Salvo as óbvias excepções (Alfred Hitchcock, Michael Powell), a cinematografia inglesa nunca gozou de boa fama. É famosa a declaração de François Truffaut de que cinema e britânico eram palavras incompatíveis [embora tenha ido filmar Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966) a Inglaterra]. Pode ser exagero, mas a verdade é que, nos últimos anos, para lá daquilo a que se chama “realismo social” (que, num sentido lato, vai de Ken Loach a Mike Leigh), no qual os detractores vêem mais sociologia do que cinema, o que mais há são adaptações de clássicos da literatura ou biografias de figuras históricas, encerradas em ideias de bom gosto e qualidade, importadas da escola televisiva da BBC. The King’s Speech (O Discurso do Rei, 2010), vencedor do Óscar de Melhor Filme em 2011, é um caso exemplar desse “cinema do papá” (para voltar a usar uma expressão do verrinoso Truffaut da juventude).
Dessa maneira, é curioso que as séries televisivas inglesas, sendo a fonte desse malquisto academismo – textos “essenciais”, adaptados delicada e aplicadamente, excelentes intérpretes, dicção primorosa, luxuosos “valores de produção”-, possuam um estatuto bem diferente. Recorde-se I, Claudius, baseado na obra de Robert Graves, com o excelso Derek Jacobi, ainda muito próximo do teatro televisionado (a raiz disto tudo), ou Brideshead Revisited, que pegava no romance mais consensual de Evelyn Waugh, um autor bastante ácido, e lançou a carreira de Jeremy Irons. Esta última era já um “passo em frente” – havia muito mais exteriores e os interiores eram iluminados mais cinematograficamente.
Serão os parâmetros diferentes para a televisão e para o cinema? Serão, se bem que no pós-suposto Golden Age televisivo as diferenças se tenham esbatido e os critérios também. Todavia, a televisão continua (e continuará) a ser o reino do argumento, por muitos rodriguinhos e planos “esquisitos” que os realizadores queiram enfiar num trabalho totalmente ao serviço do texto e dos actores. Claro que há todo um conjunto de pessoas para as quais um “bom filme” é exactamente isso: um bom argumento, interpretado por bons actores sob uma realização instrumentalizada. Não valerá a pena ir por aí, visto que essa é uma discussão bem mais funda, mas volto à questão: como é que a mesma coisa pode ser excelente em televisão e pobre em cinema? A resposta é a duração. Como escrevi logo na primeira crónica, a televisão permite um fôlego muito maior do que o cinema e, por isso, dá-se mais bem com o romanesco. A televisão equivale-se mais bem à literatura do que o cinema.
Tome-se como exemplo Pride and Prejudice de Jane Austen, uma das grandes obras da Literatura Inglesa. Antes de mais, é necessário destruir um vulgar preconceito (sim, foi de propósito): apesar de serem vendidos como tal, os livros de Austen não são romances para mulheres solteironas a sonhar com Mr Darcys (quer dizer, também são) ou um qualquer correspondente literário dos chick flicks (ou seja, chick lit), apesar de as protagonistas serem mulheres (o velho problema de se confundir conteúdo com forma). Por outro lado, os romances de Austen são muitas vezes erradamente classificados como românticos. Embora a sua obra concorra com essa corrente artística, a autora não parecia muito adepta da mesma – no seu primeiro romance, Sense and Sensibilty, existe até uma muita óbvia paródia ao Romantismo. De resto, o que é notável em Austen é a modernidade da sua escrita, muito simples e enxuta (as descrições reportam-se ao essencial e não há pausas para derivações desnecessárias), em que ressalta uma veia humorística, sarcástica mesmo (cujos principais alvos são a hipocrisia e o pretensiosismo), que aparentemente passa ao lado da maioria dos leitores. O divertimento da romancista (e posteriormente do leitor) passa também pelos erros de interpretação de quase todas as personagens – a protagonista-titular de Emma não consegue julgar certeiramente qualquer dos acontecimentos do livro -, sendo que Austen põe o leitor sempre do lado da personagem principal, ou seja, este participa naquilo que é sobretudo uma comédia de enganos, deliciosa e inteligentíssima. Por tudo isto e muito mais, gostar de Jane Austen é motivo de orgulho (Obrigado!).
Pride and Prejudice teve três versões televisivas – 1967, 1980 e 1995 – e duas cinematográficas – a de 1940 com Laurence Olivier e a de 2005 com Keira Knightley, realizada por Joe Wright. Pego nos últimos exemplos de cada – a série televisiva de 1995, de longe a mais famosa, tendo inclusivamente (re)lançado a carreira de Colin Firth, escrita por Andrew Davies; e o filme de 2005, escrito por Deborah Moggach – para comparar as diferentes adaptações. Em primeiro lugar, é bom relembrar que uma adaptação implica necessariamente alterações à obra original, pelo motivo evidente de televisão ou cinema e literatura serem meios de expressão diversos. Assim, acontece desaparecerem personagens, cenas serem cortadas e outras acrescentadas, diálogos serem revistos, interpretações desviarem-se do inicialmente pretendido. Por exemplo, na versão cinematográfica, umas quantas personagens deixam de existir (uma decisão compreensível, uma vez que o filme tem só duas horas). Na versão televisiva, não se perde ninguém e a grande alteração é o aumento de aparições da personagem de Colin Firth, incluindo uma cena em que este sai do lago molhado, cuja existência só se pode explicar pela vontade de ver Colin Firth com uma camisa molhada.
No entanto, estes pequenos desvios (mais ou menos avisados) afectarão menos o espírito do que a letra da “lei”. Mais preocupante é a extravagante mudança de personalidade de Mr Bennet, pai das cinco meninas, no filme de 2005. Perde todo o sarcasmo e transforma-se num homem doce com um terrível sotaque inglês. À parte o sotaque (culpa de Donald Sutherland que mal se esforça para disfarçar que vem da América do Norte – o sotaque parece vagamente irlandês, mas não há como ter certezas), não é tanto a alteração em si que choca, mas a traição ao espírito da obra, que vai de encontro à ideia de “romantismo” bacoco (não a corrente artística do século XIX mas a acepção mais “lamechas” da palavra) partilhada por quem nunca leu um livro de Jane Austen.
A adaptação cinematográfica tem outras falhas: torna grandiloquente o que é comezinho (as histórias de Austen são comuns, prosaicas, ligeiras; o pior que acontece a alguém em Pride and Prejudice é uma constipaçãozita); aumenta o escopo da acção (é tudo em grande, provavelmente para Joe Wright poder exercitar os seus planos-sequência malabaristas); trata tudo com uma seriedade estapafúrdia; simplifica os diálogos para satisfazer o espectador médio (mediano). A série televisiva, descontado o extra-Darcy, respeita religiosamente a fonte: os diálogos são quase directamente transplantados do livro; a escala é pequena, familiar, como deve ser; talvez penda, aqui e ali, para o humor a traço grosso, mas comprrende que se trata de comédia.
Os erros comuns, mas mais gritantes no filme, são a aparente necessidade de enxertar “povo” onde ele não existe e de mostrar o que no livro é subentendido ou elidido. A obra de Austen fala daquela burguesia que se vai instalando, conseguindo alguns títulos, mas ainda nova-rica, pedante, muitas vezes em choque com a alta aristocracia. As outras classes estão ausentes e é um pouco estranho que se tente anacronisticamente indiciar uma qualquer luta entre elas. Ou que se pense que se tem em mãos algo minimamente realista (é como a ideia de querer fazer um Batman no mundo real – o artifício é apenas mais óbvio, e deslocado). Quanto ao segundo ponto, a velha máxima de escrita show, don’t tell é mal aplicada a partir do momento em que o argumentista a interpreta como uma carta-branca para fazer flashbacks a torto e a direito, principalmente quando uma frase de diálogo bastaria.
No entanto, pergunta o meu leitor, não é exactamente essa fidelidade à obra adaptada que torna tantas adaptações enfadonhas, meros exercícios de academismo? O leitor pergunta bem e demonstra que está atento. A famosa frase “…mas o livro é melhor” não surgiu por acaso: a leitura é uma experiência mais intensa ou, pelo menos, mais imersiva do que a visão de um filme. Quando uma pessoa passa por ela, dificilmente aceita que transformem o objecto minimamente. É humano e inevitável. E, como não me canso de frisar, a série televisiva, mais especificamente a mini-série, permite uma experiência mais próxima da da leitura, sendo por isso mais aceitável para o leitor. O cinema, ao tentar espremer o máximo no mínimo (vulgo, enfiar o Rossio na Rua da Betesga), tende a ser gritante, displicente, redutor, a deitar fora o bebé com água do banho e outras expressões populares. Há-de haver excelentes adaptações cinematográficas de obras de vulto da literatura, mas, assim do pé para a mão, não me lembro de nenhuma (nem me dá jeito lembrar-me). Recordo, sim, que quando Manoel de Oliveira adaptou Amor de Perdição também precisou de muitas horas (no que foi, também, um dos seus poucos trabalhos para a televisão). Ou que a maioria dos grandes cineastas sempre se recusou a adaptar grandes romances, preferindo o conto ou autores menores, o que faz todo o sentido. O formato ideal para adaptar um romance é a mini-série ou, por ela, um filme que tenha a sua duração.