A 6 de Fevereiro de 1960, depois de realizar Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957) e meses antes de Spartacus (1960) sair, Kubrick pegou numa folha de papel com selo da Universal Pictures e escreveu uma carta com destino à Suécia.
Dear Mr. Bergman,
You have most certainly received enough acclaim and success throughout the world to make this note quite unnecessary. But for whatever it’s worth, I should like to add my praise and gratitude as a fellow director for the unearthly and brilliant contribution you have made to the world by your films (I have never been in Sweden and have therefore never had the pleasure of seeing your theater work). Your vision of life has moved me deeply, much more deeply than I have ever been moved by any films. I believe you are the greatest film-maker at work today. Beyond that, allow me to say you are unsurpassed by anyone in the creation of mood and atmosphere, the subtlety of performance, the avoidance of the obvious, the truthfulness and completeness of characterization. To this one must also add everything else that goes into the making of a film. I believe you are blessed with wonderful actors. Max von Sydow and Ingrid Thulin live vividly in my memory, and there are many others in your acting company whose names escape me. I wish you and all of them the very best of luck, and I shall look forward with eagerness to each of your films.
Poderíamos chamar Kubrick e Bergman de “génios”, se bem que, lendo estas e outras palavras (ou testemunhos em entrevistas e autobiografias), ambos sentir-se-iam desconfortáveis com tal etiqueta. A tendência que temos em apelidar tais pessoas, e outras, de “génios”, deve-se, provavelmente, a saberem ter a clarividência, no meio das suas dúvidas e das suas angústias, de criar objectos claros e sensíveis que toquem em todas as dimensões da sensibilidade do ser humano.
Bergman já não é vivo – pertence, tal como todos os seus filmes, a esse passado que agora se revive nas suas projecções e se prolonga na consciência de quem os vê. Mas por serem tão reais – apesar dos sonhos -, por serem tão honestos – ao confessarem a sua ignorância na melhor forma de se viver -, cada filme seu é um espelho bem próximo daquilo que somos – das nossas contradições, dos nossos desejos. Tanto do leve encanto que procuramos para as nossas vidas, como dessa pesada máscara que muitas vezes colocamos quando nos confrontamos com os outros (por medo, por amor, por medo).
Se há algum agradecimento que gostaria de deixar a Ingmar Bergman, é esse: o de mostrar a simplicidade dentro daquilo que parece complexo (ou o de rever uma obra-prima como Persona [A Máscara, 1966], que me mostrou, afinal, a simplicidade dos seus meios para tocar num nervo tão profundo e em dimensões tão distantes). Bergman já não é vivo. Resta-me olhar de novo para os filmes dele e ver-me ao espelho. E dentro de todas as suas dúvidas, por serem pessoais, dentro desses planos em que a luz do sol aparece e tudo ilumina, antes de desaparecer por trás das nuvens (sem aviso, sem controlo) e fazer-nos cair numa pequena ansiedade que deseja o seu regresso, ver-me retratado e não sentir obras-primas como “pedaços de génio”, mas obras-primas como pedaços da vida. E receber a sua clarividência, por sermos humanos e sentirmos como ele, para nos tornarmos sensíveis a tudo o que vive e a tudo o que sente.
Segundo testemunhos de colaboradores e do próprio, os seus filmes mais tristes e intensos viviam-se com risos e alegria nos seus bastidores. Penso que nada mais que este contraste será necessário para conseguir entendê-los. E como escreveu Kubrick: to this one must also add everything else that goes into the making of a film. Esse everything else é tudo o que carregamos dentro de nós e não sabemos explicar por palavras. Apenas por olhares e os gestos que os prolongam quando nos comovemos face a face, tanto perante um filme como outra pessoa. Com todas as suas pequenas mentiras e as suas grandes verdades. Resta-nos amá-los com todas as suas qualidades e todos os seus defeitos, tal como este seu espelho nos mostra.