Eu sonho, logo existo.
August Strindberg
I thought I was alone in the apartment one quiet sunny afternoon and crept into my parents’ bedroom, where the creature was asleep in her pink basket. I pulled up a chair, climbed on to it and stood looking at the swollen face and the dribbling face. My brother had given me perfectly clear instructions, but I had misunderstood. Instead of squeezing my sister’s throat, I tried to press her chest in. She woke at once with a penetrating scream. I pressed my hand against her mouth and her watery blue eyes squinted and stared. I took a step forward to get a better grip, lost my footing and fell to the floor. I recall that the deed itself was associated with acute pleasure and rapidly turned into terror
Ingmar Bergman
Pão-de-ló. Pão-de-ló embebido em água. Início doce para o mais amargo dos cineastas. Havia um bebé franzino que estava a morrer de subnutrição. A mãe tinha gripe espanhola e não podia alimentá-lo. Numa viagem de comboio, a avó decide dar-lhe essa iguaria, mistela ou o néctar dos deuses que evitou a morte prematura da criança e assim impediu que se unisse imediatamente o seu nascimento à sua morte, num raccord insuportável. O bebé chamava-se Ingmar Bergman e este é o primeiro parágrafo de “Lanterna Mágica”, sua autobiografia. É esse impulso de viver a vida com a morte “agarrada aos joelhos”, os inícios colados aos fins, que convidam a ver nos seus filmes – as verdades únicas de um “mentiroso nato” – I think I came off best by becoming a liar – como paragens em movimento de um percurso de vai da vida à morte, numa espécie de cronologia do indivíduo que caminha até ao último suspiro como também continuamente para dentro. É esse abismo do ser humano, esse desejo de verticalidade que Bergman anuncia como intenção em Säsom i en Spegel (Em Busca da Verdade, 1961) [O título brasileiro “Através de Um Espelho” foi muito mais certeiro a denunciar a porta que se ia abrir para Karin (Harriet Anderson) e deixaria ver o rosto impassível do deus-aranha como sinal do absoluto]. Este percurso é apenas um “caminho de cabras” das possibilidades de viagem que o cinema de Ingmar Bergman oferece. Nele, o importante é perceber que o que para nós está disponível na obra do cineasta oficial da Suécia (que deu a ver ao resto do mundo como eram as paisagens e os modos daquele país que soubera resolver o problema do cidadão na sociedade, mas nunca o do indivíduo) é a capacidade de unir a História do cinema à História do ser humano, do primeiro choro à eternidade ou a esse estado que Bergman chamava de “non being” no qual nos transformamos depois da morte. Todo este percurso é marcado por esse “estigma pão-de-ló”, ilha de sobrevivência que une constantemente a força da vida à presença da vertigem e da morte. Essa vertigem assume aqui a forma de uma quase doença: a febre constante do cinema que desde que viu um filme chamado Black Beauty, o seu primeiro filme, tinha então sete aninhos, nunca mais o abandonou. Essa foi a sua primeira ida ao cinema, o seu início. Por este texto passa a ideia de que é o impulso de morte, sustento da vida (é a vida na eminência de terminar que explica o seu esplendor), e a febre do cinema – como máscara e vida de ilusão, o que permitiu a Bergman manter-se na sua realidade, o sonho, ao abrigo de uma família e uma sociedade patriarcal com aprisionantes valores de hierarquia e disciplina.
São estes dois eixos – o impulso de morte sobre a vida e o cinema como máscara – aquilo que melhor permite compreender a sua obra e, nesse mesmo movimento, perceber como Ingmar Bergman funde, de forma ímpar, a sua vida e a sua arte. É essa ideia que subjaz o percurso que aqui tento percorrer.
1. E no início era o fim
I found to my surprise that my senses did indeed register the external reality, but the impulses never reached as far as my emotions.They inhabited a closed room and were produced on command, but never rashly. My reality was so profoundly divided that it had lost consciousness.
Ingmar Bergman
A festa já não ia continuar muito mais tempo. Era a altura das crianças irem dormir. Penas ao ar, apagam-se as luzes e só o candeeiro ilumina o painel com o nascimento do menino Jesus. Rezas feitas a abençoar toda a família e beijos maternos nas faces. E não é que Emilie diz a Alma, ao sair do quarto, a mais estranha das coisas sobre o seu filho? “Ele beija como um homem”. E esse atestado de virilidade continua quando Maj, depois de lhe mostrar o vestido novo que recebeu, se deita na cama de Alexander e lhe pede desculpa por não ir dormir com ele. Terá uma visita naquela noite e “Maj não pode ter dois homens na cama”. Maj sai e fica apenas o crepitar da lenha, o painel a velar as crianças e a última réstia de fogo na vela que desmaia. O sono será ao som de uma caixinha de música. Mas os homens não dormem e Alexander contempla a lanterna mágica. O espectáculo vai começar e as meninas despertam para ele. Na câmara de Bergman o mesmo que na lanterna e voz de Alexander: uma jovem donzela no seu leito, a pobre Arabel. Está só na sua casa e ignora o seu destino. A sua mãe morreu. E, subitamente, que vulto é este que surge a meio da noite? Quem é esta forma branca e silenciosa que flutua sob a lua? A donzela treme de medo. Será o fantasma da sua mãe?
Se há filme que mais claramente mostra como no cinema de Bergman os inícios estão colados aos fins ele é Fanny och Alexander (Fanny e Alexandre, 1982). Na altura tinha dito que era o seu último filme, deixava o cinema, a sua amante, e ficava apenas com a esposa, o teatro. É aliás com a proposta à avó de Alexander para fazer uma peça de Strindberg que o filme termina. Como a história depois mostrou esse fim foi postiço e ainda se seguiriam mais uns quantos filmes, tal como Gustav, ele próprio renitente a deixar partir a amante Maj (e mesmo que isso suceda, Rosa, a nova criada, bela e jovem, fica já devidamente avisada para os grandes apetites do patrão). E se após o regresso a casa de Emilie, com os filhos, tudo parece restaurar a paz, sabemos que também o fim de Fanny é interminável, pois Alexander vê o fantasma do padrasto que lhe diz que nunca o há-de largar. É com base nesse fim, sempre em adiamento, que Bergman visita a sua infância, não como testamento mas como forma de reabilitar esse impulso vital que une a ideia de morte aos primeiros anos da sua vida: morte da inocência, morte da realidade em detrimento de uma vida de sonho, colocando-se em máscara seja por detrás de uma mentira, de mão jurando sobre a bíblia, seja debaixo da cama (como quando o pai, Oscar lhe quer falar mesmo antes de morrer), seja mesmo no escuro do armário onde projectaria os seus filmes a partir da sua lanterna mágica.
Se Fanny e Alexandre é considerada por muitos a grande obra-prima do cineasta sueco, tal consideração não advém tanto de estar num registo mais prosaico da saga familiar (que lhe valeram os óscares e a admiração de um público mais alargado), mas mais por dar a ver de que forma os pontos marcantes da sua vida foram sendo diluídos pela magia, pelo encantamento daquele que não só vê (mortes, discussões, festas de Natal, affaires) mas que produz aquilo que vê (fantasmas, Deuses-fantoche, anjos da guarda). Nessa mistura entre ver e dar a ver, Fanny e Alexandre é simultaneamente a mais realista e a mais onírica memória de infância alguma vez filmada. Nesta, os mortos e as crianças (como na sublime sequência em que Oscar já morto visita a sua mãe) vão de mão dada fazendo desse revisitação do passado a antítese da nostalgia e do testamento. Vinte cinco anos antes Bergman, sabendo desse lugar fundador da infância, revisitou-o ainda com nostalgia (assim como fez o “pai” Victor Sjöström recuar também) em Smulltronstället (Morangos Silvestres, 1957). O que entretanto percebeu é que essas memórias não tinham tempo (por isso o Prof. Isak mantém sempre os 78 anos ao lado da família jovem, quando a recorda) e que eram, ao invés, um espaço de confluências de tempos, como num cristal. Por isso, ver o passado recriado de Fanny é ver como todo o cinema de Bergman é o que já foi e ainda agora começou, mas também um há-de vir para sempre preso à morte de cada instante.
2. Olhos pequenos para imagens tão grandes
Anna espera o seu amante Birger no corredor. Ela dá-lhe a chave do quarto. Beijam-se. Chegam à porta do quarto, a chave parece não abrir. O frenesim do desejo não ajuda. Anna olha em volta para ver se ninguém observa. Johan, o seu filho, observa-os num canto do corredor, na penumbra. A porta abre-se finalmente, a porta fecha-se finalmente. Cá fora Johan espreita pela fechadura. Plano dos seios da mãe que se deita na cama. Tirou as pulseiras, já lhe tinha dado a chave, está tudo pronto para o plano subjectivo, assassino, escuro, furtivo com a mão de Birger sobre o pescoço de Anna. Com o início da morte (penetração) Bergman volta a Johan: plano picado do tecto mostra Johan que é pequenino num corredor tão grande que percorre. Corte e a criança está no quarto a ler um livro. Aborrece-se. Vai até ao quarto da tia e há sons aterradores. Ela morre ou geme como um monstro? Talvez apenas ressone prostrada na cama, boca aberta e o rosto chupado. Johan sente o trepidar do jarro de água junto à cama. Vai até à janela. Lá fora um enorme tanque entra pesado, lento e barulhento na rua deserta. Como num sonho. Ester acorda e pergunta a Johan se ele não lhe ia ler. Johan diz-lhe que ela parece estranha. Ester sorri como quem lhe dói e insiste na leitura. Johan vai antes buscar Punch e Judy, as suas marionetas, e faz um pequeno número. Punch desanca Judy. A tia pergunta-lhe porque o que Punch está a dizer. Johan diz que não sabe, que ele fala numa língua esquisita. “Ele não pode cantar então?”, pergunta a tia? Johan esconde-se na cadeira aos pés da cama e responde que não pode enquanto ele estiver zangado… Mas tudo tinha sido já demais. Johan chora.
Este não é o final da sequência de Tystnaden (O Silêncio, 1963), último filme da trilogia de Bergman sobre Deus e a fé. O final é esse zoom que mostra o abraço que Johan dá à tia. E volta ainda a imagem do tanque lá fora. Tudo está envolto nesta paisagem psicanalítica, com que parece “terminar” a busca de Deus. Como referia João Bénard da Costa, escrevendo sobre o filme: é uma obra de corpos que termina na palavra “alma”, palavra última, secreta, que Johan carrega consigo para fora do filme, para fora da claustrofobia daquele quarto, daquela cidade inventada, Timoka, que em eslovaco significa o “que pertence ao carrasco”. Mas para onde leva ele essa “alma”? Leva-a para esse espaço da psicanálise e da cura iniciado com Persona (A Máscara, 1966) e que outros filmes a seguir vão mostrar como por exemplo nas indagações de psiquiatra e da mulher infiel em Aus Dem Leben Der Marionetten (Da Vida das Marionetas, 1980). A alma cura-se, portanto, operando-se a si própria, sem esse “ídolo ao medo, chamado Deus”. Mas se O Silêncio pressagia A Máscara (logo pelo jovem actor, Jorgen Linstrom que é o mesmo) também isso acontece com Fanny och Alexander (Fanny e Alexandre, 1983) com a visualização, no silêncio, daquilo que não se pode fazer e olhar (o território dos adultos é também ele um país estrangeiro com uma língua com sons esquisitos, também ela). Na sequência que descrevo acima Johan está em processo familiar de formação do trauma: o trauma sexual, da mãe nua, a dar-se a uma actividade “estranha” entre portas; o trauma da guerra (do Trauma aos traumas), que surge em filigrana nessa sequência sonho que faz lembrar alguns outros sonhos poderosos que hão de preencher o seu cinema [os mais evidentes, o caixão e os relógios sem ponteiros do Prof. Isak Borg em Smulltronstället, o sonho do bebé – boneca – peixe sem cabeça em Fängelse (A Prisão, 1949) ou esse momento ímpar em que Peter sonha com a sua mulher numa nudez vítima-mãe em Da Vida das Marionetas]; e claro, o trauma da doença e da morte, com a decadência física da única mulher que o abraça em todo o filme, a sua tia Ester. De tudo isto, mas também da troupe de anões, das marionetas de salsicha e alface do empregado do hotel, o jovem Johan, como o jovem Bergman, ia testemunhando. Disfunções, paranoias, ausências, incapacidade de comunicar, tudo estava em formação. Tudo eram imagens a entrar pelos olhos adentro sem processamento possível. Tal como acontece em Fanny, também O Silêncio é um filme de maturidade. Conclui-se assim a “trilogia da fé”, terminada que parece a luta corpo a corpo pela existência de Cristo (como na cena entre o jovem aspirante a padre e o jovem cientista dos Morangos). Nesse fim, ressai mais do que a já referida partida para os problemas psicanalíticos, uma necessidade de andar para a frente para melhor ver o que ficou lá atrás. Explico-me. Se bem se lembram no início de um dos seus “filmes de Verão”, ou do seu filme de Verão, Sommaren med Monika (Monika e o Desejo, 1953), no bar em que Monika se encontra com Henry e lhe pede lume e lhe diz que a Primavera está a chegar e que deviam partir para ver o mundo e nunca mais voltar, há um grupo de velhotes ébrios que assiste a toda esta conversa. No final um deles diz sem entusiasmo absolutamente nenhum: “Acho que a Primavera afinal está aí. Raios.” E é esse o mesmo movimento arrastado com que o filme termina, concluída que está a passagem à idade adulta do par, quando os mesmos velhos transportam as mobílias deles, como que transportando os restos da juventude, os seus detritos como lixo. É esse frame da experiência da idade madura (que enquadra o excepcional num contínuo de normalidade) o que dá a força de Monika e que explica também que obras como O Silêncio ou Fanny sejam obras que ilustrem a idade como pressuposto para se narrar a juventude e a infância. Por isso, a retroactividade ou o filme-flashback como forma de colar o fim com o início, o grito da morte, com o grito do nascimento.
3. Os homens são horríveis e as mulheres são horríveis
O pai bebe um chocolate e a filha come um gelado grande. É Verão. Já não se veem há um tempo. Os pais têm estado longe um do outro e Nix diz ao pai que quer ser operada, mudar de sexo. Está farta de ser mulher e não quer ser dependente de um homem, como a mãe. Nix quer pegar em Tax, o seu cão, e partir. Está farta daquele ambiente. “Já viste as minhas mãos?”, pergunta. “Tenho de fazer algo com elas, tenho de moldar qualquer coisa, não posso só ler revistas e pensar em amor”. (…). Na cena seguinte, na oficina do tio Axel, Nix está a moldar uma figura em barro. Pergunta ao pai se ele se vai divorciar da mãe. O pai, embaraçado, diz que não sabe. “O amor é tão chocante, tão estúpido. Não quero amar homem nenhum!”, diz a filha que sai a chorar. O pai segue-a. No jardim, a filha conta ao pai como Eva, a sua melhor amiga, com quem estava sempre, a abandonou. Estavam juntas no Verão, nadavam, construíam casas na árvore. Um tempo depois ela veio e estava diferente. Tornou-se numa mulherzinha parva que pinta os lábios e usa caracóis”. “Na praia balouça ao andar e mostra o traseiro num fato de banho minúsculo. Ela apaixonou-se por um parvo. Depois a Eva queria ficar sozinha para namorar”. “E depois contou-me tudo aquilo que tinha feito. Chocante!”. “Odeio a Eva, a mãe e estes jogos. Elas agem como vacas ou galinhas…”
A cena pertence, claro, a En Lektion I Kärlek (Uma Lição de Amor, 1954), filme que faz a transição da vitalidade do amor [em Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951) ou em Monika] à experimentação da comédia que no ano seguinte daria a Bergman o reconhecimento internacional em Cannes. O filme é Sommarnattens Leende (Sorrisos de uma Noite de Verão, 1955) e marca, segundo Hamish Ford, no seu artigo “The radical intimacy of Bergman”, o fim de um período de transição que havia passado pela experimentação técnica e nihilismo pessimista à própria inépcia em lidar com o género comédia. Talvez seja chocante só considerar Bergman a partir de física versus metafísica de Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo, 1957) ainda para mais porque a ver bem a maturidade do cineasta sueco já entra pela comédia adentro, considere-se esta lição de amor e de reconciliação uma “règle du jeu” bergmaniana ou um “fim do jogo” rohmeriano. Aliás essa comédia joga precisamente com essa divisão ou circulação entre a trágico e o cómico no qual superior momento é essa sequência em que David vem anunciar ao escultor Carl-Adam, seu amigo, o amor entre ele e a sua suposta futura esposa, Marianne. O casamento está mais que estragado e rebenta a discussão entre o escultor e Marianne. Pianos ao chão, ingrato para aqui, impotente para ali, ela rebenta-lhe uma escultura ele atira-lhe os pratos ao chão. No final, David recomposto de um soco que o tinha deixado knockout por uns momentos pergunta a Carl: não achas que já houve discussão o suficiente? Carl, aproxima-se de Marianne como para desferir-lhe mais um golpe, ela com medo e ele assusta-a com um “bu!”. “Que mulher esta! Continue a festa”, diz resignado e contente. E pronto volta tudo à comezaina e a dor de corno parece estar esquecida. Carl pede perdão, todos riem muito e o banquete vai começar. Não sem antes o vicário, que a todo este chinfrim tinha assistido, declarar, esfregando as mãos, abertas as hostilidades: “Bom, em nome do senhor…”.
Seja como for, o que agora me interessa é ver a jovem Harriet Anderson que aqui ainda só passeia na praia com o seu cãozinho (nem sinal de Harry e das suas belas pernas) nesse estado de descoberta da sexualidade. Como Bergman, antes que a puberdade lhe “confundisse o corpo e a alma” como dizia, e as suas escapadelas com a jovem Marthä, filha de um casal vizinho e as cantilenas dos rapazotes para o provocar quando um dia, conta ele na sua biografia, os encontraram muito inocentes um ao lado do outro a pescar no lago – “Screwer and Fucker wanna be fine but Pricker and Cunter at once start t’whine'”. O jovem Bergman defendeu a honra da jovem ao que parece, mas aqui em Lektion é apenas desespero o que sente a jovem Harriet pelo facto de ser mulher. Raiva que, ao contrário da amante de David que diz que “todos os homens são horríveis”, ela ainda não dirige ao sexo oposto – a indignação ainda é só vertida para dentro.
A verdadeira entrada na puberdade no cinema de Bergman, essa confusão, dizia, entre o que se sente no corpo e na mente, vem, muito a propósito, inserida nessa trilogia da fé, na figura do jovem Minus, a quem a irmã (Harriet, sete anos depois de Lição de Amor e da sua “lição privada” com Bergman na ilha de Färo) lhe apanha a revista pornográfica. “Não tenho intenção mas acontece” é o que diz, angustiado por ver o seu segredo descoberto. Sentimento de culpa pelos poros, enjaulado no seu desejo. Minus, ao contrário de Karin, ainda não está “preparado” para atravessar o espelho. A sua fase do espelho exige-lhe ainda, apenas e só, o reconhecimento: que o pai lhe diga que a peça que representou para ele é boa, quer falar com ele, precisa do pai. Mas o pai nunca está presente. Tal como Nix diz várias vezes ao pai que ele não tem tempo para ela. Ou, anos mais tarde, essa incomunicação e ausência como dor insuperável em Eva de Liv Ullman em Herbstsonat (Sonata de Outono, 1978).
4. No Verão os amantes correm como crianças
-Marie. Gosto de ti, estou apaixonado por ti e tudo isso… Agora… deves pensar que sou tonto.
-Disseste que estavas apaixonado por mim. (…) Como é?
-Sente-se no peito e na barriga. Tens molho de maçã nos joelhos e os teus dedos dos pés curvam. Mas no peito sente-se mais.
-No coração?
-Não sei… e tu?
-Acho que se sente na pele. Quero que me toques, que acaricies a minha pele com as tuas mãos. Sinto nos ombros e nos cotovelos. Nas palmas das mãos. Faz comichão por todo o lado.
Diálogo entre Marie e Henrik em Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951)
A câmara tinha estado pacífica e pairante no porto deserto e enevoado à espera do início da Primavera. Que é como quem diz, à espera dos amantes. Na ilha do amor, Monika e Henrik já tinham partilhado o corpo, os cigarros, o mar e o sol. O tempo parecia feito de eternidades. Quando o pacto do crescimento e dos amores rebelados parece selado há que mostrar o amor ao mundo. É de noite e há uma festa. Chegam de barco. As luzes dos candeeiros refletem-se na água e as pessoas dançam. Ela avança destemida, mascando pastilha de boca aberta. Ele, nervoso, confessa que não sabe dançar. Ela diz-lhe a mais bonita das coisas: “Não faz mal, mesmo assim és o mais doce.”. Depois de uns passos errados, Henrik quer ir para outro cais. Afinal para aprender a dançar são apenas precisos dois. E depois esse plano ímpar, câmara recatada, a música da festa ao longe (que agora toca só para eles) e os jovens amantes aprendem a dançar muito juntos. Pois dessa dança depende o resto da sua vida.
Não se pode dizer que a descoberta do amor no cinema de Ingmar Bergman surja purificada. Assim como tínhamos dito que era o comentário (o olhar) da geração mais velha aquilo que melhor permitia posicionar e valorizar o amor dos jovens em Monika e o Desejo, o mesmo acontece com o amor que Marie viveu em Um Verão de Amor, filme insular, instanciação da modernidade cinematográfica para Alain Bergala. A ilha, a “paisagem mental” do cinema do sueco, espaço de corte convertido em local propício ao amor. Mas dizia, em Sommarlek, o olhar mais velho é dela própria sobre si e o seu passado, como um espelho a olhar para si próprio, produzindo uma espécie de vazio nostálgico e de reflexão sobre as escolhas de vida. Podemos mesmo ver Monika como uma extensão de Verão, mais concretamente uma extensão desses momentos em que se parecia viver numa bolha, num “tempo sem ponteiros” e em que os “dias eram como pérolas, redondos e brilhantes, como num fio”. De um tempo em que os amantes mergulhavam e passavam o tempo a passear, a conversar e a dar beijinhos nas rochas.
Nestes filmes de Verão, como são estes dois (mas também, de outra forma, Sorrisos ou Morangos Silvestres) há um período em que é preciso aprender a dançar, como na cena de Monika acima descrita, antes que chegue o fim da adolescência. Esse fim surge de repente, ou não fosse Bergman, como refere Godard num célebre artigo de 58 dos Cahiers, o cineasta do “instante preciso”. O fim pode chegar com uma morte (como acontece com o acidente de Henrik; episódio inspirado numa paixão de Verão do próprio realizador por uma jovem que morreu de poliomielite) ou com um nascimento (Monika fica grávida). Mas pelo caminho, Marie (Maj-Britt Nilsson) tornou-se mesmo bailarina e Bergman termina o filme com o despir da maquilhagem (a máscara, a segurança) de Marie, preparando os amores seguintes, talvez de um Verão um pouco menos quente. E Monika percebeu (ou talvez tenha demorado mais tempo, como veremos) que a felicidade era uma questão de aprender a dançar. Esse é o seu problema de resto: ela inveja a vida de “sonho” dos filmes que vê (aliás a sequência em que vai ao cinema com Henry é, ela própria, não na forma mas na substância, uma espécie de sequência de sonho bergmaniana) mas não reconhece que quando o pai chega a casa bêbado e puxa a mulher para dançar, num apartamento atravancado, onde bate com a cabeça no candeeiro, é a dança da felicidade, ali mesmo, debaixo do seu queixo. Se este momento sublime de Monika é o cinema de Bergman como espelho do pico da vitalidade, na vida, no amor, interessante seria prolongar essa visão da dança em que a cada estádio pertence uma dança que a ela lhe corresponde: é a dança da caixinha de música no genérico de Lição, a dança da sedução dos bonequinhos do relógio de cuco dos Sorrisos, a dança natalícia e familiar dos Ekhdal em Fanny e Alexandre, Natal dos a “dança” agónica na cama de Ingrid Thulin em O Silêncio ou de Harriet Anderson em Visknigar och Rop (Lágrimas e Suspiros, 1973) [é tentador pensar o cinema de Bergman, como se sabe um cineasta de mulheres, a partir desse ícone de beleza nórdica chamado Harriet Anderson e desse seu percurso que vai da vida da rapariguinha Monika, ansiosa de vida, à moribunda Agnes, o “cordeiro” ansioso pelo pós-vida], e claro, a dança da morte de O Sétimo Selo que não está apenas na sequência final mas na própria mudança das peças nesse desafio entre o bem e o mal, o branco e o negro, o icónico jogo de xadrez (anunciado de resto timidamente, diria inexplicavelmente, logo em Verão de Amor com a figura da cancerosa tia de Henrik que a todos ameaça sobreviver) .
5. A roleta russa da sedução
As I harbour a constant tumult within me and have to keep what over it, I also suffer agony when faced with the unforeseen, the unpredicatable. The excuse of my profession thus becomes a pedantic administration of the unspeakable. I act as intermediary, organizing, ritualizing.
Ingmar Bergman
E eis que chega a noite de Verão. Os criados cheiram os vinhos deleitados e servem solenemente. Sete pessoas à mesa e o jantar começa. Carl-Magnus responde à sua mulher: “Todas as mulheres são seduzíveis?”. “Absolutamente”, diz o conde. “Mesmo as mulheres casadas?”, pergunta Desiré, “Menos essas”, responde novamente. Já Egerman sabe mais: “Todos os homens são seduzidos”, afirma. “O homem está sempre na ofensiva!”, contesta Carl. “Sim, mas antes disso todo o terreno está já minado, e o inimigo conhecedor da sua estratégia”, comenta a anfitriã e mãe da actriz Desiré, a Madame Armfeldt.”Inimigo, ofensiva, estratégia, minado. Está a falar de amor ou de guerra?”, pergunta nervoso o filho de Egerman, Henrik. E é Desiré quem explica o óbvio: “Os adultos sensíveis tratam muitas vezes o amor como se fosse uma campanha militar ou ginástica”. A condessa Charlotte desafia em como consegue seduzir Egerman em quinze minutos. A aposta está feita e é Madame Armsfeldt que explica o “ritual” da noite de Verão: “segundo a lenda, este vinho é extraído de uvas cujo sumo jorra como gotas de sangue na sua pálida face. A ele foi adicionado uma gota de leite do peito de uma jovem mãe e uma gota de sémen de um jovem garanhão. Este fluido vital empresta ao vinho secretos poderes de sedução. Quem beber dele, fá-lo em seu próprio risco e à sua responsabilidade”.
Como é bom de ver todos bebem da vinhaça no início deste terceiro acto de Sorrisos de uma Noite de Verão e Bergman prepara assim a noite em que as mulheres planeiam a sedução e caçam os seus alvos [ao contrário da precisão do plano masculino do médico David (Gunnar Björnstrand) que, no primeiro terço de Lição de Amor antecipa o seu desfecho, a reconciliação com Eva Dahlbeck no quarto de hotel com o cupido a trocar as placas das portas]: Anne Egerman bebe ao seu amor (o filho do marido), Charlotte bebe ao seu sucesso (seduzir Frederik Egerman mas ficando com o conde); Desiré bebe pelo seu objectivo que sabemos desde o início (o agora casado e sua anterior paixão, Frederick Egerman). Nos homens, o homem que pensa que todos os homens seduzem, bebe mas sem seduzir ninguém; e pai e filho, Frederick e Henrik, bebem pela mesma mulher, a jovem Anne. No final, as máscaras caem, os casais resolvem-se nessa dança militar que até envolve uma pistola e uma roleta russa com balas sem pólvora (a fazer lembrar a arma de brincar de Johan que “mata” anões em O Silêncio; mas as armas mais perigosas no cinema de Bergman, sabemos, são outras, as palavras).
Nesta arte da sedução, de que o próprio Bergman era mestre, está implicada a aprendizagem do amor (ver ponto precedente) e a superação da rebeldia. De resto, os amantes rebeldes contra o mundo era um tema de iniciação e o realizador não fugiu à regra, com filmes como Det Regnar Pa Var Kärlek (Chove Sobre o Nosso Amor, 1946) ou Hamnstad (Cidade Portuária, 1948). Mas a sedução é técnica, é ritualização do instinto, frequentemente associada à insatisfação e ao “mal”, veja-se o amaldiçoado D. Juan ao serviço do diabo em Djävulens Öga (O Olho do Diabo, 1960) e que gera tanto a melhor das sensações – “não há vida melhor do que esta”, diz o criado Frid no final de Sorrisos depois de aceitar casar com Petra – como a neurose absoluta, para onde o cinema de Bergman parece dirigir-se a partir dos anos sessenta. É a sua denominada “fase de maturidade”.
6. Amor verdadeiro=neurose
O Amor é a suspensão temporária de uma sentença de morte.
David em Säsom i en Spegel
(Em Busca da Verdade, 1961)
Karin vai partir com o marido Martin para a cidade. Ele vai à cozinha buscar a mala e traz-lhe um copo de água. Quando regressa ao quarto não a vê em parte alguma. Ele e o pai ouvem-na falar no sótão. O pai sobe a escada e ouve a filha que conversa com Deus. “Estou tão feliz”, diz. O pai observa-a entre a porta. De pé, vestido claro, repete sempre “sim, eu entendo.” O marido assoma à porta e entra. Karin pede-lhe que não faça barulho. “Temos de nos preparar”, diz. Martin tem a certeza “Ninguém vai entrar por aquela porta”. “Ele vai chegar a qualquer momento e eu tenho de estar aqui”, responde Karin. Ela quer ficar sozinha e viver este momento só. O pai observa tudo. Plano central e Karin ajoelha-se. Pede a Martin, apesar de ele não acreditar, para se ajoelhar a seu lado e cruzar as mãos. Martin desesperado deita a cabeça no pescoço da esposa. Som de helicóptero lá fora. O rosto de Karin está esperançoso. A porta abre-se subitamente…
Se os planos do espelho de Monika e o Desejo marcam a passagem do tempo, e nele do jovem rosto revoltado de Harriet ao rosto adulto de Lars Ekborg com um filho nos braços, a quebra do feitiço diegético é feita pela primeira vez na história do cinema com o olhar de Monika para a câmara. A sequência da esplanada é famosíssima e ela antecipa a traição do marido, já no momento pós-idílio. Para Alain Bergala esse é o momento que instaura no cinema de Bergman a sua famosa “ambiguidade negativa”. O dito plano convoca o espectador a uma decisão: estamos perante uma heroína existencialista ou uma vilã moral? Tome-se a decisão que se tomar, “cada um é responsável pelos seus gestos” como se ouve em Ritten (Ritual, 1969), o certo é que Monika parte, sai do filme, para parte incerta. Talvez volte à ilha, imagino, mas desta feita à ilha de Färo. O trauma da traição impele Mónika a novo isolamento. Mas a ilha paradisíaca do amor e do primeiro toque é agora a ilha agreste, de uma realidade selvagem com os seus céus carregados, os barcos encalhados e a chuva que chega. E subitamente Monika é Karin, incapaz de amar (o seu marido insiste em fazer amor com ela, sem sucesso), deixando-se apenas penetrar por Deus (o Deus-aranha, com quem fala) e pela injecção que Martin lhe dá antes que a venham levar para um instituto psiquiátrico. Talvez o espelho já não reflicta a juventude de Monika mas serve para ser visto para lá dele “Através do Espelho” ou Säsom i en Spegel. No que diz respeito a Bergman, ele vive em toda a sua obra o mesmo dilema do pai de Karin, David. Ambos usam a realidade como espelho da sua ficção, sacrificando a vida à sua arte. David conta como quer descrever na sua actividade de escritor os diferentes estados de doença da filha. Outra coisa não fez o cineasta ao verter em filme as suas angústias de infância, as suas relações atribuladas.
Neste cenário de complexo realismo, o verdadeiro amor que Monika viveu desemboca ao mesmo tempo numa força destrutiva e num alheamento da realidade. O pai de Karin diz ao seu filho, no final, que “Deus é amor”. Se ao mesmo tempo está em marcha um processo de desagregação da autoridade religiosa que abafava a sociedade sueca e que Bergman quer expor, o amor de Karin não conhece carne, é o amor religioso que se verterá em neurose. É esta neurose que está à vista, vertida em igual medida para o corpo e para a psyche, e para as relações, aquilo que ocupa o realizador em muitos filmes posteriores.