Apenas duas semanas após a estreia do último Martin Scorsese, aí está novo filme do realizador italo-americano. Ou assim parece. Na crítica a The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013), escrevia que Scorsese era um dos grandes candidatos à vitória no concurso de melhor imitador de Martin Scorsese, mas o grande vencedor, e por larga vantagem, é David O. Russell.
Nos anos 90, quando era um dos meninos queridos do cinema independente norte-americano e nada fazia prever que fosse reencarnar Scorsese, David O. Russell fez um par de excelentes filmes [só não conto com Spanking the Monkey (1994), porque não o vi]: Flirting with Disaster (1996), a grande comédia screwball da segunda metade do século XX com a magnífica Téa Leoni; e Three Kings (Três Reis, 1999), uma caça ao tesouro no fim da Primeira Guerra do Golfo, que antevia já a Segunda. À entrada deste milénio, a cotação de O. Russell era alta: só faltava a absoluta confirmação de um talento que era bem mais do que uma promessa. Presume-se que o próprio nunca tenha querido que I ♥ Huckabees (Os Psico-Detectives, 2004) fosse a consagração anunciada: uma comédia tão esdrúxula jamais poderia agradar a gregos e troianos, quanto mais a espartanos. No entanto, tais desastre financeiro e má recepção crítica não eram, de todo, expectáveis. Mais tarde, apareceriam dois vídeos das filmagens de Huckabees no YouTube que revelavam o péssimo feitio de O. Russell. Num deles, grita obscenidades à actriz Lily Tomlin (bitch e outro mimos) e parte alguns adereços do cenário. Nessa altura, muitos se lembraram de que o realizador tinha andado à pancada com George Clooney na rodagem de Three Kings, quando o actor tentou defender um figurante da sua fúria.
Depois de fazer o seu melhor filme (e uma das melhores comédias das últimas décadas), David O. Russell estava acabado. A cólera ainda era desculpável. O insucesso, não. Mas essa má reputação terá servido como desculpa para não lhe darem trabalho durante seis anos. Só voltaria a filmar um tanto por acaso, depois de Martin Scorsese ter recusado e Darren Aronofsky desistido de The Fighter (The Fighter – Último Round, 2010), um projecto que Mark Whalberg acalentava há uns anos (Whalberg, que havia participado em dois filmes de O. Russell, não deve ter ficado marcado pela experiência). Não se sabe se pelo facto de o argumento ter sido escrito a pensar em Scorsese ou por o tema recordar Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), o certo é que data dessa altura a primeira aproximação de David O. Russell ao universo scorsesiano: os mesmos travellings esvoaçantes, a mesma montagem frenética, um certo gosto pelo excesso, por personagens mais ou menos grotescas (maiores do que a vida), o mesmo sentido de comunidade na mesma Boston que Scorsese havia filmado em The Departed (The Departed – Entre Inimigos, 2006) [e Christian Bale até perdeu os mesmos quilos que Robert De Niro em Raging Bull]. Estranhamente, a Academia escolheu esta ocasião para se pôr aos pés de O. Russell. Nomeado para seis categorias, o filme conquistou dois Óscares, para Actor Secundário (Bale) e Actriz Secundária (Melissa Leo). O. Russell afirmava-se, assim, como um grande director de actores. O filme seguinte, Silver Linings Playbook (Guia para um Final Feliz, 2012), veio apenas confirmar essa nova respeitabilidade de David O. Russell – foi nomeado para oito categorias e garantiu o Óscar de Melhor Actriz para Jennifer Lawrence. O que não deixa de se estranhar, visto que o filme era de tal forma histriónico que era mais paródia do que propriamente um filme para se levar a sério. Era uma versão exageradíssima da comédia romântica, que, a partir de certo momento, deixava sequer de fazer sentido. Como se O. Russell estivesse a esticar a corda a ver até onde poderia ir.
American Hustle (Golpada Americana, 2013) é a súmula desta segunda vida de David O. Russell – não é por acaso que junta alguns dos actores principais dos dois filmes anteriores: Christian Bale e Amy Adams; Bradley Cooper e Jennifer Lawrence. A The Fighter, vai buscar o pseudo-Scorsese; a Silver Linings Playbook, a histrionice.
Consegue ser mais Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) do que The Wolf of Wall Street. Tem voice-overs para todos os gostos, cocaína a rodos, canções a dar com um pau (o disco sound da época em que a acção decorre), planos que se arrastam atrás dos actores e depois se viram repentinamente, mafiosos e polícias, paranóia, excentricidade, Robert De Niro, personagens à beira de um ataque de nervos. Segundo Louis C.K., que tem um papel secundário no filme (e uma das interpretações mais comedidas), o método de O. Russell na direcção de actores consiste em agachar-se atrás de algum adereço para gritar indicações aos intérpretes (bigger! more!), levando-os a um histerismo que muita gente parece confundir com “grande interpretação”. E, diga-se, sabe fazer o seu casting: Christian Bale, de careca e cabelo postiço, ensaia uma imitação bastante bem conseguida de Robert De Niro (que aparece numa única cena, menos De Niro do que este); Bradley Cooper (de permanente) perde completamente as estribeiras e mal consegue parar quieto: Jeremy Renner é, sobretudo, uma poupa gigantesca (a caracterização extravagante tem um papel principal nisto tudo) e uns trejeitos de Nova Jérsia; Jennifer Lawrence é perfeitamente obnóxia, uma bruxa mamalhuda; Amy Adams, mais restringida (o que não se pode dizer dos seus decotes), faz o pior sotaque inglês da história do cinema. Claro que isto é tudo propositado, aliás, é o que Paul Schrader chama stunt performance e considera ser das poucas formas de os filmes se destacarem no meio de tantas solicitações para o espectador. Não sei se tem razão (e duvido que isso signifique que 2013 foi um grande ano para a história do cinema), mas todo este excesso não deixa de ser divertido, se bem que se vá tornando enjoativo.
Emulando a sua história, American Hustle é uma vigarice pegada cuja vítima tanto poderá ser o espectador, a Academia, ou até o próprio realizador. Ao contrário do que o título indica, não propõe qualquer discurso sobre a América, nem isso lhe interessa especialmente. Aliás, brinca com a noção de “moral da história” – nunca se saberá qual a intenção da personagem de Louis C.K. ao começar aquela narrativa sobre a pesca no gelo. Nesse sentido, é completamente vazio. Por outro lado, o desregramento serve para ofuscar algumas coisas interessantes, como o retrato dos outros borroughs de Nova Iorque (Brooklyn, Queens) e de Nova Jérsia (o desprezado estado vizinho), das suas gentes e idiossincrasias (O. Russell é nova-iorquino e tem algum prazer em mostrá-las). American Hustle é mais um exercício de auto-sabotagem (David O. Russell a brincar ao cinema) que inesperadamente (ou nem tanto) granjeia grandes louvores para o seu realizador (e é uma vez mais favorecido pela Academia: dez nomeações). Este, imagina-se, continuará, até partir a corda, a fazer piretes à indústria, à Academia, à crítica, aos actores, aos espectadores, e a toda gente que lhe apareça à frente.