)?
1.4. ANTI-CINEMATECA 2
Pormenor das notas finais para ALMADA UM NOME DE GUERRA. Pode ler-se : “A designação de ANTICINEMATECA 2 constitui um acto de camaradagem para Broodthaers, e a sua Anti-Cinemateca de Dusseldorf.
Marcel Broodthaers é o mais directamente convocado, e o seu processo pioneiro de repensamento das estruturas museológicas, à imagem do ímpeto transgressor das neo-vanguardas, é um dilema em que Ernesto de Sousa encontra eco. Assim, nas notas para Almada, Um Nome de Guerra, idealiza uma Anti-cinemateca 2, “um organismo cujo fim principal é a utilização dos meios fílmicos e outros para a destruição do cinema como cinema e da arte em geral””. Marshall McLuhan também está presente. Não esquecendo a sua máxima de que “o meio é a mensagem”, a liberdade do canal em que a obra chega é, não só a libertação do seu conteúdo, como a enfatização do próprio acto e participantes do processo de comunicação. Preceitos incorporados pelo ‘‘pensamento prático’’ do Grupo Fluxus, colectivo internacional com que Ernesto de Sousa teve contacto a partir de 1966, e de quem mais se aproximará nos anos seguintes.
2. GRUPO FLUXUS
De facto, vivemos tempos adequados para voltar a avaliar o legado que o Grupo Fluxus deixou à contemporaneidade. Entre as décadas de 1960-1970, o que começou por ser título de uma revista colectiva transformou-se num movimento que agrupou homens e mulheres de nacionalidades e artes distintas, em busca das novas formas. A expressão multiplica-se entre happenings, performances, fotografias, ilustrações, cinema. Nasceu em 1961, no Festival Internacional de Música (em Wiesbaden, Alemanha) sob a liderança de George Maciunas, e integrou nomes centrais como John Cage, Joseph Beuys, Wolf Vostell, Nam June Paik, Ben Vautier, Yoko Ono, George Brecht, entre outros. Percebidos e interiorizados os dadas e o ready-made, a arte conceptual lança-se à procura de outro lugar para si, onde vai aproximar-se da vida e confundir-se com ela. Em espaço real, em tempo real.
2.1. FLUXUS CONTRA AS GALERIAS
Happenings, instalações, intervenções Land Art… Os espaços públicos ou naturais são os campos de acção do artista, a vida quotidiana quer-se perpassada pela arte. A ênfase do processo enquanto criação artística transforma cada experiência num acontecimento único e irrepetível, directamente dependente do espaço (site-specific) e dos espectadores. Esta arte acontece como uma experiência sensorial impactante no espectador, que toma parte integrante na própria obra. Com a libertação pela anti-arte, procura-se um campo expandido, a ideia de que o tempo (duração) está necessariamente implicado neste processo de recepção artística. As propostas artísticas apresentam-se em múltiplos media como obras abertas, inacabadas, oscilantes e sem fronteiras.
2.2. FLUXUS CONTRA A SOCIEDADE
Rejeita-se a fixidez do objecto de arte acabado, apto a circular no mercado das galerias e dos museus. É a subordinação à sociedade de consumo o que se critica, reflectindo acerca da função social e do dever dos artistas em serem politicamente participantes, espírito importado do construtivismo russo. Questionando os efeitos do capitalismo na estrutura das relações humanas e procurando eliminar as hierarquias da sociedade que o panorama da arte replica. Também as vagas minimalistas e abstraccionistas têm uma influência fundamental no Grupo Fluxus, nomeadamente na busca de integração da obra/medium no espaço e no envolvimento do espectador no processo criativo, convocando a necessidade da sua presença e concedendo-lhe performatividade.
2.3. FLUXUS CONTRA O INDIVIDUALISMO
Redefinidos os estatutos de artista e espectador, com o Grupo Fluxus enfatiza-se a produção colectiva e derruba-se a hierarquia decorrente do status do autor. Lia-se num dos seus manifestos (1971) que ‘‘o artista deve demonstrar que qualquer coisa pode substituir a arte e que qualquer pessoa pode fazê-la. (…) A arte deve ser ilimitada e eventualmente produzida por todos”. Por conseguinte, o sentido da arte será adicionado pelo espectador, implicado num projecto de emancipação, numa redefinição do conceito de experiência.
Qualquer coisa pode substituir a arte (MANIFESTO FLUXUS).
2.4. FLUXUS CONTRA A ORDEM
É vital contestar as ordens estabelecidas, desconstruir as legendas, as coerências e todas as narrativas com que o paternalismo e o conservadorismo edificam uma arte ordenada entre respostas. O Grupo Fluxus, entre as suas várias nuances, é atravessado por um fôlego anárquico que deixa antever um projecto de reconstrução do mundo.
2.5. FLUXUS PELA ARTE CONCEPTUAL
Recusando o lado hipnótico e paralisante do espectáculo, George Brecht lança as fundações da arte conceptual ao defender que um minimalismo deve guiar a criação e focar-se no conceito mais do que na sua expressão .
2.6. FLUXUS CONTRA AS DISCIPLINAS FECHADAS
Apesar de existirem enquanto colectivo acompanhado por manifestos vários (tentados por Maciunas e não aprovados pelos restantes), o movimento Fluxus foi difuso e polifónico e, se houve um programa comum, foi o de examinar os limites até então conhecidos da arte e propor a necessidade da sua expansão.
John Cage foi um dos nomes de maior destaque. A experiência das suas aulas encorajou outros membros do Grupo Fluxus (Kaprow e Higgins, por exemplo) a encarar as ideias como substância permeável a todas as formas de expressão artística. Exploravam métodos de composição integrando o acaso e, à semelhança da natureza, propunham formas abertas ao imponderável. A inclusão da audiência no processo criativo e o estímulo da sua atenção conhece o seu exemplo de referência na famosa peça 4’33’’ (escrita por Cage em 1952). Nesta peça conceptual indispensável à arte do século XX, propõe a rotura da dicotomia som-silêncio, definindo o silêncio como uma ausência de sons intencionais.
O chapinhar dos meus pés nas minhas botas molhadas tem um som mais bonito do que uma elegante música de orgão (Dick Higgins, A Child”s History of Fluxus, 1979).
2.7. FLUXUS PELO GLOBALISMO
Uma rede internacional de correio estimula a interaçcão entre os artistas e coloca em diálogo investigações convergentes. Afim ao projecto Fluxus, surge a mail art (com Ray Johnson) que prevê o envio de trabalhos em pequena escala através do correio.
2.8. FLUXUS PELO EXPERIMENTALISMO
A postura do Fluxus inspira-se no método científico para enfatizar a atitude crítica como a postura a manter. Experimentar incessantemente, mudando de processo a partir dos resultados é o mote, convocando permanente a adição de outras vozes e colaborações.
3 . DESMATERIALIZAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
Pela primeira vez, imagens de arte tornaram-se efémeras, omnipresentes, não substanciais, disponíveis e sem valor (John Berger).
Avaliar hoje as várias vozes do legado Fluxus e do projecto português de Ernesto de Sousa é evocar a urgência de regressar a um pensamento transgressor acerca das estruturas convencionais da arte. Assim, detalhar as fundações destes radicalismos é estudar a necessidade de um programa teórico sólido que avança entre movimentos de construção, de destruição, de reconstrução (apesar dos relativismos em que o pensamento estético se suspende sobre a contemporaneidade, ao de leve suspeitando que se esgotou o lugar para o novo, está ainda tudo por fazer). Outros exemplos poderiam ter sido evocados para demonstrar como a história da arte recente tanto beneficiou da convergência multidisciplinar de artistas, enriquecendo o debate entre afinidades e colisões.
Se a ironia dos movimentos anti-arte é que acabam a ser absorvidos como vagas artísticas pelo vício sistematizante da historiografia, porque é que nos programas de estudo de História do Cinema não se encontra uma linha sobre o anti-cinema, sobre a herança dos seus princípios desconstrutores? Hoje, é urgente combater o umbilicalismo vão dos estudos sobre cinema e facilitar o acesso à história e à teoria da arte, à procura de uma maior proximidade ao exercício crítico.
4. UMA NOVA ERA DO “CAMPO EXPANDIDO”
4.1. A CHEGADA DO VÍDEO
O baptismo da vídeo-arte chega com a cassete de vídeo analógica, a mais comum das formas de trabalhar em vídeo até à era digital, onde é substituída por discos rígidos, cartões de memória, CDs e DVDs. Várias categorizações teóricas aproximam a vídeo-arte do Anticinema, mas em todas as liberdades do seu distintivo descompromisso são observáveis as convergências do medium às qualidades do cinema de autor, experimental e avant garde.
O Grupo Fluxus desempenha um papel dianteiro nesta pesquisa, produzindo entre 1962 e 1970 uma série de 37 Flux Films, filmes numerados e organizados entre si, feitos em vídeo e em filme por vários artistas (disponíveis para visionamento no UBUWEB). Nam June Paik, associado ao Grupo Fluxus, faz o primeiro Flux Film (Zen For Film, 1962). Experimenta a manipulação da televisão na Galeria Parnass em Wuppertal, em 1963, e é comummente tido como o precursor da vídeo-arte. Com a então recente Sony Portapak, uma das primeiras câmaras de vídeo portáteis comercializadas, filma a procissão do Papa Paulo VI e, no próprio dia, exibe-a no Café-au-Go-Go, em Greenwich Village. As potencialidades do vídeo face ao filme eram imensas : o playback instantâneo, a ligação directa ao monitor/televisor, a possibilidade de justapor várias imagens em movimento simultâneas em múltiplos canais, e de outros truques simples de mistura.
Wolf Vostell, outro membro do Grupo Fluxus, é o primeiro a incorporar o televisor num trabalho seu, a instalação Black Room Cycle (1958), a que se seguiram Transmigracion 1-3, 6 TV Dé-coll/age e, em 1963, o Flux-Film #23, Sun in Your Head.
4.2. OS ECRÃS ININTERRUPTOS DE WARHOL
O espectáculo não é uma colecção de imagens, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por imagens… (Guy Débord, A Sociedade do Espectáculo).
Ciente do poder da sociedade do espectáculo em que vivia, Andy Warhol importa os bens de consumo popular, as vedetas e os dispositivos de mass media para dentro das telas, sob a forma de gigantescas impressões reproduzíveis, pioneiras em trazer para a galeria a iconografia quotidiana da sociedade de consumo. Apesar das pequenas experiências com o cinema enquanto estudante no final dos anos 40, não foi senão em 1963 que Warhol começou a fazer filmes seriamente. Uma primeira aproximação ao filme entre 63/64 resultou num conjunto de filmes minimais, longos, estáticos e sem intervenção do realizador : Sleep (1963), 321 minutos, Kiss, Haircut (1963), 35 minutos, Blow Job, Eat, Empire (1964), 485 minutos e Henry Geldzahler (1964). A sua obsessão pela gravação não interventiva era tal que era frequente haver câmaras e gravadores ligados na Factory prontos a documentar o quotidiano no atelier colectivo fundado por Andy. A consciência da narratividade que vive nos gestos mais banais e a prolongada duração das obras, por vezes exibidas em slow motion, são sintomas de uma procura da constituição da obra-de-arte na ‘‘verdade’’, tentando a simulação extensiva dos ritmos da vida real através do dispositivo cinematográfico, assim conseguindo, numa preocupação comum ao Grupo Fluxus, criar lugares onde as presenças da arte e da vida se encontrem, simultâneas. Em 1965, a revista Tape Recording empresta a Andy Warhol uma câmara de vídeo e um gravador de cassetes Norelco, então invenções recentes que ele poderia experimentar durante um mês em troca de uma entrevista em exclusivo acerca das novas possibilidades. Desta experiência resultaram os Factory Diaries, que mostram o dia-a-dia na Factory e, cinco anos depois, altura em que estava mais interessado nas possibilidades de difusão ininterrupta da televisão do que no cinema, Warhol adquire uma Sony Portapack (à semelhança de Nam June Paik), com a qual filma uma nova série dos Factory Diaries (1971-76).
Mas é com Inner and Outer Space (1966), uma experiência protagonizada pela sua musa Edie Sedgwick, que Warhol mais avança no seu contacto com o vídeo. A imagem que se multiplica por vários ecrãs procura diálogos e repetições, dessincronias e representações duplas. Para isso, duas câmaras de 16mm filmam simultaneamente dois ângulos do rosto de Sedwick, que está acompanhada pela sua própria imagem transmitida em videocassete para um televisor atrás de si – e é como se dialogasse consigo própria.
Ernesto de Sousa terá contactado com a obra cinematográfica de Andy Warhol, numa pequena retrospectiva no Rex Cinema em Londres, dedicada ao artista, em 1969, e ficaria siderado com o gesto pioneiro de libertação da experiência do espectador a que corresponde o continuum das projecções de Warhol, possibilitando-lhe viver o cinema ao seu ritmo, ausentar-se e regressar à sala, etc.
4.3. DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AO VÍDEO
No princípio da década de 80, a comercialização de vídeo-câmaras portáteis (herdeiras das Super 8) é decisiva na democratização e domesticação do acesso à captação simultânea de som e imagens em movimento (por isso chamadas de camcorders = camera recorder) – que a revolução digital viria massificar. Em simultâneo, é nesta era da internet que o continuum das imagens parece tornar obsoleto o autor e se cumpre como um “campo expandido” ao infinito.
5. HOJE : MAIS PRÓXIMOS DA ARTE, MAIS LONGE DO DINHEIRO
Quais as superfícies em que os artistas pintarão para a maioria do povo? (Ernesto de Sousa)
Quando a escala sem-fronteiras da sociedade de consumo já produziu suficientes objectos para sufocar o globo na sua própria obsessão material, talvez em nenhuma outra época tenha sido tão premente discutir se o artista tem afinal o dever moral de deixar finalmente de produzir objectos, de procurar outros suportes para materializar a sua arte.
5.1. DO GRAFFITI AOS TORRENTS
Hoje, nas qualidades da vida digital se cumprem sonhos de décadas de investigações estéticas. Aqui se celebram as previsões de Barthes de uma democratização do acesso à obra de arte pela técnica. Aqui se concretizam em pleno as hiper-redes internacionais que aproximavam os artistas da mail art. Aqui se decalcam as aspirações de performatividade em direcção a um ‘‘espectador-emancipado’’ procuradas com o anticinema. Aqui, as possibilidades da matéria digital, o suporte reproduzível que não implica a existência do objecto herdam a “desmaterialização” com que o happening criticou o mundo materialista.
E se a revolução do acesso à internet libertou a arte do elitismo do mercado da arte e dos circuitos de exposições e colecções, do mesmo modo, há décadas que a obra de arte saiu do museu para as ruas onde graffiti, stencils, stickers e posters se prolongam como um manto crescente de que o autor se ausenta. Street-artists e ciberpiratas caminham hoje de mãos dadas pela emancipação da arte. A street-art nasce e prolifera fora dos contextos convencionais, alimentada pela vontade e obstinação de anónimos e pseudónimos. Subvertendo a opressão da propriedade privada e do controlo, as ruas são reclamadas pelos artistas urbanos e feitas palcos de activismo, de participação, de comunicação. Integrando o espaço público a que se dirigem, é sobre a realidade que falam, contornando a tendência dos círculos artísticos de orbitar sobre si em entre-referências. Longe de um vício social de egos e vaidades, a ênfase da arte urbana é a acção : os street-artists correm riscos, são independentes e suportam os próprios custos, procurando imediaticidade e eficácia. Popularizada nos anos 80, a street-art é herdeira da arte conceptual e do muralismo, veículo indispensável da mensagem revolucionária no México de Orosco, Rivera e Siqueiros (1910). Estudioso da arte popular, Ernesto de Sousa encarava o muralismo como uma forma de devolver a arte às massas.
Na internet, uma libertação condizente. Entre uploads e downloads, a internet move-se ao ritmo dos seus milhões de utilizadores e adquire vida própria. Em vão se disputam direitos autorais que não condizem com o princípio de partilha da era. Às nossas mãos, o cinema chega em MPEG, MKV, MP4, longe das limitações do objecto DVD ou VHS (o problema dos honorários – quem recebe o quê e quando – existe mas não pensamos nele. Não foi Warhol quem nos ensinou nos anos 60 que o objecto artístico existe para ser reproduzido?). Entre vagas de partilha e de criação artística em que o dinheiro não participa, é a comunicabilidade que vence. Estamos um passo além da democratização do acesso à obra: a activação do espectador-virtual liberta a arte integrando-a, tornando-a matéria de infinitos caminhos de interpretação, reflexão, citação, reapropriação. São as limitações que se suplantam em direcção a uma nova forma de ver. Uma forma talvez mais didáctica, mais democrática, mais adequada à vocação humana de sempre aprender.
Estará no underground da pirataria e da street-art a qualidade mais meritória da arte contemporânea – um espírito desinteressado e, por isso, mais puro e mais próximo de um princípio de criação e de partilha?
Os torrents educam-nos tanto quanto a biblioteca. Na sua natureza transitória, são o novo arquivo da contemporaneidade, disponibilizando gratuitamente filmes, música, e-books. Uma rede de vestígios, documentos e história recente a que podemos aceder quase instantaneamente. E quando Giorgio Agamben pergunta “de quem somos contemporâneos?”, de imediato responde aquilo que Ernesto de Sousa soube dizer de outra forma: somos contemporâneos dos autores que nos acompanham.
A wall is a very big weapon. It”s one of the nastiest things you can hit someone with (Banksy, Banging Your Head Against a Brick Wall).
Agradeço as preciosas colaborações de Paulo T. Silva e Isabel Alves para a escrita deste artigo.