Era a escola C + S do cinema dos anos 90. O menino Kusturica percebeu que sacava mais miúdas se fizesse música e hoje anda aí de charuto na boca e guitarra na mão. O menino Kitano batia em toda a gente e escolhia as formas mais originais de infligir dor; por causa disso, desde o final da década está virado para a parede, de castigo. O menino Araki levava os outros meninos para trás do pavilhão e eles até gostavam. O menino Kaurismäki sempre fez o que quis, foi o primeiro a fumar e consta que até tinha um disco dos Cramps em casa. E o menino Tarantino era um bocado marrão mas tinha tão boas notas que lhe deram uma bolsa de estudo e hoje deixam-no fazer o que ele quiser.
Mas o menino Hartley era diferente. Quando o chamavam para jogar à bola, ele recusava, dizia que tinha de estudar. De pouco servia, pois tinha sempre negativa. Mas ele sabia que ia ser grande, mesmo que só ele o soubesse. Ainda haviam de o achar o Godard de Olival de Basto, o Ferrara de Cantanhede ou o Jarmusch de Figueiró dos Vinhos.
Um dia, circa 1994, estava em casa a lamentar a sua falta de amigos e o fracasso das suas primeiras tentativas, quando se lembrou daquela citação do senhor professor Cassavetes, já não se lembrava quem era o autor, de que um filme era uma rapariga e uma arma. “Eureka!”, disse. “Pode ser um filme, mas o professor Cassavetes não disse que tinha de ser um bom filme!” E então, com uma caneta bic e um caderno comprado no Minipreço, num arremedo pessoano, em pouco tempo escreveu uma história de uma ninfomaníaca virgem saída de um convento que encontrava um tipo amnésico e a partir daí começavam a tentar descobrir a identidade dele, até que se tornava claro que ele era um pornógrafo que perseguia as meninas e fazia muito mal à esposa. Pronto, não era muito, até a história do amnésico dava-lhe um ar de noir da treta, mas havia também por lá um tipo, talvez um contabilista, com um ar alucinado que até levava uns choques eléctricos e uns assassinos com ar de empresários… não sabia muito bem, mas desde que arranjasse uma actriz francesa cansada de fazer bons filmes, um actor monocórdico e uma actriz que, bem aproveitada, podia até fazer umas expressões engraçadas, tudo correria bem. Não interessava muito o que fizesse, desde que parecesse haver aqui questões identitárias, subversão de género e re-invenção estética e desde que, nem que fosse por pouco tempo, parecesse ser um visionário. E sonhou com a glória dos rebeldes, com a independência dos corajosos e com a glória dos diferentes.
A coisa não correu muito bem. Hoje, o menino Hartley, já cheio de cabelos brancos que nunca lava nem penteia, vagueia pela Amadora com um maço de folhas na mão, a gritar “EU SOU O MAIOR, EU SÓ FAÇO OBRAS-PRIMAS, VOCÊS É QUE SÃO TODOS BURROS!” O mundo continua e apenas uma Cinemateca depauperada em Lisboa irá mostrar, por duas vezes, o filme a que tão ironicamente chamou Amateur (Amador, 1994). O público, esse, não deverá nunca abandonar a Cinemateca, embora, se respeitar a sua saúde mental, se refugie sagazmente na outra sala.