Como todos os filmes, Dallas Buyers Club (O Clube de Dallas, 2013) começa no negro. Dele surgem as primeiras letras dos créditos e antes que possa surgir o título do filme ouvimos uma respiração, arfante. Começamos por ver uma bandeira americana a ser transportada por uma cavaleira numa arena de rodeos mas a perspectiva de onde a vemos é estranha. Cedo percebemos que estamos em plano subjectivo de dentro de uma das cabines de onde são libertados os bois e seus cowboys e que o olhar que canalizamos é o de Matthew McConaughey. Ele não está só, na cabina – mal iluminada por fitas de luz que passam as grades metálicas – faz-se acompanhar por duas mulheres que fode à vez. Se começávamos o filme pelo olhar de McConaughey aí não voltaremos tão depressa porque poucos segundos passam até que a câmara de Jean-Marc Vallée se fixe no olhos do actor (desfigurado e carcomido) para não mais os largar. McConaughey não olha as mulheres que come, os seus olhos estão presos nos cavaleiros que vão sendo sacudidos no dorso das bestas enfurecidas. Um cai ao chão, é atacado pelo boi raivoso, McConaughey vem-se. Em poucos segundos resume-se a linha que conduzirá o filme, esse veio que junta a morte e o sexo lado a lado. Pena que seja só aí, nesses primeiros segundos de filme, que tal simplicidade narrativa e simbólica confluam amenamente.
Essa abertura fazia prometer um filme onde o simbólico (a aventura nas costas de um boi como metáfora do sexo desprotegido) se tornava literal e os subtextos eram a matéria do filme. Nada disso se verifica, já que à medida que os minutos vão passando o programático do filme é cada vez mais notório, típico melodrama esperançoso de Hollywood onde, apesar da aparente sujidade (os manhosos motéis, as doses tomadas nas traseiras, as seringas e as bebedeiras de cair para o lado), tudo caminha no sentido de apresentar um herói de consciência e moral inatacáveis – mais ainda por ser caso provado da natural resiliência americana.
Mas, antes de lá chegarmos, apetece-me escrever sobre The Lusty Men (Idílio Selvagem, 1952), o filme de Nicholas Ray de que ele próprio mais gostava. Já não o via há anos e ver este Dallas trouxe-me à memória uma série de planos (coisas dispersas – um corredor, um reflexo num vidro, uns sorrisos de despedida) e de ideias sobre a (homos)sexualidade reprimida na relação entre Robert Mitchum e Arthur Kennedy. Nesse sentido o trabalho de Ray é muito mais delicado que o de Vallée, no sentido em que Ray se permite insinuar sobre a sexualidade do seu protagonista sem que isso lhe retire o peso nem a dignidade (como poderia?), ao passo que para Vallée tudo se resume a construir um personagem homofóbico – que destila testosterona – apanhado pela praga da SIDA quando essa era vista como uma síndrome própria da comunidade dos faggots. O que se pretende é desenhar um arco narrativo de redenção (tão esquemático que a conversão se dá num par de cenas especificamente construídas para isso – a massagem à cãibra e o jogo de cartas na cama do hospital) onde o homofóbico se coloca na pele dos que desdenha e assim passa a compreendê-los e, claro, a defendê-los (e assim se confere dignidade e peso ao protagonista). Este é o programa moral do filme, mesmo a jeito de tocar os pontos sensíveis das audiências que se aquece com estas histórias de queda e superação.
Mas regressemos a Idílio Selvagem (que podia muito bem ser o título de um porno gay de vacaria – assim como The Lusty Men). Quando Susan Hayward (a mulher de Arthur Kennedy) chega pela primeira vez ao acampamento de um rodeo, põe-se à conversa com uma das outras esposas, mais experiente e mais calejada (porque as maleitas dos maridos são tão ou mais profundas que aquelas que as mulheres sentem, da plateia), que a avisa: não deixes o teu marido cavalgar bois, he rides one, he’ll keep on ridin’. A day will come when a bull will step him and scar him and he’ll have to show everybody that he ain’t scared, but he is. He’ll start drinking to hide it, a pint of whiskey, two pints, play cards, dices, everything to hide how frightened he is. Esta é a mesma trajectória que o personagem de McConaughey segue, as drogas, o álcool e o tabaco a rodos, o dinheiros ganho em falcatruas e intrujices, o sexo louco e raivoso, tudo isso serve para mostrar aos outros, e mais ainda a si, que ele não tem medo da morte – ainda que ela o ande rondando (os médicos dizem-lhe que só tem 30 dias de vida) – e que não é um faggot. Estratégia contraproducente já que acelera o seu declínio. Mas, mais uma vez, tudo se resolve com um médico milagreiro (e também caído em desgraça e recuperado pelo gosto de trabalhar e ajudar os outros) do lado de lá da fronteira que o cura com boa vontade e um cocktail de suplementos vitamínicos e demais produtos injectáveis não aprovados pela FDA – que é o equivalente ao INFARMED pelas terras dos tio Sam. Regressa aos States mudado e com uma vida regrada, uma alimentação cuidada e uma luta de David vs. Golias a travar com as farmacêuticas e o órgão de regulação e supervisão estatal.
Sim, este é o outro passo na sacralização do personagem de Matthew McConaughey – Ron Woodroof – que além de redimido dos seus pecados de discriminação irracional é agora pintado como um single man against the system. Jean-Marc Vallée e os argumentistas Melisa Wallick e Craig Borten passam por um período dramático da história moderna sem no entanto darem a entender (a não ser em referências muitíssimo obscuras) que Woodroof não estava sozinho como era apenas parte de um movimento pelos direitos civis dos homossexualismo que incluiu o ACT UP ou o AIDSGATE; aliás, porque tal enquadramento histórico retiraria a aura crística que se tenta construir.
Há, no entanto, algo curioso no filme – mas que na recta final se quebra a bem da bondade e caridade cristã -, o clube de Dallas (nome pelo qual foi conhecido sistema criado por Woodroof para fornecer medicamentos não aprovados nos EUA aos seus “sócios”) e a forma como, apesar de estarem prestes a morrer, McConaughey e Leto (o seu business partner, um transexual que conhece no hospital nos tratamentos experimentais das primeiras drogas de combate ao VIH) vêem em tudo isto uma oportunidade de negócio. Este sim o verdadeiro espírito empreendedor americano e essa sim a verdadeira moral do filme: há sempre forma de ganhar dinheiro com o que quer que seja.
Como diz Robert Mitchum no final de The Lusty Men, There never was a bronc that couldn’t be rode, there never was a cowboy that couldn’t be throwed. Guys like me last forever. E depois morre, nos braços de Hayward, após ter sido espezinhado por um cavalo. E quando o filme se aproxima do exit, Nicholas Ray filma um jovem que pela primeira vez entra na competição de um rodeo, como que dizendo que esta história é infinita, que haverá sempre homens dispostos a arriscar a sua vida por dez segundos de puro êxtase – e outros tantos dispostos a ganhar dinheiro com as suas loucuras. Mas Vallée não quer finais assim, onde não se aprende com os erros, e por isso tudo acaba com um freeze frame – porque a história acabou ali e nunca mais ninguém apanhou o VIH nem nunca mais houve interesses económicos a influenciar a saúde das pessoas.
E com tudo isto não falei dos quilos perdidos por McConaughey e Jared Leto, porque todos sabemos que os actores são tanto melhores quanto mais quilos são capazes de perder (ah, e também têm que nunca sair de personagem e deixar de tomar banho durante um mês e andar vestidos de mulher nos tempos livres e só comer meia beringela por dia), que os digam os senhores dos prémios – a mim já me cheira a Óscar, mas isso é porque o meu vizinho é actor do Método e já não toma banho há um mês.