A influência dos programas televisivos nas vidas de todos nós é facto indissociável do quotidiano nacional, o que não sabíamos era da capacidade premonitória (e até instigadora) de certos apresentadores de televisão sobre figuras políticas e suas usuras de merceeiro. Que Manuel Luís Goucha tenha previsto a eleição de Pedro Passos Coelho a Primeiro Ministro é apenas o lado visível dos efeitos potenciadores do bigode português no desenvolvimento das capacidades sobrenaturais dos seus portadores. Assim sendo, não só me dedico à arte da pilosidade-facial-supra-labial, como sigo os ensinamentos desse guru da adivinhação buçal (de buço entenda-se) que preenche as manhãs televisivas da TVI. Posto isto, e como as férias de natal assim permitiram, assisti a um modesto mas informativo segmento desse Você na TV dedicado às dietas “desintoxicantes” depois das fartas comezainas das festas. No fundo, o que se propõe ao enfartado espectador é que limite a sua alimentação a águinha, cházinhos, infusões, e batidos duvidosos compostos por frutas diuréticas e sementes com poder laxante. Resultado: um exercício de velocidade entre o televisor e os lavabos – de modo a que não se perca pedaço de ambos.
Inconsegui manter-me longe dessa roda-viva dietética, sendo que no meu caso, a escassez alimentícia ficou-se pela depuração do gosto cinéfilo. Ou seja, decidi adaptar a detox à cinefilia e concentrar-me nesse ingrediente basilar que é o livro-de-epígrafes de Robert Bresson, Notas Sobre o Cinematógrafo. Encontro, entre outros, o seguinte dizer: Acerca de duas mortes e três nascimentos. “O meu filme nasce uma primeira vez na minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas vivas e pelos objectos reais que utilizo, que são mortos na película mas que, dispostos numa certa ordem e projectados num ecrã, reanimam-se como flores na água”. Talvez embriagado pela reduzida diversidade nutricional, pareceu-me encontrar aqui, nesta frase (de fortune cookies, que é como quem diz biscoito da fortuna), o argumento perfeito para debater – ou no caso desta crónica simplesmente monologar – as deficiências da exibição regular (ou nem tanto) de cinema pelo território português.
Pois bem, em 2012 os dados referentes à exibição cinematográfica indicavam a existência de 269 concelhos sem programação de cinema regular (isto é, servidos, no máximo, pela programação – quase sempre semanal – dos cineclubes locais), o que correspondia a cerca de 5,6 milhões de portugueses. Desses, 212 concelhos não tinham sequer cinema – à época 3875064 pessoas – e a par disto tínhamos 15 concelhos apenas com cinemas da ZonLusomundo, o que se traduzia em 1659856 habitantes. Ou seja, entre não ter cinema ou tê-lo com exibição não regular ou reduzida aos desejos do exibidor/distribuidor monopolista estavam perto de 70% da população portuguesa – o que é uma percentagem absurda.
Percebem agora porque fui buscar a frase de Robert Bresson, porque nela se traduz a importância extrema do grande ecrã como instrumento de reanimação da ideia do realizador e do trabalho dos actores e todos os que participam na feitura de um filme (até dos objectos!). Ao impedirmos a projecção de um filme estamos a retirar-lhe a possibilidade de retomar a vida. Não são os dvds, nem os videos on demand, nem mesmo as exibições televisivas que têm o poder de retirar da tumba tudo aquilo que morreu com a escrita e com a rodagem – fazem-no apenas pela rama, reavivam um dedo, umas falanges, talvez mesmo um membro completo. É no cinema e frente ao ecrã que os filmes acordam no escuro e movidos pela cadência dos 24 frames por segundo dançam até ao final dos créditos uma dança como a dos enforcados – e no final, quando as luzes se acendem, a morte do filme consumou-se mais uma vez resistindo agora (talvez) nas nossas memórias esses estertores do dependurado.
Talvez seja caso de saúde pública não ter cinema – como o é não ter centro de saúde ou farmácia – e talvez uma alimentação a enlatados televisivos não chegue para cobrir as necessidades básicas. Faz-me tudo isto lembrar uma história que me contavam quando era mais pequeno, a do burro do espanhol. O espanhol tinha um burro e viajava de terra em terra com o seu asno para vender os seus produtos. Os tempos não eram de fausto – nunca foram – e o pouco que o espanhol fazia com a venda mal dava para si e para a comida do animal. Teve uma ideia: podia ensinar o burro a deixar de comer. Assim, a pouco e pouco, foi reduzindo a ração do bicho. Quando o burro finalmente se habituou a não comer de todo, morreu.